sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Paul Ekman, Dalai Lama, e Sorrisos Falsos

Há uns tempo dizia eu sobre o José Sócrates que ele tem sorrisos falsos por causa de um músculo em torno do olho, que puxa as bochechas para cima. Isto é o que diz Paul Ekman, psicólogo especialista em emoções faciais e comportamento não verbal, acerca dos sorrisos verdadeiros e falsos. Paul Ekman vem cá a Portugal, ao Porto, para o Simpósio da Bial "Aquém e Além Do Cérebro"no dias 26 a 29 de Março, na Casa do Médico.

Daniel Goleman, no livro "Emoções Destrutivas e Como Dominá-las", relata a conversa que decorreu entre Paul Ekman e o líder do Tibete, o Dalai Lama:
"Em dois dos estudos que fiz com Richard Davidson, descobrimos padrões diferentes de actividade cerebral relacionados com estes dois tipos de sorriso. Muita da actividade cerebral que encontramos quando existe satisfação genuína ocorre apenas se o músculo em torno do olho está envolvido. (...) Neste campo trabalhei apenas nos Estados Unidos. A nossa investigação mostrou que a maioria das pessoas é facilmente enganada pela fraude, até mesmo polícias, psiquiatras, advogados e agentes da alfândega. São incapazes de detectar uma mentira simplesmente conversando com alguém.
- Então e os políticos? - Perguntou o Dalai Lama, sorrindo.
- Só estudei as mentiras dos políticos e não se eles são capazes de perceber se alguém está a mentir."

E vocês, são bons a distinguir sorrisos verdadeiros e falsos? Qualquer um pode fazer este teste usado por Ekman nas suas investigações. Está disponível no site da BBC, aqui.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Os Sonâmbulos, o Mar e a Nau dos Loucos

Ando a ser subjugado por esta obra portentosa de Herman Broch, "Os Sonâmbulos". Divide-se em três partes, mas ando a ler uma edição rara e velhinha comprada por 5 euros que tem as três partes num só volume de setecentas e tal páginas. É um obra portentosa que começa de forma quase inocente, insinuadora, progride, leva-nos numa viagem pela Europa do fim do séc. XIX até à primeira guerra mundial já no séc XX, por intermédio de personagens que sintetizam cada uma, as angústias, as marcas e os estilos das épocas que se desenrolam.

"Os Sonâmbulos" não é só um romance. Hermann Broch, à medida que obra se desenvolve, vai abrindo o jogo a diversos estilos e discursos que vão desde a acção do próprio romance, passando por momentos de poesia, devaneio filosófico e ensaio estético, tudo a um nível de escrita altíssimo e delicioso. Tem momentos tocantes de profundidade e lucidez de pensamento assim como momentos de humor caricato em diálogos sempre interessantes. A determinada altura, há um passagem sobre o mar que me fez cócegas na alma. Vejam:

"Lá longe o passageiro do paquete (...) não concebe o perigo onde entretanto está mergulhado, não tem consciência de que uma alta montanha de água o separa do fundo dos mares, que é a terra. Só aquele que visa a um objectivo tem medo, pois pelo seu objectivo é que ele teme . (...) Quem vai sobre as ondas do mar não tem objectivo e não pode cumprir-se: está encerrado em si mesmo. Nele o possível dormita. Quem quer que seja que o ame só o pode amar pelo que ele promete, pelo que repousa nele, não pelo que atingiu ou pelo que atingirá. Por isso o homem da terra firme ignora o amor e toma por amor a ansiedade em que vive. (...) Ora quem procura o amor procura o oceano. Fala talvez ainda da terra que está longe, para além dos mares, mas os seus pensamentos estão alhures, pois crê sem fim a viagem, esperança de alma solitária, esperança de se abrir e de acolher a alma estrangeira que nasce da bruma luminosa e se esvai dentro dele, o homem sem entraves, e que o reconhecer naquilo que ele é, o próprio ser, para além do nascimento e da morte."

Esta pequena digressão de Hermann Broch sobre o mar fez-me lembrar um outro romance:
"O Marinheiro que perdeu as graças do mar" de Yukio Mishima, que fala de um Marinheiro que deixa a sua vida no mar para abraçar uma vida em Terra com Fusako e seu filho Noboru:
"Foi o mar que me fez começar a pensar no amor, mais do que outra coisa; quero dizer, num amor por que valha a pena morrer, num amor que consuma uma pessoa. Para um homem fechado durante todo o tempo num barco de aço, o mar assemelha-se demasiado a uma mulher. Coisas como um mar dolente, tempestades marinhas, caprichos do mar, a beleza do peito do mar reflectindo o sol poente, tudo isso se pode conhecer quando se está num barco. Mas mais do que isso, está-se num navio que monta e cavalga o mar e que é constantemente rejeitado, tal como o velho ditado sobre as milhas e milhas de água que não podem matar-nos a sede. A natureza rodeou o marinheiro com todos estes elementos femininos e, no entanto, ele é mantido tão longe quanto um homem pode estar do corpo quente, vivo, da mulher. É aí que problema começa, aí mesmo - tenho a certeza"

