sábado, 27 de dezembro de 2008

1 ano de Born to be Wilde

Não podia deixar de fazer um pequeno post para assinalar este dia 27 de Dezembro como o dia em que o "Born to be Wilde" completou um ano de existência. Passado um ano, depois de 9.887 visitas e 108 posts (contando com este), a primeira tentação seria dizer que se trata de um sucesso. Contudo, não é esse o caso, pois não havia qualquer critério de sucesso definido e nem sequer o número de visitas serve pois este tornou-se grande o suficiente para se tornar fenómeno de estatística, fenómenos aos quais sou averso. O trocadilho de Born to be Wilde tanto significa nascer para ser como o Oscar Wilde, como nascer para ser um selvagem do rock como a música. Falhei nos dois. Para ser como o Oscar Wilde falta-me ser mais espirituoso e gay. Para ser um selvagem do Rock, falta-me andar de mota ou tocar guitarra como o guitarrista dos Steppenwolf:


O que posso dizer é que este tem sido essencialmente um espaço freudiano de sublimação de pulsões; um espaço marxista onde formulo e produzo ideias para a colectividade sem qualquer noção de propriedade privada; um espaço kierkegaardiano feito de pseudonimias, ironias, humor e angústias existenciais; um não-espaço deleuziano de desterritorialiações e ligações rizomáticas anti-edipianas; e um espaço estético à Oscar Wilde que se consagra também à beleza das artes.
Enfim, há espaço para tudo. Tem havido também espaço para maravilhosos encontros entre cibernautas que partilham de suas opiniões, pensamentos, paixões, e interessess de classe comuns e que aqui encalham e naufragam bastante oportunamente. Tenho conhecido (no mundo das ideias) pessoas muito interessantes e valiosas vindas de lugares mais distantes, mas de espíritos próximos.

Mas enfim, um ano é um ano, uma volta ao sol, medida padrão de relógio castrador. O que valem são os pretextos para celebrar. Ou como disse Carlos Drummond de Andrade:

"São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer a toda hora."

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Tudo o que sempre quiseste perguntar sobre a crise mas o menino Jesus não sabia e Marx não estava lá para te responder

Hoje venho falar da crise. Sim, a crise. Toda a gente fala nela, e nunca ninguém a viu, pelo menos em carne e osso. É uma coisa abstracta, de números grandes e diz-se que os portugueses nunca se deram bem com matemáticas. Vemos na televisão reportagens idiotas de jornalistas a tentarem saber o que é a crise e basicamente reportam-nos como as pessoas compram o bolo rei mais pequenino do que o costume por causa da crise. Vemos pessoas que, não tendo sido em nada afectadas pela crise, não obstante compram menos, sentem-se culpadas e refream o consumo. A crise é um novo Deus, que ninguém conhece ao vivo mas que todos devemos temer. As vozes que vemos na televisão papagueando sobre a crise diz que ela tem a ver com ganância e com falta de regulação, tal como os padres diziam que a gula é pecado e que devemos regular os nossos impulsos sexuais.

Sobre a crise actual, depois de muito (mal) se ver e ouvir, trago-vos duas vozes lúcidas: o economista marxista americano Rick Wolff e o filósofo francês Alain Badiou. O primeiro, Rick Wolff, escreveu um artigo na Monthly Review chamado Capitalism's Crisis through a Marxian Lens. No site Resistir.Info encontram uma tradução minha para português deste mesmo artigo. Aconselho também a verem o seguinte vídeo de uma palestra de Rick Wolff sobre o mesmo tema. Rick Wolff explica-nos como os salários médios reais dos trabalhadores americanos parou de crescer a partir de meados dos anos 70, sendo que estes, para além de já sofreram a exploração clássica capitalista de verem ser transferidas as mais-valias do seu próprio trabalho para os patrões e administradores, começaram nesta altura e verem congelados o crescimento dos seus salários reais. Para manter o padrão de consumo americano, que é a medida de sucesso pessoal americana, os trabalhadores começaram a contrair empréstimos atrás de empréstimos.


A segunda voz lúcida sobre a crise que vos trago é Alain Badiou, que escreveu este artigo genial: "De Quel Réel Cette Crise Est-Elle le Spectacle". Deste artigo há uma tradução em inglês (Of Which Real is this Crisis the Spectacle?), mas eu próprio realizei uma tradução deste artigo para português que aqui transcrevo:

A que Real pertence o Espectáculo desta Crise

Alain Badiou

Tal como nos é apresentada, a crise financeira planetária assemelha-se a um desses maus filmes preparados por aquela fábrica da produção de blockbusters a que hoje chamamos o “cinema”. Não falta nada: o espectáculo do desastre crescente, a sensação de se ser suspenso de enormes cadeias de marionetas, o exotismo do idêntico – a Bolsa de Valores de Jacarta colocada dentro da mesma forma espectacular que Nova York, a diagonal de Moscovo a São Paulo, em todo lugar o mesmo fogo que assola nos mesmos bancos – para não mencionar lances de enredo horripilantes: é impossível evitar a Sexta-feira Negra, tudo está a cair, tudo cairá...

Mas a esperança sobrevive. No primeiro plano, de olho aberto e focados, como num filme catástrofe, vemos o pequeno bando dos poderosos – Sarkozy, Paulson, Merkel, Marrom, Trichet e outros – tentando extinguir as chamas monetárias, enchendo dezenas de biliões no Buraco central. Teremos depois tempo para nos admirarmos (a saga continuará seguramente) de onde vêm esses biliões, dado que há alguns anos, à menor exigência do pobre, as mesmas personagens responderam virando os seus bolsos de dentro para fora, dizendo que não tinham um cêntimo. Neste momento isso não interessa. "Salvem os bancos!" Este grito nobre, humanista e democrático sai das bocas de cada jornalista e político. Salvem-nos a qualquer preço! Vale a pena indicar isto, dado que o preço não é insignificante.

Tenho de confessar: considerando os números que estão sendo difundidos, cujo sentido, como qualquer outro, sou incapaz da representar para mim mesmo (o que são exactamente mil e quatrocentos biliões de euros?), também estou confiante. Ponho toda a confiança nos nossos bombeiros. Todos juntos, estou seguro, sinto-o, vão conseguir.
Os bancos serão ainda maiores do que antes, enquanto alguns mais pequenos ou de tamanho médio, tendo sido só capaz de sobreviver pela benevolência de estados, serão vendidos aos maiores por uma bagatela. O colapso do capitalismo? Devem estar a brincar. No fim de contas, quem é que o quer? Quem saberia sequer o que isso significaria? Salvemos os bancos, dizem-nos, e o resto se seguirá. Para os protagonistas imediatos do filme – o rico, os seus empregados, os seus parasitas, aqueles que os invejam e aqueles que os aclamam – é inevitável um final feliz, mas ligeiramente melancólico, tendo em conta o actual estado do mundo, e o tipo de política que nele tem lugar.

Voltemo-nos antes para os espectadores deste show, a multidão embrutecida que – vagamente instável, que pouco entende, totalmente desligada de qualquer compromisso activo na situação - ouve, como um barulho distante, o canto de cisne dos bancos à deriva. Esta multidão pode apenas tentar imaginar os fins-de-semana extenuantes da nossa pequena equipa heróica de cabeças do governo. Vêem passar à sua frente números tão enormes como obscuros, comparando-os automaticamente aos seus próprios recursos, ou até, ao puro e simples não-recurso que é a corajosa e amarga base das suas vidas. Aí é que está o Real, e apenas conseguiremos aceder a ele se nos afastarmos do ecrã do espectáculo para considerar as massas invisíveis daqueles para quem este filme catástrofe, com seu final feliz incluído (Sarkozy beija Merkel e todo o mundo chora de alegria) não foi mais do que um teatro de sombras.

Nas últimas semanas ouvimos muitas vezes falar da “economia real” (a produção e circulação de mercadorias) e da - como devemos chamá-la? irreal? – economia que é a fonte de toda a maldade, em que os seus agentes tinham-se tornado "irresponsáveis", "irracionais" e "predadores" – abastecendo, primeiro com espírito de rapina, e posteriormente em pânico, a agora massa informe de acções, títulos e moeda. Esta distinção é absurda, e é geralmente imediatamente contradita, quando, por meio de uma metáfora oposta, a circulação financeira e a especulação são apresentadas como 'o sistema circulatório' do capitalismo. O coração e o sangue podem ser subtraídos da realidade viva de um corpo? Um golpe financeiro é indiferente à saúde da economia no conjunto? Como sabemos, o capitalismo financeiro tem sido sempre – o que equivale a dizer nos últimos cinco séculos – um componente principal, central do capitalismo em geral. Quanto aos proprietários e os gerentes deste sistema, por definição eles são só "responsáveis" por lucros, a sua “racionalidade” é medida pelos ganhos e não se trata de eles serem ou não predadores: eles têm que o ser.

Assim sendo, não encontramos nada mais “Real” na sala de máquinas da produção capitalista do que nos seus balcões comerciais ou nas suas cabines especulativas. Os dois últimos corrompem o primeiro: na sua maioria esmagadora, os objetos produzidos por este tipo de maquinaria – apontando apenas para o lucro e para especulações derivadas que são a parte mais rápida e mais considerável deste lucro – são feios, embaraçosos, inconvenientes, inúteis, e é necessário gastar biliões para persuadir as pessoas do contrário. Isto pressupõe transformar as pessoas em crianças mimadas e eternos adolescentes cuja existência consiste simplesmente em arranjar novos brinquedos.

