domingo, 26 de outubro de 2008

A Crise da Economia Parasitária

Toda a gente fala da crise, se chegou ou não o fim do capitalismo, entre outras coisas que tais. Entretanto temos visto coisas formidáveis. O Presidente da Reserva Federal Americana veio dizer qualquer coisas como "ups, afinal o mercado livre não funciona tão bem como eu pensava".

Na Alemanha, costumava-se vender cerca de 500 exemplares por ano de "O Capital" de Karl Marx. Este ano já se venderam mais de 1500. No mesmo artigo onde vi isto, dá-se conta de uma sondagem feita a alemães de leste que diz que 52% perderam a confiança no mercado livre, e que 43% gostava de voltar a uma economia socialista. Vejam o resto do artigo aqui.

Ah, hoje vi na capa da Visão o seguinte título "Fukuyama diz o que vai mudar no capitalismo". Incrível vindo do homem que dizia que a História tinha acabado. Bastou-me ler o título.

Neste estado de coisas, é sempre bom voltar ao situacionismo de Raoul Vaneigem, com o seu livro "A Economia Parasitária", de 1996. Selecciono aqui algumas passagens:

"A acumulação de dinheiro improdutivo e o estado de uma terra esgotada por ter produzido rendibilidade em vez de alimentar os povos, são coisas que hoje em dia só nos mostram o impasse a que foi conduzida uma economia cujos êxitos se alicerçavam na exploração conjugada da natureza e do homem pelo homem. (...)

As sociedades só mudaram em função das mudanças exigidas por uma economia tributária dos progressos da mercadoria e do trabalho que corrigia a sua execução. A preponderância da agricultura cede terrreno à indústria sob a pressão do comércio e da livre circulação dos bens.

O novo modo de produção, por sua vez, cai em desuso em proveito de um vasto circuito de consumo em que a mercadoria ganha mais em distribuir-se do que em manufacturar-se. Mais rendível, em suma, que a produção e o consumo, a gestão do capital leva a melhor, deixando o planeta entregue ao estado de património fundiário apto para a rendibilidade e inapto para o investimento. (...) uma economia extenuada dedica-se zelosamente a sacar os seus derradeiros benefícios e a concentrá-los no círculo duma especulação internacional onde a sua inutilidade tem cotação na bolsa. (...)

A proliferação da inutilidade e a rarefacção do primordial não podiam encontrar uma forma mais adequada de expressão do que a burocracia financeira internacional, cujo absolutismo estabelece com a sociedade viva uma relação de extraterrestre (...)

A nossa época situa-se no ponto de confluência e de divergência de duas sociedades que rejeitamos, uma porque produz a morte, a outra porque prefere à vida a sua mentira lucrativa.

A cibernetização dos lucros prepara-se para reduzir ao mínimo um trabalho condenado em virtude da sua rendibilidade decrescente. O desemprego, as reduções de salários e a supressão das regalias sociais expõe nas tabelas mundiais das cotações bolsistas os mandamentos do Deus caprichoso que reina nos mercados e nos lares. Cada qual se vê obrigado a sacrificar-se-lhe como ao velho Jeová, que, oprimindo os seus fiéis com desgraças, os ameaçava com outras ainda maiores se deixassem de os adorar. Ora, ao contrário da sobrevivência, a vida não é competitiva. (...)

Rejeitamos uma relação de forças em que a vontade de poder volte a ter rigor espiritual, ou uma relação de torca onde o vivo se degrada em coisa morta. A nossa época precisa de uma grande lufada de ar fresco, que volte a vivificá-la. Há-de vir o tempo em que cada indivíduo, rejeitando a apatia de que o poder letárgico extrai a força necessária a oprimi-lo, se há-de tornar guerreiro sem armadura e sem outra arma que não seja uma invencível força de viver. Que sem tréguas ele combata em prol daquilo que tem de único e de mais encarecido no mundo, a sua própria existência, verdadeiro campo de batalha onde nervos, músculos , sensações e pensamentos respondem à solidão de desejos ofuscados pela paixão de fruir, vendo-se contrariados, recalcados, mutilados e negados pelos mecanismo deuma economia que explora o corpo exactamente como explora a terra."

sábado, 25 de outubro de 2008

Paulo Coelho e Música de Supermercado: cultura "light" sem riscos nem danos colaterais.