O Mar como símbolo do amor, ou da sua ausência. O mar e a sua completa supremacia sobre a nossa pequenês. O mar, sempre tão maior do que qualquer coisa que imaginemos, é forte e simples, líquido e difícil. O viajante do mar abandona-se ao caos, ao esquecimento da terra e a promessa de uma nova. É o mar como o supremo intervalo entre o eu e o outro, uma contemplação das fronteiras infinitas entre a ordem da terra e a indeterminação do mar.
Em boa verdade, quem se abandona ao mar já não tem pátria pois a sua pátria é o mar que banha todas as terras. O viajante do mar está fora do mundo dos homens e é neste sentido, louco na sua verdadeira acepção, tal como mostra a Nau dos Loucos de Bosch

Foucault explica, na sua "História da Loucura", que durante os séculos XV e XVI, os loucos eram escorraçados, enfiados em barcos para deambularem de terra em terra, para serem expulsos de novo, condenados a andar no mar "ad infinitum". Diz Foucault que "confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro da sua própria partida. Mas a isso a água acrescenta a massa obscura dos seus próprios valores: ela leva embora, mas faz mais do que isso, ela purifica. Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza da sorte; nela cada um é confiado ao seu próprio destino, todo embarque é potencialmente, o último. É para o outro mundo que parte o louco em barca louca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca. (...) Postura altamente simbólica e que permanecerá sem dúvida a sua até aos nossos dias, se admitirmos que aquilo que outrora foi fortaleza visível da ordem tornou-se agora castelo da nossa consciência."

Minimal Show

O João Marques mandou-me algumas fotos do espectáculo "Minimal Show" de Sergi Belbel e Miguel Górriz que o meu grupo de teatro "A Corte da Mula" apresentou no Centro Cultural de Vila das Aves no passado dia 26 de Janeiro. As fotos não ficaram lá muito definidas mas esta deixou-me intrigado:
Foi uma boa estreia. Tivemos muito público e fomos bem recebidos. Mais importante ainda, foi para nós um gozo a interpretação desta peça. Aproveito para anunciar que vamos repetir a brincadeira no auditório Eurico de Melo em Santo Tirso no dia 27 de Março.

Relembro a ficha técnica que eu inventei:
"Trata-se de uma peça dos anos 80 com poucas falas mas muita acção que se situa o seu espaço psicológico entre a esquizofrenia o pós-modernismo. Cenas repetidas que se cruzam umas com as outras, personagens sem identidade em que só lhes resta a procura de uma mecânica dos gestos. Dir-se-ia também que há em determinado momento uma espécie de salto entre o teatro e o meta-teatro. A banda sonora terá ainda um toque de Glam-Rock neste espectáculo. Enfim, se tiverem oportunidade vejam por vocês mesmos. Eu lá estarei, a impersonar a histérica personagem "C"

Direcção: Mário Costa
Som e Desenho: luz Ratão
Caracterização: Tina
Interpretação Carla Azevedo, Miguel Marques, Nuno Rabino, Sandra Mestre e Zé (C'est Moi)"

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

O Advento Vaginal do Redentor Ponto G


O mundo científico assiste nestes dias a um debate sem precedentes acerca do ponto G da vagina das mulheres. Isto sem dúvida inaugurará uma nova época na história da humanidade. Nos anos 80, mitologias urbanas falavam na emergência de um novo messias, o ponto G. Mas os relatos dessas mulheres que tinham orgasmos melhores e mais fortes que as outras por causa de terem sido abençoadas pelos deuses com o magnânime Ponto G, são relatos fantásticos e obscuros que tem suscitado grande apreensão, incertezas e excitação no mundo até aos dias de hoje.
Mas gloriosos dias se aproximam com a vinda do redentor Ponto G que será visível em todas as vaginas da terra: "Pela primeira vez", disse Jannini à revista New Scientist, torna-se possível determinar de maneira simples, rápida e barata se uma mulher tem ou não um ponto G."

Simples, rápida e barata! Sim, hoje qualquer homem pode saber se a mulher dos seus sonhos tem ponto G! E se tiver, isso significa que esse homem será o feliz contemplado com um espécime novo dessa raça de mulheres novas. Já não é preciso gastar tempo em preliminares e ambientes românticos que exercitem a imaginação e excitem a fêmea. Basta saber com exames ecográficos se existe um ponto G e estimulá-lo para obter numerosos orgasmos automáticos. Viva o mundo moderno! Máxima eficiência! Máximo pragmatismo! Tudo simples, rápido e barato!

Actualmente a maior tarefa da humanidade é saber quantas mulheres têm ponto G. As que não têm devem ser encaminhadas para o programa "novas oportunidades" para outro tipo de funções pois não ter Ponto G, se ainda não é mau para a economia, vai ser num futuro próximo.