O regresso ao Real não pode ser um movimento que conduz a má especulação "irracional" de volta à produção saudável. É o retorno à vida imediata e reflexiva de todos os que habitam este mundo. É apenas através desse ponto de vantagem que se pode observar o capitalismo sem estremecimento, incluindo o filme catástrofe que ele está infligindo actualmente sobre nós. O Real não é este filme, mas o seu público.

Então o que vemos, se virarmos deste modo tudo ao contrário deste modo? Vemos, e isto é o que significa ver, coisas simples que sabíamos há muito tempo: o capitalismo é nada mais do que roubo, irracional na sua essência e devastador no seu desenvolvimento. As suas poucas décadas de prosperidade selvaticamente desigual sempre se fizeram à custa de crises nas quais quantidades astronómicas de valor desaparecem, expedições punitivas e sangrentas a cada zona que o capitalismo julga ser estrategicamente importante ou uma ameaça, e guerras mundiais que o devolveram à sua saúde.

Aqui reside a força didáctica do visionamento deste filme da crise. Face à vida da gente que o olha, ainda nos atreveremos a orgulharmo-nos de um sistema que delega a organização da vida colectiva ao mais básico dos impulsos – ganância, rivalidade, egoísmo irreflectido? Podemos cantar os louvores de uma “democracia” cujos líderes fazem a licitação da apropriação financeira privada com tal impunidade que chocariam o próprio Marx, que no entanto já havia definido os governos, há cento e sessenta anos, como "os agentes do capital"? O cidadão comum deve “perceber” que é impossível compor o buraco da dívida da segurança social, mas que é imperativo encher de biliões o buraco financeiro dos bancos? Temos que aceitar sombriamente que já não é possível nacionalizar uma fábrica ameaçada pela competição, uma fábrica que emprega milhares de funcionários, mas que já é óbvio fazê-lo com um banco que ficou sem dinheiro por causa da especulação?

Neste negócio, o Real deve ser encontrado do lado mais perto da crise. Pois de onde vem então toda esta fantasmagoria financeira? Simplesmente do facto de, por créditos miraculosos pendentes diantes dos seus olhos, as pessoas destituídas dos meios de as comprar, foram encorajadas na compra de casas vistosas. Os títulos de dívida dessas pessoas foram então vendido e misturados, como se faz com drogas sofisticadas, com produtos financeiros cuja composição se mostrou tão científica como opaca por batalhões de matemáticos.

Tudo isso então circulou, aumentando o seu valor de venda em venda, em bancos cada vez mais distantes. Sim, a medida material desta circulação deve ser encontrada nas casas. Mas foi o suficiente para o mercado imobiliário abrir falência e, como esta medida desvalorizou e os credores exigiram mais, os compradores tornaram-se cada vez menos capazes de pagar as suas dívidas. E quando finalmente eles não puderam de todo pagá-las, a droga injectada nos produtos financeiros envenenou-os a todos: estes deixaram de valer o que quer que fosse. Mas isto parece ser um jogo de soma nula: o especulador perde a sua aposta e os compradores as suas casas, das quais são polidamente desalojados. Mas o Real deste jogo de soma nula fica como sempre no lado da colectividade, da vida comum: no fim de contas, tudo tem origem no facto de existirem milhões de pessoas cujos salários, ou a ausência deles, as tornam absolutamente incapazes de se alojarem. A verdadeira essência da crise financeira é uma crise de alojamento. E aqueles que não encontram casa não são os banqueiros, seguramente. É sempre necessário regressar à existência comum.

A única coisa que podemos esperar deste assunto é que este poder didáctico pode ser encontrado nas lições deste drama severo vivido pelo povo, e não pelos banqueiros, os governos que os servem, e os jornais que servem esses mesmos governos. Este regresso ao Real tem dois aspectos relacionados. O primeiro é claramente político. Como o filme mostrou, o fetiche "democrático" é simplesmente o empregado zeloso dos bancos. O seu verdadeiro nome, o seu nome técnico, como defendi há algum tempo, é o parlamentarismo-capitalista. É aconselhável, como várias experiências políticas que começaram ser feitas nos últimos vinte anos, organizar uma política de uma natureza diferente.

Tal política está, e estará sem dúvida durante muito tempo, a uma grande distância do poder estatal, mas não importa. Ela começa ao nível do real, pela aliança prática entre aqueles que são o mais imediatamente disponíveis para inventar tal política: os proletários recentemente chegados de África e outros lugares, e os intelectuais que herdaram as batalhas políticas das últimas décadas. Esta aliança crescerá com base no que será, ponto por ponto, a sua capacidade de realização. Não entreterá nenhuma espécie de relação orgânica com os partidos existentes nem com o sistema eleitoral e institucional que os sustém. Ela irá inventar a nova disciplina daqueles que não têm nada, a sua capacidade política, a ideia nova daquilo que se parecerá com a sua vitória.

O segundo aspecto é ideológico. Devemos derrubar o velho veredicto segundo o qual este seria o tempo do “fim de ideologias”. Hoje podemos ver claramente que a única realidade deste suposto fim se encontra no slogan “salvem os bancos”. Nada é mais importante do que recuperar a paixão das ideias e contrapôr o mundo tal como ele é com uma hipótese geral, a certeza anticipada de um estado de coisas inteiramente diferente. Ao espetáculo nefasto do capitalismo, opomos o Real dos povos, da existência de todos no movimento próprio das ideias. O tema de uma emancipação da humanidade não perdeu nenhum do seu poder. Sem dúvida que a palavra "comunismo", que durante muito tempo serviu para denominar este poder, foi desvirtuada e prostituída.

Mas hoje, o seu desaparecimento só beneficia os advogados da ordem, os actores fervorosos do filme catástrofe. Mas ressuscitaremos o comunismo na sua claridade novamente descoberta. Esta claridade é também a sua virtude mais velha, como quando Marx disse do comunismo que ele "quebra da forma mais radical com ideias tradicionais" e que ele trará consigo "uma associação na qual o desenvolvimento gratuito de cada um é a condição prévia do desenvolvimento gratuito de todos".

O corte total com o o parlamentarismo-capitalista, a invenção de uma política nivelada com o popular Real, a soberania da ideia: está tudo lá, tudo o que precisamos para nos elevarmos e virarmo-nos para longe do filme da crise.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

O Natal e a Monstruosidade de Jesus

Este ano recebi uma prenda de Natal especial. Nesta data infestada de pais natais trepadores e consumismo atroz, é interessante lembrar a interessante coincidência de um sujeito que faz anos precisamente no Dia de Natal. Chama-se Jesus Cristo. E nesta "monstruosidade de Cristo", Zizek defende uma perspectiva marxista, lacaniana e hegeliana de Jesus. Zizek defende rigorosa e ardentemente o ateísmo como a única maneira de se ser verdadeiramente cristão, defendendo ao mesmo tempo os termos de uma ética materialista.
«Quando as pessoas imaginam toda a espécie de sentidos profundos porque as "assustam as palavras que dizem: Ele fez-se Homem", aquilo que na realidade receiam é perderem o Deus transcendente que garante o sentido do universo, Deus como o senhor oculto que move os cordelinhos - em seu lugar encontramos um deus que abandona a sua posição transcendente e se precipita na sua própria criação, comprometendo-se com ela até à morte, o que faz com que nós, seres humanos, fiquemos sem qualquer Poder superior que olhe por nós, sem outra coisa que não seja o terrível fardo da liberdade e da responsabilidade pelo destino da criação divina e, portanto, do próprio deus. Não continuarão hoje a recear demasiado assumir todas as consequênciaqs dessas palavras? Não preferirão aqueles que se dizem "cristãos" guardar a imagem confortável de um Deus sentado lá em cima, que observa benevolentemente as nossas vidas, nos envia o seu filho como símbolo do seu amor, ou, ainda mais confortavelmente, com a simples imagem de uma força Superior impessoal?"
Slavoj Zizek

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Gonçalo Tavares - Jerusalém

Li há pouco tempo este magnífico romance de Gonçalo Tavares, Jerusalém. Apelidado em França de Kafka português, com uma escrita lúcida, concreta e dura, Gonçalo Tavares transporta-nos para um mundo de personagens sui generis, entre eles o doutor Theodor Busbeck que quer fazer um estudo sobre a distribuição do horror na história humana e que entende necessária a busca de Deus como critério de saúde mental:

"Theodor era absolutamente saudável, em qualquer parâmetro que fosse considerado. Fisicamente, mentalmente e espiritualmente. Estas três categorias eram, aliás, para Theodor uma espécie de pontos cardeais indispensáveis à existência com saúde. Era, a este nível, bem mais flexível do que a maior parte dos seus colegas de clínica mental que reduziam a saúde ao estado em que os músculos fazem o que nós queremos e nós queremos algo de sensato. Para Theodor, a este indivíduo, faltaria ainda a normalidade espiritual. E o que era esta? Eis a fórmula: falta algo ao homem normal, ao homem dito saudável, e ele - como qualquer criança - procura encontrar o que lhe falta, principalmente porque esta sensação de roubo: alguém ou algo que me levou uma parte - parte, continuemos a chamar-lhe assim, espiritual -, então, o homem normal, o homem saudável, vai à procura do ladrão e do objecto roubado, mas neste caso, ele não percebe aquilo que lhe foi roubado, não conhece a forma e o conteúdo da substância que agora lhe faz falta. Descobrir o que fora roubado a nível espiritual, era, para Theodor, um objectivo indispensável. O homem saudável quer encontrar Deus, dizia Busbeck de modo mais directo."

