quarta-feira, 30 de abril de 2008

maria vai com as outras, Jorge Luis Borges e Ruy Belo

Outro dia passei na "maria vai com as outras" , loja de livros, tabacos, chás, artesanato, mobiliário, vinhos, etc, na rua do Almada. Aquilo tem uma decoração que que faz lembrar uma cozinha de avó e uma loja de design pós-moderno, tudo ao mesmo tempo. Encontrei lá um livrinho muito giro e a bom preço (7 euros!): Poemas Escolhidos de Jorge Luís Borges traduzidos por Ruy Belo. Aqui deixo uma pérola:

Arte Poética

Olhar o rio que é de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdermos como o rio
E que os rostos passam como a água

Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme a nossa carne é essa morte
De cada noite, que se chama sono.

Ver no dia ou até no ano um símbolo
Quer dos dias do homem quer dos anos,
Converter a perseguição dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,



Ver só a morte o sono, no ocaso
Um triste ouro, assim é a poesia
Que é imortal e pobre. A poesia
Volta como a aurora e o ocaso

Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.

Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar a Ítaca
Verde e Humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade e não prodígios.

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal dum mesmo
Heraclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável

Jorge Luis Borges

terça-feira, 22 de abril de 2008

Arte Moderna, Morte e Capitalismo

No Domingo, critiquei a arte moderna foleira que anda por aí, consequência da economização e mercantilismo da arte que subvertem a própria produção artística. Hoje, vi no JN, uma entrevista com Cruzeiro Seixas, figura importante da arte portuguesa que esteve na génese do surrealismo. É um artista que tem evitado expor seus trabalhos, tendo desta feita aberto uma excepção por se tratar de uma exposição de homenagem a Mário Cesariny.

Como justificação da sua recusa em expor o seu trabalho fala-nos sobre a situação da arte em Portugal que encaixa perfeitamente na análise que eu aqui tinha deixado no Domingo:

"A questão é que o mercado das exposições está totalmente distorcido. Hoje, as exposições estão nas mãos de meia dúzia de pessoas que se impõem e se colocam à frente de tudo e de todos. O que se passa é que a arte está entregue a uns aventureiros que fazem tudo e mais alguma coisa para vender. (...)



Hoje acontecem exposições todos os dias e muitas delas são de qualidade duvidosa. Há casos em que o pintor acaba de fazer o quadro, a tinta ainda está fresca e vai logo a correr fazer uma exposição. Tanto ele como o galerista ficam todos contentes, mesmo que a tinta ainda lhes pegue nos dedos. Ora, isso é incrível, porque o pintor acaba por entrar no sistema e, se é verdade que o dinheiro ajuda, também não é menos verdade que não é tudo. O dinheiro, as vendas não podem controlar a arte e muito menos o acto da criação. No meu tempo, era muito diferente, tínhamos a ditadura de Salazar. Hoje, temos a ditadura de pequenos pintores, galeristas e intelectuais que usam a cultura para si próprios e com um resultado muito particular, ter uma vida luxuosa.
(...) Ainda continuo a pensar que o artista deve ser do contra. Contra o Estado, contra o estabelecido, e o que se verifica agora é precisamente o contrário. Há uns senhores galeristas que pedem isto e aquilo e os pintores cumprem imediatamente. A arte não é para se estar de acordo, nem para os artistas se acomodarem às situações.

Entendo pelo que vejo, pelo que me apercebo, que há um baixar os braços dos artistas. Parece q
ue não há ideias novas e o que se vai vendo é uma espécie de academismo da arte moderna. É uma asneira completa e, por isso, surgem por aí todos os dias nomes de que nunca ouvimos falar e, por outro lado, há um leque enorme de grandes exposições que deveriam ser feitas e que ninguém as faz".