"Estamos agora a determinar quantas mulheres têm um ponto G", diz-nos Jannini. "Isso é fácil e é apenas uma questão de tempo: queremos ter pelo menos 200 participantes antes de publicar."
Mas, "o que é mais importante", os investigadores estão já a pensar em possíveis fármacos que permitam aumentar o ponto G das mulheres que o têm.
Quem quiser saber mais vejam esta notícia do Público.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

o lobby gay e a homossexualidade militante

Acabei de descobrir que sou 36% Gay. Façam também este teste engraçado e pateta. O que se pode perguntar é: “Mas afinal de contas és paneleiro ou não?” O mais preciso que posso responder é : ”36%”.
Na verdade, sempre me deixou curioso as rígidas divisões entre homossexualidade e heterossexualidade, entre outras caixotas mentais. Normalmente essa distinção acaba no fundo por ser bastante banal e simplória, em que se diz que o homossexual é o homem que ama homens e a mulher que ama mulheres. Pela minha experiência, é para mim evidente a maioria dos homens amar homens e mulheres e as mulheres amarem homens e mulheres também. Incluindo Gays. Já vi homens também amarem cães, gatos, pássaros, carros, computadores. Mas o que acontece hoje em dia é um fenómeno curioso que é o que eu chamo de homossexualidade militante. Por vários países desse mundo, Canadá, América, Brasil, Israel, Espanha já existem partidos gays. A revindicação dos direitos dos homossexuais está na ordem do dia em muitos países. Na arte então está-se a tornar um lobby poderosíssimo. Há festivais de cinema Gay e Lésbico, há paradas gay, há de tudo. Em relação a isto há uma conversa que ouvi uma vez que é elucidativa: fui à estreia da apresentação do trabalho artístico de um amigo meu, o Hélder, na Maia. Foi com ele que ouvimos o dono do espaço contar que conhecia um rapaz que era um artista novo, cheio de talento, que andava à procura de apoio por parte de cooperativas e grupos de arte, e eis que um desses grupos, bastante influente, começou a acompanhar o trabalho do jovem durante algum tempo. O jovem ficou todo contente mas eis que depois teve a notícia de que não podia ser associado aquele grupo pois não era gay.

A maior lição de sempre de Freud é que o sexo está em todo o lado. Não vale a pena amarrar o desejo como diz Deleuze, porque o desejo é sempre trangressor. E a segunda lição de Freud é a de que, a partir do momento em que há regras para a sexualidade, há uma sociedade. Freud no seu livro “Totem e Tabu”, analisou tribos primitivas e concluiu que eles tinham basicamente duas instâncias sociais, o totem e o tabu. Os totems designavam os clãs, podia ser um animal, árvore, planta, pedra ou um qualquer objecto. Servia para dar nome aos clãs, distingue as linhagens (muitas delas são na forma primitiva, linhagens matrilineares). Os tabus são as proibições acerca da sexualidade, como por exemplo a impossibilidade de ter relações sexuais com membros do mesmo clã. O violar das regras é punido com a morte. É tão proibido o acto como falar dele abertamente ou sequer simbolizá-lo. Assim, Totem e Tabu são indissociáveis. É preciso distinguir os clãs para poder haver regras da sexualidade. E as regras da sexualidade só podem existir se se puder distinguir as linhagens, pois as regras teriam o designo ou a consequência de impedir a consanguinidade. É por isto que é impossível separar a lei e a moral do sexo, pois todo o edifício da moral é construído nos pilares da sexualidade. É por isso que o livro “Totem e Tabu” é dos melhores livros de Freud. A essência da sua obra está lá toda.

Uma das conclusões que Freud tira nesse livro é no quão parecidos somos, do ponto de vista psicológico, com os homens primitivos. Estes operam segundo mecanismos comuns a homens neuróticos modernos. Há por exemplo o que Freud chama de omnipotência dos pensamentos. Quando o pensamento é tomado por Real. Havia uma tribo, mexicana se não me engano, em que um dos homens da tribo tinha a elevada responsabilidade de ficar vigiando o sol , todos os dias, a ver se ele se punha e se nascia todos os dias. É o tipo de pensamento em que o mundo depende directamente daquilo que pensamos: como se o mundo exterior funcionasse tal como nossas as cabecinhas o inventam. È este o plano certo para, em conjunto com as regras da sexualidade, podermos pensar num início daquilo que se chama sentimento de culpa. Havia a história de um individuo de uma tribo que se encontrava a comer uns restos de comida que encontrou no chão. Os antropólogos registaram que um amigo seu se dirigiu a ele advertindo-o de que aquilo eram restos da comida do chefe, ao que ele reagiu caindo fulminante no chão, morto, como que envenenado. A questão é termos um indivíduo que acaba envenenado brutalmente tão somente por seu sentimento de culpa. Um dos sintomas de uma neurose obsessiva assim como aquilo que a psicologia cognitiva chama de perturbação obsessivo-compulsiva é a de que existe um sentimento de culpa em relação a pensamentos, ou seja, sentimo-nos culpados só de pensar numa enventualidade terrível, sem sequer a termos cometido realmente. São pessoas muito metódicas, limpinhas, arrumadinhas, que verificam 50 vezes o bico de gás e assim.