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A Mercantilização do Saber e a Universidade como Estrutura de Certificação de Título Nobiliárquicos

"A cultura superior ainda existe. E mais acessível do que nunca. É lida, vista e ouvida por mais pessoas do que jamais o fora; porém a sociedade bloqueou há muito tempo os domínios espirituais dentro dos quais essa cultura poderia ser entendida em seu conteúdo cognitivo e em sua verdade determinada. O operacionalismo no pensamento e no comportamento remete estas verdades à dimensão pessoal, subjectiva e emocional; nessa forma podem ser facilmente ajustadas ao existente - a transcendência crítica e qualitativa da cultura é eliminada e o negativo integrado no positivo. Os elementos oposicionais da cultura são assim enfraquecidos: a civilização assume organiza, compra e vende a cultura; ideias que em sua essência são não-operacionais, não orientadas para o comportamento, são traduzidas em operacionais e referidas ao comportamento; e essa tradução não é uma simples metodologia, mas sim um processo social e até político"
Herbert Marcuse

Da 12ª Assembleia da Organização do Ensino Superior do Porto da Juventude Comunista Portuguesa saiu uma resolução política fruto da reflexão dos camaradas ao longo dos últimos meses em que se sublinhou o processo de mercantilização do ensino, posta em prática pelos nossos (des)governos, em linha com as orientações globais do processo capitalista. Sob este processo faço aqui algumas observações e reflexões.

O novo Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior, prevê a mudança das nossas Universidades Públicas para o estatuto de Fundações Privadas. Isto é o princípio do fim da distinção entre Ensino público e Privado, na medida em que todo o ensino será privatizado. Será privatizado na medida em que as Universidades começam a ter de funcionar sob uma lógica do lucro, tendo o estado cortado substancialmente nos fundos para o Ensino Superior, obrigando as Universidades a subir as propinas e a fazer parcerias com poderes económicos para poderem simplesmente sobreviver.

Quanto ao aumento brutal das propinas no ensino público universitário, que começam a estar em muitos casos equiparadas ao custo de uma qualquer Universidade privada, convém salientar que isto é uma situação criminosa e anti-constitucional. Basta dar uma olhada na nossa constituição:

Artigo 74º:
(...) 2. Na realização da política de ensino incumbe ao Estado:
(...) d) Garantir a todos os cidadãos, segundo as suas capacidades, o acesso aos graus mais elevados do ensino, da investigação científica e da criação artística;
e) Estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino;

Face a isto, faria todo o sentido que o nosso protector máximo da Constituição, o Presidente da República, vetasse tais leis e obrigasse o governo a parar de atacar direitos dos cidadãos consignados na constiuição. Ao invés disso, temos um presidente corta-fitas, que faz discursos totalmente inócuos e ridículos sobre a "necessidade de união dos portugueses" e de que é preciso, face à crise, "não baixar os braços" entre outras banalidades.
O pior é que nos habituámos a ver o cargo de presidente da república ser reduzido a esta figura de mera representatividade simbólica, que nada faz e que nada diz de sério para além de maus discursos de circunstância e gestos vazios. Chega-se até a acreditar que é um cargo que não serve para nada, quando este tem o poder de vetar leis e derrubar governos.

Mas o que há de trágico em tudo isto é mesmo a privatização e gestão pelo lucro a que está sujeito o conhecimento académico. De repente os cursos tornaram-se também mercadoria e as Universidades tornaram-se centros de recrutamento de mão-de-obra barata, de onde saem todos os anos estagiários frescos e inocentes que não precisam de ser pagos, substituídos a cada ano.

Hoje em dia estudar numa universidade já não é um processo de auto e hetero-conhecimento, uma elevação de padrões culturais e sociais e a construção de uma voz crítica e portadora de novos ideais para a sociedade. A Universidade já não é onde vamos buscar o saber e o conhecimento elevado. A Universidade tornou-se um instrumento burocrático de certificação do saber e legitimador de discursos. O conhecimento já não se ensina de uma forma pessoal e edificante, mas sim em pacotes indiferenciados onde os mesmos programas e matérias são dados por professores diferentes e diferentes alunos recebem informação despersonalizada e empacotada para fácil consumo.

Já não é de agora que muitos alunos apenas vão à universidade para verem reconhecidos um título, fazendo todas as artimanhas disponíveis para o fazer. Mas agora, com o advento da Internet, o saber que a universidade propõe torna-se mais supérfluo. Na internet as novidades científicas e culturais circulam mais rapidamente do que nas universidades. Na internet podemos até tirar cursos de engenharia, mecânica, biologia, filosofia, sociologia, astronomia, etc etc. Está lá tudo, se soubermos procurar. É verdade que não tem os livros todos, mas estão lá as referências e as bibliografias que devemos consultar.
O Professor já não é dono do saber, mas apenas um avaliador que certifica o bem papaguear de rezas estabelecidas.

De tudo isto resulta que a Universidade é reformulada num espírito interesseiro: Tira-se um curso não para aprender mais, mas para aceder aos privilégios de uma determinada classe.
A fusão da universidade com o mercado de trabalho que nossos políticos apregoam é, ao contrário do que se pensa, a desqualificação da universidade na sua capacidade de formular conhecimento e ideais de progresso para um mundo novo, e a legitimação e criação de um neo-nobreza cortejadora dos poderes dominantes e da práxis do mercado.

É preciso tornar as Universidades gratuitas e inúteis, de forma a fazer com que entrem lá apenas as pessoas que querem aprender de uma forma desinteressada. Não é só preciso mudar a universidade. É preciso tornar acessíveis ao povo os bens necessários à sua subsistência, para que a universidade possa acolher, não pessoas desesperadas por sobreviver, e que vêm na universidade um intrumento de garantia de privilégios, mas sim todo um povo interessado em aprender a desenvolver-se cultural e socialmente.

É preciso apontar para o crescimento cultural de um povo e não um crescimento económico. Por algum motivo têm-se a ideia generalizada entre os políticos de que o crescimento económico é sempre bom e deve correr para o infinito. Contudo os recursos naturais da Terra não são infinitos. O que é infinito é a possibilidade de crescimento humano.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Wittgenstein sobre Freud

"Uma vez quando Wittgenstein estava a contar uma coisa que Freud tinha dito e o conselho que tinha dado a alguém, um de nós disse que o conselho não lhe parecia muito sábio. Claro que não, disse Wittgenstein. Mas a sabedoria é uma coisa que nunca esperaria de Freud. Esperteza, sem dúvida; mas não sabedoria"

Rush Rhees em Aulas e Conversas - Ludwig Wittgenstein

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Elbow - Seldom Seen Kid


Um dos melhores álbuns deste ano. Saquem o álbum aqui, e vejam também este vídeo de "Grounds for Divorce":

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Budismo e Avaliação de Professores


O famigerado processo de avaliação de professores instituído por este nosso (des)governo, tem feito correr muito sangue. Bem... sangue não. Tem feito correr muita... tinta vermelha. Os professores queixam-se da excessiva burocratização da profissão e de estarem a ser usados por exemplo, como vendedores de computadores magalhães, desvirtuando as suas nobres funções de elevar o nível de cultura e sabedoria de um povo.

Há um paralelismo que se pode encontrar entre esta situação e um momento particular da história do Japão no período Edo (1615-1867) na forma como eram tratados na altura os monges budistas. No início do período Edo, o Japão foi reorganizado inteiramente por um poder ditatorial, assistido por uma burocracia eficaz e minunciosa. O Budismo perdera sua influência política, tendo passado a ser regida pelo estado, graças aos sistemas dos danka (paroquianos). Os pobres monges para além de terem de mostrar ao povo o caminho da iluminação e libertação, tinham por exemplo que atender os japoneses que estavam obrigados a registarem-se num templo, próximo do qual cada família teria seu jazigo, num processo semelhante ao de um recenseamento.

Assim, tal como os professores portugueses, fizeram dos monges budistas meros serventuários de paróquias, com um estatuto de funcionários e rendimentos derivados de funerais e de outras cerimónias e serviços. Com isso fizeram com que muitos monges budistas Zen, das escolas Rinzai e Soto se recusassem a submeterem-se a um poder que não se limitava a nomear abades e dignatários, mas chegava ao ponto de regulamentar a vida quotidiana dos monges. Também aqui em Portugal, em 2008, vemos muitos professores a reformarem-se mais cedo e a oporem-se a um governo que teima em sobre-regulamentar burocraticamente a profissão.

Pequena nota - Partilho da opinião mais radical e ao mesmo tempo mais sensata que já ouvi sobre isto. Deixem os professores serem avaliados, não pelo ministério, nem os professores uns pelos outros, mas sim pelo elemento da comunidade escolar a quem mais interessa tudo isto: os alunos

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Elogio da Vida Simples - Lanza del Vasto

Esta sexta-feira às 22h, dia 5 de Dezembro, não percam esta apresentação do livro "Elogio da Vida Simples" de Lanza del Vasto, no Clube Literário do Porto. A tradução desta obra foi realizada pelo Psicólogo Paulo Lima Santos, e é ele mesmo que irá fazer esta apresentação. Lanza Del Vasto foi um padre católico que viajou a pé de Itália até à Índia e que, entre outras coisas. foi discípulo de Gandhi.

Pretendia eu transcrever aqui uma ou outra passagem mas perdi-me a olhar para o livro tal o poder e choque causado por muitas das duras e belas afirmações de que é composta esta obra formidável.

"Para não odiar ninguém, hás-de odiar muitas coisas"

" Aquele que não morre por alguma coisa morre por nada. Eis porque eu sustento que é mais sábio ousar"

"A morte é um absurdo: Aquilo que é não pode cessar de ser. Mas nós morremos: porque esta vida não é o nosso ser, mas falta dele."

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Crise? Qual Crise?