Ainda sobre a arte moderna vi no Blog "O Homem que Sabia Demasiado" um post acerca daquele "artista", Guillermo Vargas, que resolveu colocar numa exposição de arte um cão a morrer à fome, e que tem suscitado grande polémica a nível mundial. Comentei da seguinte maneira:

"o gajo (o "artista") pôs-nos todos a falar sobre ele por todos os cantos do mundo. Imaginem quanto não vale agora um trabalho dele! Ele chegou ao estatuto de "polémico mundial" o que é o máximo que se atinge na carreira artística hoje em dia.

É a mesma estratégia dos filmes catástrofe: há um gozo lacaniano perverso em ver representados os nossos maiores medos, um certo gozo super-egóico.

A morte aterroriza-nos, e o medo da morte é o que sustém o edifício da sociedade. Sem o medo da morte não haveria capitalismo, não haveria comércio, não haveria necessidade de iogurtes com bifidus activos e outras palermices. Ninguém mais precisaria de tentar vender seja o que for a ninguém. Quando se esvai o medo da morte, todo o pensamento utilitarista capitalista aparece como coisa de gente assustada demais para viver.

O capitalismo funciona sob o imaginário da morte. O artista vende imaginário. Mais cedo mais tarde haveria artistas a tentar vender a morte."

Não quero terminar sem deixar aqui as palavras com que Adorno começa a sua "Teoria Estética":
"Tornou-se manifesto que tudo o que diz respeito à arte deixou de ser evidente, tanto em si mesma como na sua relação ao todo, e até mesmo o seu direito à existência. A perda do que se poderia fazer de modo não reflectido ou sem problemas não é compensada pela infinidade manifesta do que se tornou possível e que se propõe à reflexão.

O alargamento das possibilidades revela-se em muitas dimensões como estreitamento. A extensão imensa do que nunca foi pressentido, a que se arrojaram os movimentos artísticos revolucionários cerca de 1910, não proporcionou a felicidade prometida pela aventura. (...)

Entrou-se cada vez mais no turbilhão dos novos tabus; por toda a parte os artistas se alegravam menos do reino de liberdade recentemente adquirido do que aspiravam de novo a uma pretensa ordem, dificilmente mais sólida."
Theodor Adorno

domingo, 20 de abril de 2008

Teste de personalidade do super-herói, história ideologia e política na BD

Fiz um teste para saber que super-herói da Marvel é que eu sou. Aquando da minha infância e adolescência, eu era um leitor e coleccionador fervoroso de banda desenhada da Marvel. Fiquei surpreendido pelos resultados: o teste disse-me que sou Jamie Madrox, o homem múltiplo.
Madrox tem a capacidade de se multiplicar a si mesmo indefinidamente, em imensos clones. Andava sempre com uma ou duas sósias que aproveitava para ter diálogos. Eu gostava muito dele, pois era um é personagem cómico e a ideia de ter muitos eus parece-me uma coisa apelativa de um ponto de vista mais esquizóide.

Em segundo lugar ficou o Doutor Estranho, um mago da califórnia esotérico, com uma fatiota de astrólogo, que fazia variados feitiços.

Em terceiro lugar, ficou o Surfista Prateado, um personagem silencioso, todo prateado, com uma prancha de Surf, que aparecia raramente nas histórias, surfando pelas galáxias fora com divagações filosóficas.

O Homem múltiplo é um dos mutantes do universo da Marvel. Contextualizando, primeiro havia o professor Xavier e os seu X-Men, criação dos anos 60, e depois aparecerem mais mutantes e mais grupos de mutantes. Jamie Madrox é de uma terceira geração de mutantes.

Uma coisa que sempre me interessou foi os paralelismos entre a história americana e a história da banda desenhada americana, quer da Marvel quer da DC Comics.

Por exemplo: a história do movimentos civis americanos em volta da questão racial. Os americanos tinham muitos negros que eram discriminados. Eram humanos, mas eram vistos (e ainda são) como sendo de outra raça. Na altura surgiram duas correntes: a de Martin Luther King, visão mais humanista e universalista, que defendia que brancos e negros deviam viver em igualdade e cooperação mútua, e a de Malcolm X, que defendia que os negros eram de uma raça superior e que se devia emancipar superiorizando-se aos brancos.