Freud dizia que os neuróticos obsessivas sentiam uma compulsão tremenda nestes actos, comparável ao que Kant chamou de Imperativo Categórico. Freud adianta também que o neurótico obsessivo frequentemente tem dúvidas em relação à sua identidade sexual.
O que está em causa é os nomes, o totem necessário para haver uma identifcação. O homem que assume a sua homossexualidade não resolve por si só a sua neurose obsessiva. Porquê? Porque se passa a identificar da mesma forma sob o signo de um outro totem com respectivos tabus e proibições. O “homossexual” tem também proibições e restrições. Há toda uma imagem, conduta e personalidade que é preciso inventar. Nos tempos que correm isto significa muito prosaicamente um mercado novo.

E o modelo para esta nova personalidade é: a mulher. Já verifiquei que os homossexuais mais assumidos são aqueles que mais apresentam certos traços femininos que correspondem na realidade aos preconceitos dos heterossexuais: é a melhor de se diferenciarem. Na verdade somos todos bisexuais, ou somos simplesmente sexuais. Depende muito dos nomes (ou totems) que usamos. O nome homossexualidade é uma crença. Toda linguagem é suportada em crença. E a homofobia é o medo de um homem ser confundido com uma mulher.
Assim, Carl Jung foi inteligente ao inventar o binómio animus/anima para cada um dos sexos. O animus é o lado mais viril do ser humano e anima o mais meigo e feminino. Todo o homem tem um animus e um anima. Todo o homem tem um lado mulher e toda a mulher tem um lado homem. É normal homens amarem homens e mulheres amarem mulheres. O desejo é forte sobre a terra sem se importar muito com o que nós lhe chamamos.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Áustria: Estado proíbe construção de mesquitas

Jorg Haider diz que decisão é «um guia para a Europa», face «ao avanço do Islão» no continente.
O Estado federado austríaco da Caríntia, governado pelo populista de direita , proibiu esta terça-feira a construção de mesquitas e minaretes no seu território, depois de aprovar uma lei que regula o aspecto externo dos edifícios.

O aspecto externo dos edifícios? A reconquista do islão será feita com planos de ordenamento de território e mapas municipais? Socorro! Realmente é difícil de imaginar coisa pior. Segundo a líder da oposição regional social-democrata, «Fazemos uma lei para algo que não existe», disse Gaby Schaunig, lembrando ainda que "não havia nenhum pedido para edificar uma mesquita ou minaretes".

Jorg Haider deve andar a ler muito Kafka. Devia fazer como Robert Smith dos The Cure, ler "O Estrangeiro" do Camus e assim fazer uma música como a Killing an Arab ou algo parecido.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Religião, Marx e Matemática Védica

Outro dia um homem abordou-me no meu caminho para a estação, numa das principais ruas de Espinho: "Você conhece os textos védicos?". Eu disse-lhe que sim, que conhecia e pensei nesses textos com cerca 8000 anos de existência, transmitida primeiro por via oral e depois por via escrita. São textos sagrados, muitos deles são base das religiões budista, hinduísta e não só.
Comecei a falar com o homem e ele me descreveu sucintamente os preceitos e modo de vida védicos. Casam-se aos 25, efectuam retiro espiritual aos 50. Não bebem, não fumam, são vegetarianos. Deu-me um livrinho chamado "Vida Simples, Pensamento Elevado".
Continuámos a falar mais um bocadinho antes de nos despedirmos amigavelmente. Pelo caminho olhei para o livrinho que ele me deu. Na capa, via-se na parte inferior, um homem despindo um uniforme de trabalho escuro e sujo, caindo no meio de porcaria, indo em direcção a um cenário campestre de fundo, bucólico, com natureza, vaquinhas, muita relva verde e crianças nadando no rio: a vida em comunidade em harmonia com a natureza. Pensei nos testemunhas de Jeová, com quem sempre gostei de discutir, e que também gostam de falar no paraíso prometido. Mas estes falam no paraíso como algo a alcançar depois da morte, no fim de uma vida de trabalho. Contrariamente, as comunidades védicas advogam o abandono do trabalho e da cidade para viver em vida esse paraíso junto da natureza, restringindo-se dos prazeres do consumismo citadino. Esta última perspectiva, a de querer um paraíso na terra e não numa qualquer vida depois da morte, pareceu-me mais de acordo com uma perspectiva marxista.
Comecei a ler o livrinho e perdi as minhas dúvidas acerca da proximidade dos vedas com Marx. Senão vejam o que diz o sábio Bhaktivedanta Swami Prabhupada;
"Quanto mais continuarmos a aumentar essas indústrias problemáticas para sufocar a energia vital do ser humano, tanto mais haverá inquietação e insatisfação das pessoas em geral, embora apenas umas poucas pessoas possam viver sumptuosamente através da exploração. (...) A produção de máquinas operatrizes e ferramentas aumenta o modo de vida artificial de uma classe de proprietários interessados e mantém milhares de homens à míngua e na inquietação."
Agora comparemos com o que diz Marx em "O Capital": "À medida que diminui o número de grandes capitalistas que usurpam e monopolizam todas as vantagens deste processo de transformação, cresce a miséria, a opressão, a escravidão, a degenerescência, a exploração, mas também a revolta da classe operária"