Hoje apresento aqui um álbum dos Supertramp para ouvir em tempos de crise. A capa é inspiradora para os tempos que correm:


Supertamp - Crisis, What Crisis? pode ser sacado aqui.

domingo, 23 de novembro de 2008

Futebol, Nacão, Einstein e Freud



Hoje, venho aqui falar de futebol, reagindo tardia, mas não menos oportunamente, à estrondosa derrota de Portugal com o Brasil. Tamanha derrota suscitou as mais variadas reacções nos portugueses, pelo que pude observar.

Por um lado, perder por 6-2 é mau. Mas perder com o Brasil é pior. Isto porque o que está em jogo é o chamado orgulho nacionalista. Descontruindo este sentimento de nacionalidade em perigo, no fundo, os brasileiros são tão parecidos connosco que ameaçam a nossa identidade. Quando vemos jogadores como Deco e Pepe a serem tão portugueses como os outros, a cantarem igualmente o hino, a portugalidade está em perigo.

O mesmo raciocínio que Bauman fez em relação aos judeus na Alemanha, pode ser aplicado aqui: os brasileiros naturalizados portugueses não podem ser brasileiros, nem podem ser efectivamente portugueses, por muito que se esforcem. O esforço só denuncia, aliás, o carácter artifical da nação, tornando-os indesejáveis. Vivem em situação de ambivalência. Não podemos chamar-lhes nem amigos, nem inimigos. São os estranhos. Resistem à categorização, minando então as nossas próprias categorias e identidade.

A partir daí, os jogos com o Brasil têm mais importância. No fundo, tudo é uma questão de superioridade e de inferioridade. Trata-se do poder de definir os outros como amigos e inimigos, de se ultrapassar os outros como estranhos, para se poder estabelecer uma troca simbólica. As nações não têm outro sentido que não esse.

Por estas alturas, há também intelectuais que esperam que, no fundo, os portugueses deixem de ligar tanto à bola, argumentando que esse é um tipo de patrotismo menor. Dizem que os portugueses deviam orgulhar-se de outros feitos mais científicos, culturais e artísticos.

Contudo, um tipo de identificação patriótica desse tipo, por muito louvável que seja, não poderá, talvez, ser comparável ao lado mais corporal, competitivo, catártico e selvagem (porque não) que o futebol coloca em jogo. O futebol tem um elemento de tragédia e glória que não é possível menosprezar.

Tal como os desportos em geral, o futebol contém em si o que se poderia chamar lei da vitória, em que é posta em jogo uma luta pela supremacia de uns povos sobre outros. Os nacionalismos, na sua essência mais histórica, podem traduzir-se como uma luta de poderes. Ao constituir-se como grupo homogéneo, é-o na defesa de uma identidade perante outros grupos.

O nacionalismo surgido como necessidade de união perante um mundo hostil é mais forte quando uma nação se sente ameaçada. Tal como um ego é tanto mais egoísta quanto mais se sente ameaçado no seu orgulho e auto-estima.

Se dantes a guerra era o momento em que se poderia ver uma nação realmente unida por uma rede de identificações comuns, que depois experimenta vitórias ou derrotas,
o desporto é dos poucos fenómenos em que se conserva intacta esta lei da vitória. Há uma troca simbólica profunda entre os povos, quando se trata de ver países jogar uns contra os outros.

O advento do desporto moderno não se pode dissociar do advento do estado de direito moderno, que trocou o conflito físico e violento entre os homens, por um confronto regido por leis, o que se pode chamar jogo, e que está na base de qualquer processo civilizacional. O estado de direito não elimina a violência, pois é a violência que suporta esse mesmo estado de direito gerido por leis, em que a violência é neste caso aplicada a quem não respeita as mesmas leis.

O futebol é, em síntese, o retrato perfeito daquilo que é o estado moderno, com o interesse extra de ser ainda possível ver em cena um confronto físico vivo, levando isto à catarse colectiva que todos conhecemos.

Trata-se aqui no fundo de sublimar uma pulsão de morte do ser humano, que se tem demonstrado ao longo da história por intermédio de uma luta de poderes intensa.
Será que podemos, como seres humanos, algum dia ultrapassar este "instinto de competição", necessidade de domínio e poder a que Freud chamou de pulsão de morte?

Sobre isto recomendo a leitura de uma carta fabulosa que Einstein escreveu a Freud, perguntando o seguinte:

"Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra? É do conhecimento geral que, com o progresso da ciência de nossos dias, esse tema adquiriu significação de assunto de vida ou morte para a civilização, tal como a conhecemos; não obstante, apesar de todo o empenho demonstrado, todas as tentativas de o solucionar terminaram em lamentável fracasso.
"

A restante carta de Einstein, reveladora de um humanismo ímpar por parte do cientista, complexifica já a questão de uma forma bastante interessante. Freud, por sua vez, respondeu à letra num documento fantástico, adiantando a certa altura o seguinte:

"permita-me substituir a palavra ‘poder’ pela palavra mais nua e crua violência’? Atualmente, direito e violência se nos afiguram como antíteses. No entanto, é fácil mostrar que uma se desenvolveu da outra e, se nos reportarmos às origens primeiras e examinarmos como essas coisas se passaram, resolve-se o problema facilmente. (...) É, pois, um princípio geral que os conflitos de interesses entre os homens são resolvidos pelo uso da violência. É isto o que se passa em todo o reino animal, do qual o homem não tem motivo por que se excluir. (...) A violência podia ser derrotada pela união, e o poder daqueles que se uniam representava, agora, a lei, em contraposição à violência do indivíduo só. Vemos, assim, que a lei é a força de uma comunidade. Ainda é violência, pronta a se voltar contra qualquer indivíduo que se lhe oponha; funciona pelos mesmos métodos e persegue os mesmos objetivos. A única diferença real reside no fato de que aquilo que prevalece não é mais a violência de um indivíduo, mas a violência da comunidade."

Assim sendo, a violência torna-se lei, e o processo de civilização não tem outro sentido que o aprofundar da constrição, controlo e educação do nosso corpo sob determinadas formas de gerir o corpo definidas pela sociedade. Comer com as mãos por exemplo não é "civilizado", comer com o auxílio de um instrumento, pelas leis que a comunidade instituíram, já é civilizado. Somos tão mais civilizados quanto mais refinado e obsessivo for o controlo social que exercemos sobre os nossos corpos. Em termos de violência, tudo continua igual, há somente, no máximo, um deslocamento desta violência fundadora da civilização do confronto físico, para o confronto de opinião, de interesse, de lei.

O futebol é paradigma da civilização ocidental moderna na forma como educa, constringe e controla os corpos de uma forma planeada, científica e controlada, preparando-os para a competição entre equipas/comunidades, sendo o jogo de futebol um sistema de confrontos violentos regidos por leis. No futebol, a violência não deixa de existir, mas somente ela pode aí assumir uma forma adequada. O futebol jogado pelo respeito máximo pelas leis pode chegar então a ser um acto moral. Como disse Deleuze em referência a Kant, "a lei define-se (...) como pura forma de universalidade. Ela não nos diz qual o objecto da que a vontade deve perseguir para ser boa, mas qual a forma que deve tomar para ser moral."

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Foreign Movies: Milhares de bons filmes de todo o mundo (à borla)

O Título diz tudo: neste blog encontrarão incontáveis bons filmes prontos para sacar. Tem categorias por realizador e por país. Podem encontrar filmes albaneses, vietnamitas, arménios, italianos, coreanos, franceses, checos, dinamarqueses, canadianos, finlandeses, alemães, indianos, romenos, russos, eslovacos, espanhóis e realizadores como Hitchcock, Tarkovsky, Bertolucci, David Cronenberg, David Lynch, Kusturica, Fellini, Francis Ford Coppola, Truffaut, Gus Van Sant, Ingmar Bergman, Godard, Ki-duk Kim, Lars von Trier, Scorsese, Almodóvar, Tarantino, Kubrick, Tim Burton, Wim Wenders, Wong Kar Wai, Woody Allen e muitos muitos mais. Tudo para download. À Borla.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Roberto Matta: Listen to Living






















Roberto Matta: «Listen to Living» 1941, oil on canvas

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Royale Rendezvous: Guitarradas, Rock e Coboiada

Hoje venho aqui fazer o papel de divulgador de música portuguesa. Já há tempos tinha falado dos Godot. Este último sábado eles voltaram ao Pinguim no Porto, mas desta vez deram um concerto mais curto pois a seguir a eles vieram os Royale Rendezvous. Estes três rapazes vieram de Leiria para nos mostrar a sua música que eu diria que está algures (assim de repente) entre os Dead Combo, Dr Frankenstein e uma banda sonora de filmes do Tarantino, formando uma espécie de rock de cóbois. Tive a oportunidade de estar com dois deles no fim, o Telmo e o António, com quem mantive conversas filosóficas de alto nível com o patrocínio da Super-Bock. É tudo gente boa, que gosta de rock, filosofia de taberna, coboiada e guitarradas, sendo que ainda fomos acabar a noite a ouvir Iggy Pop, Joy Division e Doors. Ide ao Myspace ouvir as músicas, ou façam melhor e vejam ao vivo. Recomendo.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Obama, Pós-Modernidade e Walt Whitman

Os Estados Unidos da América têm um novo presidente, eleito com uma participação nunca antes vista desde 1908, ou seja há cem anos, que os americanos não votavam tanto. 66%, ou seja dois terços dos americanos, foram votar.

Quem é este homem, Barack Obama, que um dia se emocionou ao compreender as suas raízes africanas no Quénia, terra do pai que nunca conheceu verdadeiramente? Quem é este homem que que diz ter como referências literárias e filosóficas, entre outros, Shakespeare, Hemingway, Mark Twain, John Steinbeck e Nietzsche?