Agora a história dos mutantes da Marvel: Começaram a aparecer casos de pessoas que eram diferentes por terem super-poderes, devido a determinações genéticas. A opinião pública descrimina activamente estes chamados "mutantes". Aparece o professor Xavier, telepata, a dizer numa perspectiva humanista e universalista, que humanos e mutantes devem unir esforços pelo bem comum. Para o efeito, Xavier cria uma escola para treinar mutantes e seus super-poderes num grupo (X-Men) que ajude as pessoas para dar uma imagem positiva dos mutantes à sociedade. Já Magneto, que tinha poderes magnéticos, o arqui-inimigo do professor Xavier, argumenta que os mutantes eram de uma raça superior e que se devia emancipar superiorizando-se aos humanos comuns, cria assim a irmandade dos mutantes.

Mas há muitos mais paralelismos: a guerra fria, as grandes questões sociais, a droga, a tecnologia, todas as questões do mundo durante o séc.XX, estão lá representada. Mais, o próprio paradigma dos super-heróis vai se modificando. Se nos primórdios dos anos 20, os super-herois eram lineares, idealistas, com uma clara oposição entre os maus e os bons, este paradigma foi mudando para o do anti-herói ou outras versões, acompanhando mudanças sociológicas. A análise ideológica e histórica da banda desenhada é interessantíssima e não se esgota aqui num post.

Vejam na Wikipedia o artigo sobre o universo Marvel que desenvolve um pouco estas questões sociais na banda desenhada.

Maçãs, Caravanas, Amor platónico, Arte, Salazar, Merda, Idealismo e Materialismo













Ontem estive no Gato Vadio para a apresentação do livro "Caravana" do Rui Amaral. À entrada, apareceu ele gentilmente a oferecer maçãs. O livro, a "Caravana" começa precisamente com esta curta definição de Literatura: "Uma macieira que dá laranjas".
Foi bem jogado. Mas, penso eu com os meus botões, afinal eram maçãs ou laranjas?

Quem lá esteve, saberá. E quem lá esteve também ouviu o Rui Amaral ler um dos contos do livro que dá pelo nome "Amor Platónico":

"Para passar o tempo, Platão decidiu divertir-se à custa da sensibilidade de certos poetas. Pois bem, o que fez Platão? Inventou o amor platónico.
Depois, aborrecido com a sua própria invenção, saiu de casa e foi às putas."

Bem, uma coisa vos garanto, este livro não vos deixará aborrecido como Platão. Acho eu. O Rui Lage na apresentção que o Rui Amaral é do mesmo universo do Jorge Luis Borges e do português Gonçalo Tavares, e pelo que li e vi e ouvi, subscrevo.


Outra coisa: isto aconteceu na Rua do Rosário, que é transversal à Rua Miguel Bombarda, onde esteve a decorrer mais uma, como é que se diz, arty party for arty people. Então andámos por ali a espreitar dezenas de galerias de arte ali inauguradas, com animações pela rua toda. Tudo isto com o patrocínio da Famous Grouse. Sim, Whisky à borla. Mas, devo dizer, a maioria das galeria foram uma decepção.

Algumas lá para o fim, ainda me prenderam um pouco, mas... assustam-me algumas tendências que ali vejo espelhadas. Uma tela enorme com a cara do Salazar em mutação de umas fotografias lá do gajo. Sim, gajo. Tratou-se de dar um ar cool, diria, uma gaijificação do Salazar. O que interessa é chocar e tal, ya, tá-se bem. Trata-se da fórmula modernista já gasta de quebrar o tabu. E assim, a arte prossegue de revolução em revolução sem nunca sair da merda. Sim, merda no sentido mais sociológico (de Zygmunt Bauman, por exemplo) do termo se quisermos. Houve aquele conhecido senhor cuja famosa obra era um lata de merda chamada "mérde d'artiste". Não é que recentemente o museu que detem a "lata", teve mesmo a lata de abrir a lata, constatar que ela estava vazia, protestou e reclamou pela falta da dita "merda"! Sim, pois tratava-se de muito dinheiro diziam.