A diferença mais óbvia entre os vedas e o marxismo, aparentemente, é uma ser de origem oriental e outro ocidental. Mas essa oposição desfaz-se se considerarmos que o marxismo é uma doutrina económica e política. É que a ciência económica ocidental moderna nada seria sem a matemática. Aliás, sem matemática não teríamos coisas como dinheiro, tecnologia, ciência, computadores, todas essas coisas coisas que identificamos como fazendo parte da essência do mundo ocidental. Isto porque a matemática não foi inventada no ocidente. Foi-nos trazida pela cultura árabe, e quem a transmitiu aos àrabes foram... os vedas, na índia.

Na época em que o maior número que os gregos e romanos usavam era 10 6, os hindus usavam números como 10 53 (ou seja, 10 elevado a potência de 53), com nomes específicos pra isso.
Por volta do séc. 5 d.C, enquanto o Ocidente utilizava ainda os desajeitados algarismos romanos, desenvolveu-se na Índia o sistema decimal posicional, idêntico ao que usamos hoje. Nosso sistema é o próprio sistema hindu, transmitido ao Ocidente através dos árabes séculos depois. Os nomes desses algarismos em sânscrito são claro testemunho desta origem oriental:
1 eka, 2 dvi, 3 tri, 4 catur, 5 panca, 6 sat, 7 sapta, 8 asta, 9 nava.
Também foi inventado pelo indiano Aryabhatta o número "zero" (chamado de "vazio"), ingrediente fundamental para uma numeração verdadeiramente posicional.

Interessante também é esta notícia que, acerca da extrema competitividade ao nível da matemática entre os alunos indianos no acesso a cursos de engenharia, tem-se popularizado o uso da chamada matemática védica. São usadas fórmulas de cálculo matemático que são extrapoladas a partir de fontes dos textos védicos. Pradeep Kumar, que ensina matemática védica, diz que há um interesse crescente entre os aspirantes ao Instituto Indiano de Tecnologia em ter ajuda da matemática védica. Ele ensina mais de 200 estudantes na sala e cerca de 600 através de cursos de longa distância. Vejam esta notícia neste link.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Bertolt Brecht nasceu há 110 anos

Faz hoje, dia 10 de Fevereiro, 110 anos do nascimento do poeta e dramaturgo Bertolt Brecht. Este alemão marxista foi contemporâneo de Hitler. Foi também vítima e testemunha de duas guerras mundiais. Sua obra versa em grande parte a temática das dificuldades da vida nos tempos modernos. Em honra deste senhor então, deixo aqui um poema dele chamado precisamente "Tempos Modernos"


Os tempos modernos não começam de uma vez por todas.
Meu avô já vivia numa época nova.
Meu neto talvez ainda viva na antiga.

A carne nova come-se com velhos garfos.

Época nova não a fizeram os automóveis
Nem os tanques
Nem os aviões sobre os telhados
Nem os bombardeiros.

As novas antenas continuaram a difundir as velhas asneiras.
A sabedoria continuou a passar de boca em boca.

Bertolt Brecht

Ainda sobre Brecht e os tempos modernos, há um artigo muito bom de Slavoj Zizek sobre o mundo do ciberespaço, que se chama "The Cyberspace Real", em que ele olha para as tecnologias não somente na perspectiva corrente de que estas são a causa de um conjunto infinito de possibilidades da nossa imaginação, mas sim como a tecnologia é o concretizar das possibilidades da imaginação já perspectivadas anteriormente na história da cultura. Destes "futuros anteriores", Zizek destaca por exemplo Madame Bovary de Flaubert e também, uma peça de Brecht, "The Measure Taken", que é usada como modelo para compreensão lacaniana dos ambientes dos jogos virtuais interactivos de multi-jogadores:

"just before his death, when asked about what part of his works effectively augurs the "drama of the future," Brecht instantly answered "The Measure Taken." As Brecht emphasized again and again, The Measure Taken is ideally to be performed without the observing public, just with the actors repeatedly playing all the roles and thus "learning" the different subject-positions — do we not have here the anticipation of the cyberspace "immersive participation," in which actors engage in the "educational" collective role-playing?" Zizek

Vejam o artigo aqui: http://www.egs.edu/faculty/zizek/zizek-the-cyberspace-real.html

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

...