Obama nasceu no Hawai, filho de negro queniano e mulher branca do Kansas, viveu com padrasto muçulmano na Indonésia, voltou para os EUA e mais tarde foi para a urbe de Chicago. Nos tempos de liceu, diz Obama que "tinha amigos brancos e amigos negros. Ia às festas de uns e dos outros. Falava "à branco" ou "à preto", integrava-se em ambas as realidades" mas angustiva-se por não pertencer verdadeiramente a nenhuma delas. Tentou misturá-las, mas não conseguiu.

Kurt Lewin diz-nos que "é característico dos indivíduos que cruzam o limite entre grupos sociais não estarem seguros de pertencer ao grupo no qual estão a entrar nem também àquele de que estão a sair... a causa da dificuldade não é pertencer a muitos grupos, mas a incerteza quanto a pertencer a qualquer um deles.

Esta ambivalência é a condição nata do ser-humano actual pós-moderno. Kurt Lewin é citado por Zygmunt Bauman em "Modernidade e Ambivalência" que nos fala daquilo que é e ficou conhecido como Modernidade, um projecto de nova ordem social herdeiro das tradições filosóficas do iluminismo, que apelavam á ascenção da razão à categoria de verdade, na tentativa de renegar as paixões, supertições e crendices humanas, uma tentativa de combater a ambivalência presente no espírito humano.

O que está subjecente a este projecto de ordem social, é esta visão do jardineiro em que, ao definir muito bem como deve ser o jardim, faz surgir as ervas daninhas. As ervas daninhas só existem na medida em que não encaixam no plano do jardineiro. Assim, de certa forma, é o jardineiro que dá origem á erva daninha, e que origina uma luta sem fim para a combater, por causa da divisão que criou.

A pós-modernidade surge como falhanço deste projecto e o ressurgir da ambivalência. Bauman usa o exemplo dos judeus na alemanha como exemplo do primeiro povo que pode experimentar o que mais tarde se tornou universal: somos todos estranhos, por definição deslocados: já não existe uma identidade colectiva nativa natural, as nossas identidades são algo que é preciso construir. E os deslocados deste mundo experimentam portanto, a condição de estranho universal de cada um de nós neste mundo.

Bauman fala-nos dos judeus na Alemanha como o povo nómada que, nos anos anteriores à segunda grande guerra, foram convidados a aderir ao projecto de assimilação alemão, ou seja a tornarem-se alemães, a abdicar dos privilégios que tinham anteriormente em que vivam em comunidades auto-geridas e com leis próprias dentro do território alemão. Uma geração de judeus como Marx, Freud, Kafka, etc, viveram neste espaço intermédio de não poder voltar para atrás para aquilo que eram os seus antepassados judeus, nem ter a possibilidade de poderem ser verdadeiramente alemães por muito que se esforçassem. Aliás, quanto mais os judeus se esforçavam por serem alemães, mais óbvio era o seu fracasso pois, os alemães tinham medo desta noção de "germanidade" artificial, que pode ser adquirida por esforço. Os alemães posteriormente enfatizavam o "ser alemão" como algo racial, natural, fruto dos genes, nativo. Esta defesa, produto ainda da visão jardineira racional moderna, fracassou com Hitler no expoente desta derrota. Depois, finalmente quando os judeus se estabeleceram, já se encontraram num mundo em que não havia jardineiro para os admitir como plantas autorizadas, num mundo multiculturalista e globalizadao em que os projectos nacionalistas europeus falharam e já não há verdades impostas e absolutas (que era o que antes legitimava as identidades individuais)

Onde é que isto nos leva a Obama? Dizem os especialistas que Obama subiu ao poder através de 98% do voto dos afro-americanos, 68% por cento do voto hispânico e 63% dos votos dos asiáticos. Foi aliás, assim, que esta eleição se torna histórica, pois finalmente os americanos puderam ver em Obama alguém que carrega o fardo de ser estrangeiro num país onde todos são estrangeiros

E de facto, o que os Estados Unidos da América têm de único o facto de serem o fruto novo advindo do falhanço dos nacionalismos europeus. Os Estados Unidos são o país pós-moderno por excelência, onde não há uma identidade nativa natural propriamente dita mas sim uma mescla de culturas, não há uma identidade natural, mas sim, e sempre, uma identidade a ser construída socialmente por diferenciação individual. Os mais deslocados deste mundo, os emigrantes, os que são filhos de estangeiros em terra estrangeira, são, portanto, os que vivem mais agudamente a ambivalência universal do ser humano.

Reparem num pequeno bocado (exemplificativo) do discurso da vitória de Barack Obama:
"(Esta noite) Foi a resposta dada por jovens e velhos, ricos e pobres, Democratas e Republicanos, negros, brancos, latinos, asiáticos, homossexuais, heterossexuais, deficientes, americanos que enviaram a mensagem ao mundo de que não somos somente um conjunto de indivíduos ou um conjunto de estados vermelhos ou azuis. Nós somos, e sempre seremos, os Estados Unidos da América."

Deleuze dizia que os europeus têm um sentido inato da totalidade orgânica, ou da composição, mas eles precisam adquirir o sentido do fragmento, e apenas o podem fazer através de uma reflexão trágica ou de uma experiência do desastre. Os americanos, pelo contrário, têm um sentido natural do fragmento, e que aquilo que precisam de conquistar é o sentimento da totalidade, da bela composição. (...) Neste ponto de vista, o mim dos anglo-saxónicos, sempre rebentado, fragmentário, relativo, opõe-se ao Eu substancial, total e solipsista dos europeus.

Deleuze diz-nos isto num ensaio sobre Walt Whitman. Este poeta foi o primeiro americano talvez, a sonhar o sonho que Obama tenta agora concretizar, dos Estados Unidos como uma totalidade de fragmentos. Deleuze diz que Whitman introduz previamente a ideia de Todo, invocando um cosmos que nos convida à fusão; numa meditação particularmente convulsiva, diz-se hegeliano, afirma que apenas a América "realiza" Hegel, e institui os direitos primeiros de uma totalidade orgânica.

Termino com um poema de Whitman,
poeta das ervas, das pradarias, das uniões indomáveis da natureza, antítese da metáfora do estado nacionalista jardineiro de Bauman, e símbolo de uma universalidade e companheirismo selvagem e fraterno:

























Separando a Erva dos Prados


Separando a erva dos prados, aspirando o seu raro aroma,
Dela reclamo a espiritualidade,
Exijo o mais íntimo e abundante companheirismo entre os homens,
Peço que ergam as suas folhas as palavras, actos, seres,
Esses de límpidos ares, rudes, solares, frescos, férteis,
Esses que traçam o seu próprio caminho, erectos e livres
avançando, conduzinho e não conduzidos,
Esses de indomável audácia, de doce e veemente carne sem mácula,
Esses que olham de frente, imperturbáveis, o rosto dos presidentes
e governadores como se dissessem Quem és tu?
Esses de natural paixão, simples, nunca constrangidos, insubmissos,
Esses da América interior

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Rock dos 70's: Tim Buckley - Greetings from LA
























Ando a ouvir este excelente álbum de Tim Buckley: Greetings from LA. Tim Buckley morreu estupidamente de overdose com 28 anos deixando um legado musical fabuloso e um filho igualmente fabuloso, Jeff Buckley, que haveria igualmente de morrer estupidamente jovem, e com um legado musical igualmente fabuloso.
Façam download deste excelente álbum de 1972 aqui.

domingo, 26 de outubro de 2008

A Crise da Economia Parasitária

Toda a gente fala da crise, se chegou ou não o fim do capitalismo, entre outras coisas que tais. Entretanto temos visto coisas formidáveis. O Presidente da Reserva Federal Americana veio dizer qualquer coisas como "ups, afinal o mercado livre não funciona tão bem como eu pensava".

Na Alemanha, costumava-se vender cerca de 500 exemplares por ano de "O Capital" de Karl Marx. Este ano já se venderam mais de 1500. No mesmo artigo onde vi isto, dá-se conta de uma sondagem feita a alemães de leste que diz que 52% perderam a confiança no mercado livre, e que 43% gostava de voltar a uma economia socialista. Vejam o resto do artigo aqui.

Ah, hoje vi na capa da Visão o seguinte título "Fukuyama diz o que vai mudar no capitalismo". Incrível vindo do homem que dizia que a História tinha acabado. Bastou-me ler o título.

Neste estado de coisas, é sempre bom voltar ao situacionismo de Raoul Vaneigem, com o seu livro "A Economia Parasitária", de 1996. Selecciono aqui algumas passagens:

"A acumulação de dinheiro improdutivo e o estado de uma terra esgotada por ter produzido rendibilidade em vez de alimentar os povos, são coisas que hoje em dia só nos mostram o impasse a que foi conduzida uma economia cujos êxitos se alicerçavam na exploração conjugada da natureza e do homem pelo homem. (...)

As sociedades só mudaram em função das mudanças exigidas por uma economia tributária dos progressos da mercadoria e do trabalho que corrigia a sua execução. A preponderância da agricultura cede terrreno à indústria sob a pressão do comércio e da livre circulação dos bens.

O novo modo de produção, por sua vez, cai em desuso em proveito de um vasto circuito de consumo em que a mercadoria ganha mais em distribuir-se do que em manufacturar-se. Mais rendível, em suma, que a produção e o consumo, a gestão do capital leva a melhor, deixando o planeta entregue ao estado de património fundiário apto para a rendibilidade e inapto para o investimento. (...) uma economia extenuada dedica-se zelosamente a sacar os seus derradeiros benefícios e a concentrá-los no círculo duma especulação internacional onde a sua inutilidade tem cotação na bolsa. (...)