Pois, justamente Freud lembrava como o dinheiro é o correspondente simbólico da "merda". A nossa relação com a merda (e o dinheiro, por consequência) é estabelecida na fase anal quando temos uns três aninhos e temos de controlar o nosso esfincter para aprendermos a não nos borrarmos sozinhos. A sabermos tomar conta da nossa higiene. O prazer do controlo é um prazer da fase anal. As neuroses obsessivas, denotam uma fixação nessa fase (daí que um obsessivo se evoluir na sua neurose, possa ter compulsões de limpeza, etc). E é neste sentido que eu digo que há um tipo de arte que por aí abunda, que é uma arte meramente merdosa (controlo da merda=dinheiro) e isto é o mesmo que tal como vivemos numa sociedade que só pensa em dinheiro (dinheiro=merda).
















Mas não quero dar a ideia de que tudo é mau e tal, este mundo está perdido, etc. É bom haver estes eventos aqui na bela cidade do Porto e que envolvam muita gente, como foi o caso de ontem. Admito que haja quem simplesmente tenha saudade do Salazar. Eu, contudo, tenho saudades de um Portugal que ainda não existe. Sou um utópico. E arte não deve viver sufocada pelo dinheiro. A economização e mercantilismo da arte subverte a própria produção artística, torna-a um produto obsessivo de controlo. Impede a expressão utópica num mundo em que vemos a história a ser reescrita vezes sem conta num movimento de eterno retorno, por questões económicas.

Precisamos de um futuro. E o futuro começa na arte. Nisto sou um idealista. Um comunista idealista, se quisermos. Parece uma contradição. É-o de facto. E também o capitalismo vive das suas contradições. Mas as contradições só são visíveis à luz de um pensamento dialéctico. Já vi materialistas assumidos adoptarem posições tremendamente idealistas, e idealistas revelarem um muito básico materialismo. Seja como for, precisamos de um futuro, e de uma arte que o pinte, não necessariamente através de um realismo soviético, que visto de certa forma, é altamente idealista.

A arte acontece todos os dias. Estar vivo é um acontecimento artístico. A arte é um momento revelado em sua eternidade. A arte é um nó que se dá ao tempo. Um acontecimento que quer ser memória e que se transmuta em acontecimento. O artista é somente um intermediário. Somos todos. Mediadores do espaço e do tempo. Traçamos as linhas e guardamos a boa forma. Ver a linha formada pelo bando de aves, a forma do vento das folhas, a geometria dos limites do mundo. Cérebros são como galáxias, com constelações de neurónios: ursa maior, ursa menor, neurose, imagem do sapato azul, chuva e sistemas abertos. A arte é a beleza primeira, garante da esperança última, na luta do homem com o caos.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Eleições Americanas, Zizek e as Edições Pedago

A propósito do post que aqui coloquei há tempos sobre o pequenino livro de Zizek "Os direitos humanos e o nosso descontentamento", recebi um mail do Pedro Patacho, das edições Pedago, que editou este livro e ficou contente por vê-lo comentado aqui no Born to be Wilde. É uma editora pequena e aproveito para saudar o Pedro Patacho pela escolha que fez editar essa obra deste psicanalista comunista com sotaque de leste.

O Pedro Patacho aproveitou também para dizer que muito brevemente será publicado pelas edições Pedago outro caderno semelhante a esse, também da autoria do Zizek: Para uma apropriação do legado europeu pela esquerda. Fico à espera.

Ainda em relação ao Zizek, vejam a entrevista que ele deu na América sobre as eleições americanas, defendendo a tese de que todo o mundo devia poder votar nas eleições americanas, excepto os americanos.