Vi um homem aproximar-se de mim. "Quem será?" pensei. Olhei e vi. Ele observou-me longamente, de cima a baixo. Eu esperava algo dele. Estava à espera de um determinado acontecimento que seria decisivo. Estava a espera de ver nele algo para que pudesse dar-lhe um nome, torná-lo familiar. Mas ele continuava a olhar-me. Vejo-o a olhar-me cada vez mais fundo e atentamente. Eis então que eu disse: "Eis um homem". De repente, sua postura alterou-se. Ergueu-se, pôs-se numa postura recta, séria, olhando displicentemente para os lados. Não fiz caso disso. Não me impressionou a reacção dele. No entanto, permanecia curioso em relação à sua conduta. Havia ali algo de misterioso. Disse-lhe então: "És um homem estranho". Então, ele fez uma cara de enjoado, meteu as mãos à cara e aninhou-se um pouco. Abaixei-me para o espreitar e então vi-o tirar lentamente a mão o que permitiu ver um sorriso diabólico na cara do homem. Estava com uma cara de quem sabe algo que nós não sabemos e tira gozo disso. Aquele sorriso de quem julga estar detentor do conteúdo inconsciente de outra pessoa e então, há uma satisfação secreta em nos apossarmos do outro desta maneira. Eu olho para aquele homem e penso, que mistérios obscenos ele estará congeminando sobre mim. Que homem absurdo. Rio-me. Ele também se ri. Rimo-nos os dois. Eu rio-me daquilo que eu sei dele mas que ele não sabe. Ele ri-se de algo que sabe de mim mas eu não sei. E rimo-nos, não um do outro, mas sim cada um de seu outro particular. Eu paro de rir. Olho fixamente para o homem. Levanto o braço e ele levanta também. Aproximamos as mãos. E então sinto um contacto frio. É o espelho. E então percebo que toda a minha vida estive do lado errado do espelho. Num determinado momento terei trocado de lugar com o meu outro. Quem sabe? Nunca o poderei saber. O meu outro não me deixa dúvidas. Dá-me sempre razão.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Waking Life

Vi o "Waking Life" (ou na tradução para português, Acordar para a Vida) e é simplesmente um dos melhores filmes que já vi. É de 2001, da autoria de Richard Linklaker. Fala-nos sobre o sonho e a vida, determinismo, livre arbítrio, neurobiologia, política, existencialismo, tudo isto de uma forma simples e fluida, tal como de um sonho se tratasse.
Descobri também que é possível ver o filme completo (!!!) neste link:
http://video.google.com/videoplay?docid=7583894250854515095

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Zen, Trabalho e Lazer



Quando criei este blog aqui há uns tempos anunciei o seu teor anti-utilitarista e anti-pragmatista, ou seja, que este blog não serve para rigorosamente nada. Encontrei uns vídeos no youtube do Alan Watts com o título "Work as play" que se enquadram nessa visão.
O Alan Watts é um dos maiores divulgadores ocidentais do Budismo Zen. Neste vídeo, ele fala-nos na rígida divisão no nosso mundo moderno, entre trabalho e lazer. É dado o exemplo de um motorista de autocarros: trata-se de uma tarefa difícil que requer muitas manobras, estar atento às pessoas que entram, dar o troco, etc. A questão aqui é que, se o motorista encarar essa tarefa como "trabalho", então sua vida é um inferno. Mas se ele, ao invés, vir o seu trabalho como um jogo, então o seu emprego torna-se um divertido e desafiante jogo em que constantemente se faz a camioneta dançar por entre o complicado trânsito, fazendo o motorista chegar ao fim do dia completamente acordado e cheio de energia. O outro lado disto é vermos o lazer como um trabalho, por ser feito de forma compulsiva. Alan Watts dá o exemplo de quando era novo e ninguém na sua escola gostava de correr, porque era obrigatório. É o tipo de coisa que acontece quando alguém nos diz: "És obrigado a ser feliz!" Como é que uma ordem destas pode fazer com que alguém se torne realmente feliz? Há uma banda-desenhada do Calvin & Hobbes que ilustra muito bem esta ideia do lazer compulsivo:


A perspectiva Zen do trabalho e do lazer que Alan Watts nos oferece, permite-nos ver o absurdo que se nos apresenta o mundo de hoje, em que nos é vendido prazer empacotado, com a mensagem: Goza! O prazer do jogo tem de acontecer de forma espontânea, senão não é prazer. Espontânea como? quando são desfeitas as noções de causalidade, e de acção programada vista a um fim. Quando o sujeito se funda em acção, sem qualquer vestígio de intencionalidade.