A proliferação da inutilidade e a rarefacção do primordial não podiam encontrar uma forma mais adequada de expressão do que a burocracia financeira internacional, cujo absolutismo estabelece com a sociedade viva uma relação de extraterrestre (...)

A nossa época situa-se no ponto de confluência e de divergência de duas sociedades que rejeitamos, uma porque produz a morte, a outra porque prefere à vida a sua mentira lucrativa.

A cibernetização dos lucros prepara-se para reduzir ao mínimo um trabalho condenado em virtude da sua rendibilidade decrescente. O desemprego, as reduções de salários e a supressão das regalias sociais expõe nas tabelas mundiais das cotações bolsistas os mandamentos do Deus caprichoso que reina nos mercados e nos lares. Cada qual se vê obrigado a sacrificar-se-lhe como ao velho Jeová, que, oprimindo os seus fiéis com desgraças, os ameaçava com outras ainda maiores se deixassem de os adorar. Ora, ao contrário da sobrevivência, a vida não é competitiva. (...)

Rejeitamos uma relação de forças em que a vontade de poder volte a ter rigor espiritual, ou uma relação de torca onde o vivo se degrada em coisa morta. A nossa época precisa de uma grande lufada de ar fresco, que volte a vivificá-la. Há-de vir o tempo em que cada indivíduo, rejeitando a apatia de que o poder letárgico extrai a força necessária a oprimi-lo, se há-de tornar guerreiro sem armadura e sem outra arma que não seja uma invencível força de viver. Que sem tréguas ele combata em prol daquilo que tem de único e de mais encarecido no mundo, a sua própria existência, verdadeiro campo de batalha onde nervos, músculos , sensações e pensamentos respondem à solidão de desejos ofuscados pela paixão de fruir, vendo-se contrariados, recalcados, mutilados e negados pelos mecanismo deuma economia que explora o corpo exactamente como explora a terra."

sábado, 25 de outubro de 2008

Paulo Coelho e Música de Supermercado: cultura "light" sem riscos nem danos colaterais.

Num blog aqui ao lado, comentava-se uma entrevista de Eduardo Lourenço em que este por sua vez comentava Paulo Coelho. Este dizia que aquilo não era bem literatura. Era uma literatura "light"

Eu confesso ter lido dois livros de Paulo Coelho. Acho que é um crime dos intelectuais suponho. Entre gente que leia coisas a sério como Flaubert ou Dostoievsky, ler Paulo Coelho é muito mau, é tabu. Eu estive lá. O que eu acho? É uma literatura tão fácil, tão fácil que eu li aquilo quase por acidente. Li uma página, duas, mas aquilo é tão "light" que, como que se escorrega nas mãos e de repente leste um livro do paulo coelho. Ler um parágrafo ou dois de Deleuze demora tanto tempo como 2 ou 3 livros de Paulo Coelho.

É uma literatura segura, sem riscos. Se Nietzsche é um soco no estômago, Paulo Coelho é uma brisa que faz cócegas, no máximo. A literatura no seu expoente máximo é uma agressão brutal da nossa identidade, uma violação das coordenadas do nosso ego. Num mundo em que todos andam inseguros com seus pequenos eus que tanto querem preservar, e de gente que não se quer incomodar muito com leituras que exijam muito, paulo coelho é ideal para quem apenas quer ver confirmados os seus preconceitos, sua pequena visão do mundo, seu cantinho abrigado do caos. Paulo Coelho é como aquela música de supermercado ou da rádio que, não sendo nunca obras-primas, nunca chega a ser mau. Essencialmente, preenche um vazio sem agredir muito.

Uma vez um amigo quis mostrar à colega de trabalho Jeff Buckley, para ver se elevava sua cultura musical acima dos hip-hops MTV e do pop-rock romântico RFM. Não gostou. Disse que era música triste. Aí está o paradigma: não uma música que nos emocione, mas sim uma música que simplesmente encha e preencha um vazio. Uma música segura e uma literatura segura, testada e controlada.

A cultura no seu pleno é emocionalmente violenta. É uma cultura que incomoda, que nos aproxima das angústias essenciais da vida ao invés de nos manter indefinidamente e neuroticamente alienados. Em suma uma cultura que nos remeta para a angústia primordial de termos nascido. Que nos faça regredir para poder crescer, ao invés de nos mantermos em repetições compulsivas de velhos hábitos e rituais do nosso euzinho.

A cultura não é para qualquer um. Não é uma receita de farmácia, remédio dos coitadinhos. A cultura é para os corajosos, crentes e curiosos. É para deixar quem somos em casa, e aventurar-se na descoberta do que ainda nos falta ser. É para quem não lhe basta não querer morrer, é para quem tem sede de viver.

Expose yourself to your deepest fear; after that, fear has no power, and the fear of freedom shrinks and vanishes. You are free.
Jim Morrison

Got a lust for life, Yeah, a lust for life. I got a lust for life
Iggy Pop


Zizek - Entrevista de Respostas Curtas

Encontrei uma entrevista deliciosa com Slavoj Zizek, de perguntas e respostas curtas (para variar), na edição on-line do Guardian. Deixo aqui alguns pontos altos:

When were you happiest?
A few times when I looked forward to a happy moment or remembered it - never when it was happening.
(...)
What makes you depressed?
Seeing stupid people happy.

What do you most dislike about your appearance?
That it makes me appear the way I really am.
(...)
What would be your fancy dress costume of choice?
A mask of myself on my face, so people would think I am not myself but someone pretending to be me.
(...)
What or who is the love of your life?
Philosophy. I secretly think reality exists so we can speculate about it.

(...)
What is the most important lesson life has taught you?
That life is a stupid, meaningless thing that has nothing to teach you.

Tell us a secret.
Communism will win


Vejam o resto aqui: http://www.guardian.co.uk/lifeandstyle/2008/aug/09/slavoj.zizek

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Novas Ligações Rizomáticas

Acrescentei 2 novas ligações.

A primeira é o blog Trans-ferir: Tem referências como Lacan, Agamben e Bob Dylan, é da autoria do Vítor Oliveira Jorge, arqueólogo, poeta, ensaísta, professor da FLUP.

Outro blog é o Flutuante. A autora andou por aqui a espalhar comentários polvilhados de referências. Segui o rasto e acho que é um sítio que vale a pena espreitar: filosofia, literatura, cinema e coisas assim.

O Medo, Marca Registada do Capital

"A obdediência que outrora justificava o temor dos deuses, exigem-na hoje dos povos, com a mesma firmeza, as leis de mercado que substituiram esses deuses."
Raoul Vaneigen

O mundo mercantil capitalista em que vivemos, tem como sustento maior, o sentimento do medo. Sim, o medo. Compra bifidus activus senão ficas a preto e branco sem côr, como no anúncio. Compra este pacote de seguros para todos os riscos pois não se sabe o dia de amanhã, podes ter um acidente, ser apanhado num terramoto, ataque terrorista, morrer de ataque cardíaco. Compra iogurte magro pois podes engordar, ficar desagradável e ninguém gostar de ti. Compra esta roupa da moda pois uma mulher desactualizada não atrai, está desfasada, é de mau gosto. Compra outro par de sapatos pois os que tu tens podem-se estragar.

Em suma, o maior argumento para vender mercadoria, e nisto podem consultar os manuais do marketing, é o de que os produtos satisfazem necessidades. Então como é que a nossa psique reconhece uma necessidade? Através do sentimento do medo. O medo é o sentimento que nos sinaliza os potenciais perigos e potenciais ameaças. O medo nunca é a coisa mesma, mas sim algo que o antecede. O medo vem sempre por antecipação senão não tinha utilidade evolutiva. O medo vem sempre antes do real perigo, e daí o poder incrível que o medo tem, pois não tem fim a nossa imaginação daquilo que é possível acontecer de mal.

Há quem diga que o maior medo de todos é o medo da morte. Sendo assim, vivemos numa sociedade da morte, onde toda a nossa imaginação e ilusão está subordinada ao sentimento do medo de morrer. A verdade é que não é possível vender nada a um homem que não tenha medo da morte. Nem mesmo comida. Para o homem que não teme a morte, toda uma sociedade parece um castelo de cartas ridículo. Não é por acaso que nós modernos temos tanto celeuma com o suicídio e a eutanásia. Lembremo-nos que o que alimenta o comércio é o medo da morte, não a morte em si. O medo é sempre algo que antecede a coisa mesmo. A coisa mesmo, a morte, não serve de muito se queremos prolongar o medo. É sempre preciso deixar com que a morte nunca chegue a vir, mas que ela esteja sempre presente.

"A obsessão da morte, a vontade de abolir a morte através da acumulação, torna-se o motor fundamental da racionalidade da economia política"
Jean Baudrillard

Por isso temos a medicina que em casos determinados nos prolonga a vida até aos 100 anos com a condição de andarmos entubados, comatosos, inúteis, não vivos, mas também não mortos ainda. Assim damos emprego a vendedores de soro, camas, enfermeiros, médicos, farmacêuticos.
O mesmo raciocínio é válido para tudo: o crime dá emprego a polícias, advogados, magistrados e juízes; a pressa dá emprego aos construtores de automóveis, a doença mental dá emprego a psicólogos, psiquiatras, videntes e bruxos; e os desempregados dão emprego a muita gente: todos vivemos bem sobre o mal dos outros.