Sobredotados, a Maria e Aldous Huxley

Na semana passada, no dia 9 de Abril, eu e alguns colegas organizámos o seminário ibérico de sobredotação - diferentes olhares na Universidade Fernando Pessoa. Estiveram lá a Doutora Carmén Pomar, e o Doutor Francisco Reyes Cora e a Doutora Ema Oliveira, especialistas em Sobredotação. Eu e meus colegas também participámos numa das mesas, onde apresentei com o meu colega Carlos Marques um estudo de caso. Carlos falou na situação da "Maria", rapariga de 13 anos, sobredotada, com um QI de 149, cujo pai é trolha em Espanha e a mãe é vendedor part-time. Para lá das apresentações mais teóricas, nossa participação suscitou um interesse acrescido por se tratar de um caso pessoal e não de sobredotados em abstracto. Falei no fim, onde apresentei reflexões algo políticas que fizemos acerca deste caso. Para esse momento propus colocarmos no fim uma passagem de um livro de Aldous Huxley de 1927: "Sobre a Democracia e outros Estudos":

"A nossa política educacional baseia-se em duas enormes falácias. A primeira é a que considera o intelecto como uma caixa habitada por ideias autónomas, cujos números podem aumentar-se pelo simples processo de abrir a tampa da caixa e introduzir-lhes novas ideias. A segunda falácia, é que, todas as mentes são semelhantes e podem lucrar como o mesmo sistema de ensino. Todos os sistemas oficiais de educação são sistemas para bombear os mesmos conhecimentos pelos mesmos métodos, para dentro de mentes radicalmente diferentes.
Sendo as mentes organismos vivos e não caixotes do lixo, irremediavelmente dissimilares e não uniformes, os sistemas oficiais de educação não são como seria de esperar, particularmente afortunados. Que as esperanças dos educadores ardorosos da época democrática cheguem alguma vez a ser cumpridas parece extremamente duvidoso. Os grandes homens não podem fazer-se por encomenda por qualquer método de ensino por mais perfeito que seja.
O máximo que podemos esperar fazer é ensinar todo o indivíduo a atingir todas as suas potencialidades e tornar-se completamente ele próprio."

No fim de ler esta passagem, salientei a data, 1927, e acrescentei por fim que, ou Huxley era um visionário ou que havia problemas muito antigos. No público houve alguns indivíduos que se denominavam professores, que ficaram bastante irritados com a nossa Maria, com o Huxley e com 1927 e fizeram irritadas insinuações e perguntas confusas. Fiquei todo contente, por sentir ter criado aquela agitação. Até àquele momento, o público tinha estado muito sereno e manso.

De facto, este livro de Huxley é fantástico. Fala sobre a Democracia e critica-a de uma forma tão aberta e tão livre, coisa que hoje não estamos habituados a fazer hoje em dia em que o conceito de democracia foi sacro-santificado. Jacques Ranciére é um dos autores referência actuais sobre o tema da democracia. Mas o conhecido livro dele, "Ódio à Democracia", nunca o cheguei a acabar: Foi nessa altura que, por tuta e meia comprei este excelente livro de Aldous Huxley e esqueci Ranciére. Ele fala em democracia, educação, psicologia de uma forma clara e com aquele estilo apelativo e agradável próprio de Huxley, tal como a sua restante obra revela em livros como "Admirável Mundo Novo", ou "As portas da percepção". Recomendo!

domingo, 6 de abril de 2008

The Pervert's Guide to Cinema

Vi há dias o documentário "The Pervert's Guide to Cinema", onde Slavoj Zizek faz uma interpretação psicanalítica de vários clássicos do cinema, pegando em filmes de David Lynch, Hitchcock, Tarkovsky, e muitos outros. É tanto um guia de cinema para iniciados como um curso de psicanálise para amadores. Aqui está a primeira parte. Os restantes 14 bocados podem ser vistos totalmente à borla no youtube.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Dia das mentiras, Ekman, Artaud e sistemas imunitários

Hoje, 1 de Abril, dia das mentiras, fiquei contente por ver Paul Ekman na televisão a falar nas mentiras do José Sócrates. Não estive no simpósio da Bial a ouvir o Paul Ekman pois estive eu próprio nestes dias ocupado com arte de mentir chamada teatro como referi no post anterior.