No clássico de Eugen Herrigel, "O Zen e a arte de atirar o arco", Herrigel pergunta ao seu mestre: "Se fecho a mão com todas as minhas forças, o estremecimento ao abri-la é inevitável. Se me esforço por deixá-la relaxada, a corda liberta-se ainda antes de atingir a tensão máxima. (...) Oscilo entre estes dois tipos de fracasso e não encontro solução.
- Tem que segurar a corda do arco como um bebé aperta o dedo que se lhe estende. Segura-o com tanta firmeza que a força daquele punho minúsculo é sempre motivo de admiração. E quando o solta fá-lo sem a menor sacudidela. E sabe porquê? Porque a criança não pensa: agora vou largar o dedo, para agarrar nesta outra coisa. Sem reflctir, sem intenção nenhuma, vai de um objecto a outro, e dir-se-ia que brinca com eles, se não fosse mais exacto achar que são os objectos que brincam com a criança.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Carnaval

Oscar Wilde dizia que o teatro é mais real do que a vida. Assim, o Carnaval é a época mais genuína do ano. Este ano descobri que, afinal de contas sou um pintor francês.


segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Darth Vader psicanalisado

Sabiam que Darth Vader tem sentimentos inconscientes não resolvidos e recalcados acerca da homossexualidade? Sim, isto e muito mais foi possível deslindar através da técnica da associação de ideias com Darth Vader sentado no divã:

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Peixes, Coincidências, Mãos a abanar

Certa vez Chuang Tzu e um amigo caminhavam à margem de um rio."Veja os peixes nadando na corrente," disse Chuang Tzu, "Eles estão realmente felizes...".
"Você não é um peixe," replicou seu amigo, "Então você não pode saber se eles estão felizes."
"Você não é Chuang Tzu," disse Chuang Tzu, "Então como você sabe que eu não sei que os peixes estão felizes?"

Conto Zen

"No dia 1 de Abril anotei o seguinte: Hoje é sexta-feira. Teremos peixe no almoço. Alguém mencionou de passagem o costume do "peixe de Abril". De manhã, eu anotara uma inscrição: Est homo totus medius piscis ab imo (o homem todo é peixe pela metade, na parte de baixo). À tarde, uma amiga paciente, que eu já não via desde vários meses, mostrou-me algumas figuras extremamente impressionantes de peixes que ela pintara nesse entretempo. À noite mostraram-me uma peça de bordado que representava um monstro marinho com figura de peixe. No dia 2 de abril, de manhã cedo, uma outra paciente antiga, que eu já não via desde vários anos, contou-me um sonho no qual estava à beira de um lago e via um grande peixe que nadava em sua direcção "aportava", por assim dizer, em cima de seus pés. Por esta época, eu estava empenhado numa pesquisa sobre o símbolo do peixe na História. Só uma das pessoas mencionadas tem conhecimento disto. A suspeita de que este caso seja talvez uma coincidência significativa, isto é, uma conexão acausal, é muito natural. Devo confessar que esta sucessão de acontecimentos me causou impressão. Ela tinha para mim um certo carácter numinoso."

Carl Jung em "Sincronicidade"



"(...) era uma coincidência que a imagem de uma caveira, desconhecida para mim, ocupasse o outro lado do pergaminho, mesmo por baixo do meu desenho do escaravelho - e de uma caveira que se assemelhava ao meu desenho, não só no contorno como nas dimensões. Confesso que esta coincidência me deixou positivanente estupefacto, por um instante. É o efeito vulgar desta espécie de coincidências. O espírito esforça-se em estabelecer uma relação, uma ligação da causa com o efeito e, julgando-se impotente para o conseguir, sofre uma espécie de paralisia momentânea."

"O escaravelho de ouro" de Edgar Allan Poe em "Histórias extraordinárias"


O que é uma coincidência? O que tem de tão mágico e especial? Suponhamos dois amigos que conversam no café uma conversa própria de se ter num café ou nem por isso. Um deles pensa para si mesmo como seria bom sair dali e ir até ao parque, para ter uma conversa de parque ou outra qualquer. Nisto, eis que do outro amigo saem umas palavras ingénuas da sua boca dizendo: “estava a pensar ir até ao parque, estamos lá melhor”.Pasmado, o primeiro amigo não sabe que dizer. Como é que ele se foi lembrar da mesma coisa que eu ao mesmo tempo, pensa ele.
Toda a gente sabe o que isto é, ou seja, a toda a gente já deve ter acontecido algo do género, o que nos deixa sempre com uma sensação de magia e transcendência que não conseguimos confirmar nem desmentir.