Os outros, sempre os outros. O maior medo de todos não é a morte. O maior medo de todos é o de ficar sozinho. Quem não tem medo de morrer tem para si assegurado uma companhia no além, ou então sabe para si que ele mesmo não existe separado de nada. As boas companhias não se compram. A vida não se compra, mas pode-se vender pois somos todos necessariamente uns vendidos (o que fazes da vida? sou isto, aquilo, camionista, corretor). O que não se compra é a boa companhia. Só o medo se compra e se vende desmesuradamente.

Fiquem com um "Poema Pouco Original do Medo" de Alexandre O'Neill. (Os Godot têm uma música feita a partir desta bela poesia)

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

The Band

Uma das coisas boas da vida é descobrir uma boa banda de rock dos anos 70. Mas desta vez descobri não uma banda, mas sim A Banda, ou melhor The Band.

















Os The Band eram uma banda de canadianos tida em muito boa conta pela generalidade dos músicos folk e rock da altura, como Bob Dylan que os chegou a levar consigo numa tornée.
A formação original durou apenas entre 1967 e 1976.

No dia 25 de Novembro de 1976 deram um magnífico concerto de despedida com uma dúzia de convidados ilustres como por exemplo Eric Clapton, Neil Diamond, Bob Dylan, Van Morrison, Ringo Starr, Muddy Waters, e Neil Young. Um passarinho disse-me que dava para sacar o álbum desse concerto aqui.

Édipo e Anti-Édipo, A lei moral de Kant como legislação da castração

Transcrevo aqui comentário a um post do Dioniso no seu blog. Vale a pena para todos os amantes da filosofia (e particularmente de Nietzsche e Deleuze) irem visitar o seu "Declínio da Escola".

Freud dizia, se não me engano quanto às suas palavras exactas: "Que necessidade haveria de proibir o que não seria de antemão desejado?". Mas Deleuze e Guattari no Anti-Édipo insurge-se contra esta ligação directa entre a proibição e o desejo, no sentido em que toda a produção de desejo seria eminentemente social na sua génese, que o desejo tem de ser produzido e investido num campo social.

Penso que é possível conciliar o Édipo de Freud com o Anti-Édipo de Deleuze e Guattari (síntese hegeliana?), através da leitura dessa obra formidável de Freud, Totem e Tabu, que mostra como as regras elementares sociais de tribos primitivas, o totem (que designa o clã e a linhagem) e o tabu (as proibições implícitas) tinham a consequência de impedir a consanguinidade. Assim, o filho não podia ter relações sexuais com a mãe, a filha com o pai, nem entre irmãos e irmãs, o que efectivamente corresponde a uma primeira organização social humana, que permitia distinguir as linhagens e ordenar-se socialmente. Aqui é que faz sentido então falar na castração como algo de fundamental para a civilização humana, no sentido em que o desejo tinha de se manifestar na sua estrutura social adequada.

A moral kantiana pode ser considerada então, de certa forma, como uma rigorosa legislação da castração, do que nos torna humanos civilizados.
Só através da castração acedemos à ideia de objecto ideal de amor, onde cabe a ideia de pureza e de impureza. Só quando um objecto de amor tem a possiblidade de ser considerado "impuro" (a mãe e os irmãos) é que se pode chegar à noção de objecto de amor "puro", ideal (a mulher do tipo mãe que será minha, nunca realmente a mãe mesmo) E só aí é possível sermos seres linguísticos, pois a linguagem tem funções, como sugere Baumann, de inclusão e de exclusão, ou da criação de simulacros de Baudrillard, tentando combater a ambivalência do desejo.
A linguagem verbal é neste sentido uma permanente legitimação da pureza da sensualidade da experiência de nossas vidas (sim, neste sentido tudo é sexual e sensual na linguagem).

A lei moral kantiana como concepção do desejo no seu estado puro implica uma concepção do desejo como o inalcançável precisamente por ser puro. A noção de pureza implica um objecto ideal de amor que naturalmente nunca poderá ser satisfeito. Isto implica uma clara cisão (e aí entra a lei) em que todo e qualquer desejo tem necessariamente de ser produzido socialmente. Mas isto é precisamente onde Deleuze e Guattari insistiam tanto, que não devemos voltar a pegar na mãe e no pai para compreender o desejo, mas sim no investimento que é feito em todo um campo social alargado. O esquizofrénico persegue então, não um objecto social "puro", mas sim os objecto parciais de Melanie Klein que Deleuze tanto gostava. O esquizofrénico rasgaria assim esse corte entre a pureza e a impureza, o ideal e o real, num modo de ser terrivelmente ambivalente.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

O Tempo e o Progresso em Kant, Deleuze, Baumann e Hermann Broch

"Quero ser feliz porra, quero ser feliz agora, que se foda o futuro, que se foda o progresso"

José Mário Branco em "FMI"

"A verdade é que, faça o homem o que fizer, tudo o que ele faz tem por fim anular o tempo, suprimi-lo e a esta supressão se chama espaço. A própria música, que existe unicamente no tempo e que enche o espaço, transmuda o tempo em espaço."

Hermann Broch em "Os Sonâmbulos"

Comecei a ler "Modernidade e Ambivalência" de Zygmunt Bauman. Começa por nos falar da modernidade como fragmentação do mundo. Fragmentação como esp
artilhamento e legitimação do ordem. Fala-nos de um mundo de especialistas, de otorrinos e urologistas para sempre separados. Há uma necessidade de cada um de nós ter uma tarefa bem delimitada, particular privada e impossível, que nunca acabe. O discurso moderno passa por dizer que o que interessa é a viagem, o processo e não a chegada. Os pontos de chegada são apenas estações temporárias. Num mundo sem deuses, já não há uma causa e fins comuns e universais. Há passados relativos, privatizados que desembocam numa viagem sem fim de repetições eternas desses mesmos passados.

"A modernidade é o que é - uma obsessiva marcha adiante -, não porque queira sempre mais, mas porque nunca consegue o bastante; não porque se torna mais ambiciosa e aventureira, mas porque as suas aventuras são mais amargas e as suas ambições frustradas. (...) Estabelecer uma tarefa impossível não significa amar o futuro mas desvalorizar o presente. O presente está sempre "a querer", o que o torna feio, abominável e insuportável."

Vivemos num tempo subjugado pelo tempo e pelo progresso. Entenda-se o tempo como sucessão de momentos, como noção ordenadora de acontecimentos uns atrás dos outros. É neste plano que se pode conceber a causalidade e a lógica a que estamos todos obrigados a viv
er. Entenda-se o tempo como plano de racionalidade extrema. Vivemos os nossos dias contados hora a hora, segundo a segundo. Vivemos as nossas vidas como acontecimentos que têm uma causa, causa que tem uma outra causa e assim por diante. Há uma crise financeira que acontece de um momento para o outro e tenta-se entendê-la dando-se possíveis causas, que por sua vez têm outras causas. Há consequências que por sua vez originam consequências tal como os minutos se sucedem aos minutos. Não há forma de sair de fora do tempo. É este o plano de uma racionalidade extrema, que vive por si só, isolada do eterno. Entenda-se o eterno como um agora que se estende aquém e além do tempo. Perdeu-se uma noção de eternidade que vive de um presente total e não fragmentado em bocados, a capacidade de apreender o todo ao invés de apreender apenas "uma coisa de cada vez". A única forma actual de termos uma noção aproximada do eterno é através de coincidências que nos remetem para uma circularidade e totalidade perdidas. Se antes toda a noção de tempo era circular e centrada na eternidade de Deus, de onde todos vimos e todos regressamos, o que se abre é uma linha para o infinito de repetições.

Sobre isto Deleuze tem um texto "Acerca de Quatro Fórmulas Poéticas que Poderiam Resumir a Filosofia Kantiana". Nele Deleuze aborda a mudança operada por Ka
nt ao nível da noção de tempo:

"O tempo já não se refere ao movimento que ele mede, pelo contrário, o movimento refere-se ao tempo que o condiciona. Do mesmo modo, o tempo já não é uma determinação do objecto, mas a descrição de um espaço, espaço que devemos abstrair para descobrir o tempo como condição do acto. O tempo torna-se unlinear e rectilíneo, já não no sentido em que ele media um movimento derivado, mas nele mesmo e por ele mesmo, na medida em que ele impõe a todo o movimento possível a sucessão das suas determinações. (...) O tempo deixa de ser curvado por um Deus que o fazia depender do movimento. (...) Tudo aquilo que se move e se altera está no tempo, mas o próprio tempo não se altera, não se move, nem sequer é eterno. Ele é a forma de tudo aquilo que se altera e que se move, mas é uma forma imutável e que não se altera.

De que forma é que daqui, desta noção de tempo reificada, rectilínea, lineariz
ada, a apontar para o infinito, chamada de progresso, se pode entendender a excessiva especialização do mundo de que fala Baumann? Nada como voltar aos romance "Sonâmbulos" de Hermann Broch, como já fiz por duas vezes neste blog (aqui e aqui) e por motivos bem distintos:

"A razão primeira foi transportada da infinidade "finita" de um Deus, em todos os casos ainda antropomórfico, para o verdadeiro infinito abstracto. As cadeias de questões não desembocam mais nessa ideia de Deus, dirigem-se, efectivamente, para o infinito (não convergem mais, por assim dizer, tornam-se paralelas), a cosmogonia já não repousa em Deus, mas na (...) consciência de que não existe em parte alguma um ponto de chegada, (...), de que não podemos isolar nem uma matéria original nem uma razão primeira (...)"

E assim chegamos finalmente à ideia de especialização, progresso e de modernidade, expressa maravilhosamente desta forma:

"Faz parte da lógica do Soldado atirar uma granada às pernas do inimigo.
Pertence, da maneira geral, à lógica do militar tirar partido dos agentes de potência militar com as mais extremas consequências e o mais radicalmente possível, caso haja necessidade disso, inclusivamente exterminando os povos, fazendo ruir as catedrais e bombardeando os hospitais e as salas de operação.