Ekman é um perito no decifrar das emoções faciais. Tem uma perspectiva Darwinista do corpo humano segundo o qual, por exemplo as rugas que os velhos apresentam na cara e as suas feições gerais, dependem do total de movimentações habituais que esses velhos apresentaram na cara durante as suas vidas. Se eu sorrir toda a minha vida, no fim terei essa sorriso estampado, encrustado, sulcado, agarrado à minha cara. As emoções mudam-nos fisicamente. Tudo isto são coisas que são pacíficas actualmente do ponto de vista científico.

Mas quando um maluco e drogado encenador de teatro chamado Antoine Artaud no princípio do séc. XX diz que o teatro tem como fim modificar e recriar o corpo humano, e que a morte foi inventada, era razão para, como o fizeram, acharem que ele estava maluco e darem-lhe choques eléctricos, ou que era um grande poeta. De facto era-o, mas não só. Devemos revisitar Artaud e fazer-lhe uma revisão científica. Tal como aliás, ele o teria desejado:

"No teatro, poesia e ciência devem, de ora em diante, identificar-se. Toda a emoção tem bases orgânicas. A cultivar a sua emoção no seu corpo é que o actor volta a carregar a densidade voltaica. Saber-se de antemão em que pontos do corpo devemos tocar, é atirar o espectador aos transes mágicos. E desta preciosa espécie de ciência é que a poesia, no teatro, desde há muito se desabituou." Artaud

O teatro é a arte pela qual os actores acreditam na mentira que contam e executam levando o público a partilhar da ilusão e da magia do corpo. Porque as possibilidades do corpo excedem a imaginação e no entanto suportam-se em imaginário. No fundo da nossa carne está também lá o dilema da verdade e da mentira, que mais não é o dilema do eu e do que não é eu.

Tomemos isto de um ponto de vista muito materialista, muito físico: há o cérebro, mas o cérebro faz parte do sistemas nervoso que é enorme, tem nervos que se espalham por todo o corpo. E depois há o sistema imunitário com o qual mantém íntimas relações. A missão de um sistema imunitário é: destruir tudo o que não é "eu". Não é só o cérebro, esse calhau cinzento que nos dá identidade. Nossos sistemas imunitários também precisam de ter uma imagem daquilo que é eu e o que não é. Nosso sistema imunitário, o mesmo que nos protege de gripes, vírus e infecções, também tem memórias, que são muito mais duradouras. Essa dialéctica do que é e do que não é "eu", traduzida de forma muito simplista entre verdade e mentira, não é somente uma abstracção filosófica: está inscrita no nosso corpo, na própria carne, na matéria de que somos feitos. Isto é visível até por exemplo no nosso sentido de visão. Senão, vejamos o que diz o imunologista Gerald Calahan sobre isto:

"our immune systems tell us that the portraits of self are true (when they aren't). So, at the very heart of the self live two lies. We are a storytelling species. It is our stories that sustain us. Even the most rudimentary of human infections requires that we imagine we know and care about who we are. Likewise, any infection, no matter how minor, would be enough to destroy us without an iron-clad image of non-self, and the ability to act on it. We need both stories and the lies they conceal."

Ah, é verdade, o Artaud dizia que a morte foi inventada. Também nisto, é bem capaz de ter razão, segundo uma perspectiva muita larga da evolucionismo. Callahan fala-nos, neste excelente livro "Faith, Madness and Spontaneous Human Combustion", que as bactérias são imortais. Ou melhor, elas podem morrer, mas não morrem naturalmente, não tem a morte inscrita nos genes como nós. As bactérias são organismos mais básicos do que os seres humanos. Nalgum ponto da evolução, as regras de reprodução para a nossa espécie mudaram, de forma a que nossa espécie está sempre a renovar-se através da morte. Aliás nossas próprias células vão morrendo e renovando-se de tempos. O que fica é a imagem, esse molde e contra-molde de um eu e de um não eu. Desta natureza dialéctica do "eu" humano advém a angústia existencial do ser humano que, segundo Kierkegaard assume três variantes: Desespero da não consciência de possuir um eu, desespero em não querer ser um eu, e um terceiro que é o desespero de querer ser um eu.