Foi no sentido desse confirmar ou desmentir que segundo o nosso amigo Freud, inventámos o princípio da realidade. Passar de um modo alucinatório do pensamento, nos tempos em que para o bicho humano só existia sonho, para um modo de realidade, em que tentamos estabelecer o que é verdade e o que é mentira, o que é real e o que não é, e o que veio primeiro e o que vem a seguir neste caótico mundo que nos rodeia e do qual somos parte, de uma forma paradoxal.
É fácil dizer que, ao beber o copo de água, que ele estava cheio, que depois bebi o copo e pousei-o vazio. É o que o bicho humano faz a toda a hora e a cada momento, e quase que não conseguimos imaginarmo-nos doutra maneira. Contamos o tempo, os segundos, os metros, os quilómetros, o que veio primeiro e o que veio a seguir. E foi assim que inventámos o tempo.
Na verdade, antes de nós já havia outros bichos, os que andavam na água, mais tarde, os que andam na terra e os que andam no ar. Na verdade, há quem diga que, a uma certa altura, tudo o que é vivo era exclusivo da água. Os bichos que andavam na água, os peixes.

“Conforme as águas rolam, tu rolas. As águas banham-te e com elas te banhas e nunca emerges. Nunca saber nada, nunca compreender nada. A tua vida é uma represa de sensações ao longo dos teus flancos, um fluxo nas malhas das tuas barbatanas, ao longo da espiral da tua cauda”.

"O Peixe", D.H. Lawrence



O bicho peixe é assim. O mundo para eles é sensações ao longo das barbatanas e das escamas. Não sabe nem compreende nada. Há também as aves, e estes são bichos parecidos, embora às vezes pousem as patas na terra. Se calhar já foram quadrúpedes como nós também já o fomos. A diferença essencial é essa. Refiro-me ao que Deleuze e Guattari entendiam por desterritorialização e reterritorialização. Houve ao momento em que éramos muito peludos e andávamos com as quatros patas no chão. Depois houve um bicho que se levantou e deixou-se estar assim sem fazer das mãos asas como as aves, e sem no entanto voltar a pô-las no chão. As mãos, que antes usávamos para agarrar o chão e o território como fazem os cães, passaram a ficar suspensas entre o céu e a terra.
E o bicho humano nasceu porque passou a ter um território privilegiado, que tem os seus limites no chão opaco e concreto por baixo, e por outro lado, tem o limite de cima, que não tem fim conhecido, que se estende até aos confins do universo. E essa é uma das angústias primordiais do bicho humano. Está permanentemente obrigado a fazer uma ponte entre o finito e o infinito, a estar na terra a olhar para as estrelas, o sol e a lua, mas de mãos a abanar. Que território é este que temos em frente? Como é que algo assim pode ser sentido como nosso? Como vamos sobreviver aqui? As mãos são suficientes para apalpar um palmo de terra, um de cada vez, mas não consegue apalpar o intervalo entre o céu e a terra. A divisão teve que ser feita noutro lugar, num cérebro talvez, e de uma forma abstracta que não ocupe lugar e que nos deixa de mãos a abanar. Como disse Nietzsche, o homem é uma corda esticada sobre o abismo, entre o animal e o super-homem.

Com os nossos dez dedos, começámos talvez por contar estrelas, sem nunca as podermos agarrar. E foi aí talvez que apareceu a matemática, e outras coisas. Mas nossos cérebros primitivos, que até então só serviam para sonhar e para desejar, tiveram que começar a acomodar números e medidas que são a ligação que arranjámos para com este território novo que nos deixa de mãos a abanar. E este território só poderia então ser partilhado entre bichos humanos desta forma. Percebe-se o bicho que sentiu necessidade de escrever os seus mamutes na gruta, para dizer quantos eram. Começou ai a linguagem, e também o tempo, porque nós ainda olhamos para o céu como o cão que põe uma pata primeiro no chão, e depois põe a outra. Primeiro uma, e depois outra. Foi assim que inventámos o tempo, que mais não é do que por as coisas umas a seguir às outras, encadear acontecimentos. Em consequência, inventámos a causalidade, o dizer que isto aconteceu porque teve uma causa, e a causa porque teve uma causa. Não poderíamos fazer isto sem a noção de tempo.

Voltemos aos nossos bichos humanos que estavam no café, e se lembraram “ao mesmo tempo”, de ir até ao parque. Um deles fica maravilhado sem saber porquê. Na verdade, a parte maravilhosa das coincidências, é que não sabemos dizer o que está primeiro nem o que está depois, é aliás isso que define uma coincidência, o não podermos usar a causalidade para explicar o que está a acontecer. E aí experimentamos o mundo da mesma maneira que o primeiro bicho humano, que tirou as patas do chão, olhou para o céu, e ficou pasmado, e assustado talvez, não sei. Quanto a isso só posso imaginar. Como disse William Blake, tudo o que hoje está provado, foi um dia apenas imaginado. No mundo das coincidências, as coisas acontecem todas ao mesmo tempo e não há nada que possamos provar com certeza. É uma ponte aberta para a imaginação. È o lugar que nos lançou para fazermos cultura e civilizações. Tudo isto porque estamos de mãos a abanar. Não somos como os peixes que estavam em contacto e em união com o seu território, de forma fácil e límpida. Nós somos os sem abrigo por excelência. Somos humanos porque estamos perdidos, e as coincidências lembram-nos exactamente isso.