Faz parte da lógica do potencial da economia explorar os agentes económicos com as consequências mais extremas e o mais integralmente possível, e, anulada toda e qualquer concorrência, auxiliar o seu próprio instrumento económico a ascender à dominação exclusiva, quer se trate de uma empresa comercial, de uma fábrica, de um trust ou de qualquer outro organismo económico.

Faz parte da lógica do pintor levar os princípios da pintura à sua realização, com a consequência mais extrema e mais radicalmente possível, correndo o perigo de fazer nascer uma criação completamente esotérica, só acessível à compreensão do produtor.

Pertence à lógica do revolucionário levar avante o impulso revolucionário com a consequência mais extrema e o mais radicalmente possível até que hajam decretado que se trata de uma revolução em sia, da mesma forma que em geral pertence à lógica do homem político levar o seu objectivo político até à ditadura absoluta.

Faz parte da lógica do intrujão, oriundo da burguesia, pôr em prática, com a consequência mais extrema e o mais radicalmente possível, a directriz: enriquece-te! (...)

A guerra é a guerra, arte é a arte, em política nada de escrúpulos, negócios são negócios;- tudo isto repete a mesma coisa, tudo isto está possuído desse mesmo espírito agressivo de soluções radicais, está possuído dessa inquietadora brutalidade que eu me sinto tentado a qualificar de metafísica, está possuído desse espírito lógico dirigido ao seu objecto e só ao seu objecto, sem olhar para a direita nem para a esquerda - oh! tudo isto é o estilo do pensamento desta época"

Herman Broch em "Os sonâmbulos"

Este post já vai longo e assim, resta-me acabar sob protesto contra o progresso e assim, termino sem conclusões e não me demorarei mais com este post, pois quanto a isto não tenho mais mais nada a dizer, nem progressos a fazer. Se comecei com José Mário Branco e Herman Broch, termino não de uma forma rectilínea, mas sim de uma forma circular, com Hermann Broch e... José Mário Branco:

"Estamos no caminho para estarmos aqui de vez"

José Mário Branco em "FMI"

domingo, 12 de outubro de 2008

Introdução ao Surrealismo Clandestino, História e Epistemologia do Medo

O título deste post foi, rigorosamente, o sumário da lição 40 do Pinguim no Porto tendo eu recebido humildemente a honra de o escrever na pedra de ardósia para o efeito.

Assim, ontem, Sábado à noite, houve lugar a uma actuação entusiástica dos Godot, com sua "música rock glamourosa". São quatro rapazes e uma rapariga que constituem um conjunto harmonioso de música, teatro, vídeo e poesia.















Dois deles, Miguel, o guitarrista que mais uma vez fez uma actuação fabulosa cheia de alma e Rabino, baterista que espancou a bateria impiedosamente como é hábito, já contracenaram comigo noutros palcos, por exemplo com a peça de teatro Minimal Show. O vocalista Mário Costa, assumiu (e assume) nesse outro palco, o papel de encenador. Aqui é vocalista e intérprete da poesia de Mário Cesariny, Alexandre O'Neill, entre outros, sob a capa de estrela do rock. O Mário teve uma actuação turbulenta e enérgica e os restantes elementos, a Sara no orgão e Luís com seus vídeos de fundo, estiveram em alto nível como é costume neles.

Este sábado também houve lugar a uma homenagem ao recentemente falecido Joaquim Castro Caldas, por intermédio de uma música dos Godot com a participação do público e também do Rui Spranger.

Joaquim Castro Caldas, poeta não alinhado, poeta das tabernas, o poeta que dizia que a poesia "é para comer todos os dias", tal qual uma receita de nutricionista preocupado com a alimentação poética do povo, merece toda a saudade e reverência que se vê espalhada por essa blogosfera fora aqui, aqui, aqui e aqui, por exemplo.

sábado, 4 de outubro de 2008

Jerónimo de Sousa: "Zás, enfio-te o Manuel Alegre no Mário Soares, Sausurre contra Sausurre, Freud contra Freud"

Vi a notícia espampanante de que o Jerónimo de Sousa tinha pedido o Bloco de Esquerda em namoro. Fui ver mais de perto as notícias divulgadas por "Jornal de Notícias" e "TSF" e outros contadores de histórias onde já diziam que a "aliança de forças progressivas de esquerda" não se referia explicitamente ao Bloco de Esquerda. Entretanto, Jerónimo de Sousa desmentiu tudo.

Já que a classe jornalística dominante em Portugal está altamente enviesada ideologicamente pois não sabem ouvir e ler português convenientemente, eu aqui posso dar em primeira mão de que necessária aliança das forças progressivas de esquerda é que o Jerónimo estava a falar. Não é nada de novo, é aliás muito parecido com que um sociólogo francês e
um cantor português cantaram e escreverem há muito tempo, o primeiro em 1976 e o segundo em 1979

"Há que atirar Mauss contra Mauss, Sausurre contra Sausurre, Freud contra Freud"

Jean Baudrillard em "Troca Simbólica e a Morte", 1976


"E zás, enfio-te o Manuel Alegre no Mário Soares, zás, enfio-te o Ary dos Santos no Álvaro de Cunhal, zás, enfio-te o Zé Fanha no Acácio Barreiros, zás, enfio-te a Natalia Correia no Sá Carneiro"

José Mário Branco em "FMI", 1979

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A Inteligência Paradoxal de Soren Kierkegaard

Tenho andado a ler "Migalhas Filosóficas" de Soren Kierkegaard, onde, por intermédio do seu pseudónimo Johannes Clímacus, assume o papel de um pensador secular que faz uma interpretação de questões como a existência, Deus, o amor e o desconhecido. No seu estilo ao mesmo tempo sério e humorado, ligeiro e profundo, Kierkegaard tem no capítulo "O Paradoxo Absoluto - Um Capricho Metafísico", passagens fabulosas como estas:

"Não é necessário pensar mal do paradoxo, pois o paradoxo é a paixão do pensamento, e o pensador sem um paradoxo é como o amante sem paixão, um tipo medíocre. Mas a potência mais alta de qualquer paixão é sempre querer a sua própria ruína e assim também a mais alta paixão da inteligência consiste em querer o choque, não obstante o choque, de uma ou de outra maneira, tenha de tornar-se a sua ruína. Assim, o maior paradoxo do pensamento é querer descobrir algo que ele próprio não possa pensar. (...)

Mas o que é este desconhecido contra o qual a inteligência em sua paixão paradoxal se choca, e que perturba o homem em seu autoconhecimento? É o desconhecido. No entanto, ele não é, certamente, um ser humano, na medida em que o homem sabe o que o homem é, nem qualquer outra coisa que o homem conheça. Chamemos então este desconhecido: o deus. É apenas um nome que lhe damos. Dificilmente ocorreria à inteligência querer provar que esse desconhecido (o deus) existe de facto. (...)

Em geral, provar que qualquer coisa existe é sempre uma questão difícil: sim, o que é ainda pior para os corajosos que a tanto se atrevem, a dificuldade é tal que a celebridade raramente aguarda aqueles a que a isso se dedicam. A demonstração toda se transforma em algo completamente diferente, em um desenvolvimento exterior da conclusão que tiro ao ter admitido que o objecto em questão existe. (...)

Assim, eu não provo que uma pedra existe, mas sim que algo, que de facto existe, é uma pedra; o tribunal não prova que um criminoso existe, mas prova que o acusado, que evidentemente existe, é um criminoso. (...) Caso alguém quisesse, a partir dos feitos de Napoleão, provar a existência de Napoleão, não seria este um procedimento sumamente estranho? (...)

A paixão paradoxal da inteligência choca-se portanto constantemente contra este desconhecido, que decerto existe, mas que também é desconhecido, e nesta medida inexistente. A inteligência não pode vir mais longe: mas o seu sentido do paradoxo leva-a a aproximar-se do obstáculo e a ocupar-se dele; porque, pretender exprimir a sua relação com ele negando a existência daquele desconhecido, não dá certo, visto que o enunciado desta negação envolve precisamente uma relação."

Por esta altura vai-se tornando cada vez mais difícil continuar a seleccionar e copiar para aqui o melhor deste capítulo, pois tudo me parece demasiadamente importante para deixar de lado e sem o qual não se percebe a totalidade. Resta-me apenas com estas trancrições deixar crescer um pouco de apetite nas inteligências mais vorazes e paradoxais que nos acompanham, e fazer uma modesta propaganda deste meu velho mestre.

“Kierkegaard é de longe o mais profundo pensador do século XIX.”, dizia Ludwig Wittgenstein. Considerado o pai do existencialismo, Kierkegaard tem uma obra que é filha fiel da sua existência. Agustina Bessa Luís fez-lhe em tempos uma homenagem na forma de um texto dramático denominado "Os Estados Eróticos Imediatos de Soren Kierkegaard", onde põe em cena partes ficcionadas da vida atribulada deste pensador.

Ironia, coincidência ou não, ao mesmo tempo que vou lendo estas migalhas filosóficas, soube que este texto dramático foi trazido à vida pela companhia Seiva Trupe, e estreou dia 25 no Teatro Campo Alegre onde vai estar até dia 31 de Outubro. Ainda não fui ver mas tenho tempo. Teatro, Kierkegaard e Agustina, são nutrientes fugazes da humanidade que demoram uma vida a digerir. Já dizia Agustina, "O tempo apaga devagar o que a terra leva depressa."