Num blog aqui ao lado, comentava-se uma entrevista de Eduardo Lourenço em que este por sua vez comentava Paulo Coelho. Este dizia que aquilo não era bem literatura. Era uma literatura "light"

Eu confesso ter lido dois livros de Paulo Coelho. Acho que é um crime dos intelectuais suponho. Entre gente que leia coisas a sério como Flaubert ou Dostoievsky, ler Paulo Coelho é muito mau, é tabu. Eu estive lá. O que eu acho? É uma literatura tão fácil, tão fácil que eu li aquilo quase por acidente. Li uma página, duas, mas aquilo é tão "light" que, como que se escorrega nas mãos e de repente leste um livro do paulo coelho. Ler um parágrafo ou dois de Deleuze demora tanto tempo como 2 ou 3 livros de Paulo Coelho.

É uma literatura segura, sem riscos. Se Nietzsche é um soco no estômago, Paulo Coelho é uma brisa que faz cócegas, no máximo. A literatura no seu expoente máximo é uma agressão brutal da nossa identidade, uma violação das coordenadas do nosso ego. Num mundo em que todos andam inseguros com seus pequenos eus que tanto querem preservar, e de gente que não se quer incomodar muito com leituras que exijam muito, paulo coelho é ideal para quem apenas quer ver confirmados os seus preconceitos, sua pequena visão do mundo, seu cantinho abrigado do caos. Paulo Coelho é como aquela música de supermercado ou da rádio que, não sendo nunca obras-primas, nunca chega a ser mau. Essencialmente, preenche um vazio sem agredir muito.

Uma vez um amigo quis mostrar à colega de trabalho Jeff Buckley, para ver se elevava sua cultura musical acima dos hip-hops MTV e do pop-rock romântico RFM. Não gostou. Disse que era música triste. Aí está o paradigma: não uma música que nos emocione, mas sim uma música que simplesmente encha e preencha um vazio. Uma música segura e uma literatura segura, testada e controlada.

A cultura no seu pleno é emocionalmente violenta. É uma cultura que incomoda, que nos aproxima das angústias essenciais da vida ao invés de nos manter indefinidamente e neuroticamente alienados. Em suma uma cultura que nos remeta para a angústia primordial de termos nascido. Que nos faça regredir para poder crescer, ao invés de nos mantermos em repetições compulsivas de velhos hábitos e rituais do nosso euzinho.

A cultura não é para qualquer um. Não é uma receita de farmácia, remédio dos coitadinhos. A cultura é para os corajosos, crentes e curiosos. É para deixar quem somos em casa, e aventurar-se na descoberta do que ainda nos falta ser. É para quem não lhe basta não querer morrer, é para quem tem sede de viver.

Expose yourself to your deepest fear; after that, fear has no power, and the fear of freedom shrinks and vanishes. You are free.
Jim Morrison

Got a lust for life, Yeah, a lust for life. I got a lust for life
Iggy Pop


Zizek - Entrevista de Respostas Curtas

Encontrei uma entrevista deliciosa com Slavoj Zizek, de perguntas e respostas curtas (para variar), na edição on-line do Guardian. Deixo aqui alguns pontos altos:

When were you happiest?
A few times when I looked forward to a happy moment or remembered it - never when it was happening.
(...)
What makes you depressed?
Seeing stupid people happy.

What do you most dislike about your appearance?
That it makes me appear the way I really am.
(...)
What would be your fancy dress costume of choice?
A mask of myself on my face, so people would think I am not myself but someone pretending to be me.
(...)
What or who is the love of your life?
Philosophy. I secretly think reality exists so we can speculate about it.

(...)
What is the most important lesson life has taught you?
That life is a stupid, meaningless thing that has nothing to teach you.

Tell us a secret.
Communism will win


Vejam o resto aqui: http://www.guardian.co.uk/lifeandstyle/2008/aug/09/slavoj.zizek

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Novas Ligações Rizomáticas

Acrescentei 2 novas ligações.

A primeira é o blog Trans-ferir: Tem referências como Lacan, Agamben e Bob Dylan, é da autoria do Vítor Oliveira Jorge, arqueólogo, poeta, ensaísta, professor da FLUP.

Outro blog é o Flutuante. A autora andou por aqui a espalhar comentários polvilhados de referências. Segui o rasto e acho que é um sítio que vale a pena espreitar: filosofia, literatura, cinema e coisas assim.

O Medo, Marca Registada do Capital

"A obdediência que outrora justificava o temor dos deuses, exigem-na hoje dos povos, com a mesma firmeza, as leis de mercado que substituiram esses deuses."
Raoul Vaneigen

O mundo mercantil capitalista em que vivemos, tem como sustento maior, o sentimento do medo. Sim, o medo. Compra bifidus activus senão ficas a preto e branco sem côr, como no anúncio. Compra este pacote de seguros para todos os riscos pois não se sabe o dia de amanhã, podes ter um acidente, ser apanhado num terramoto, ataque terrorista, morrer de ataque cardíaco. Compra iogurte magro pois podes engordar, ficar desagradável e ninguém gostar de ti. Compra esta roupa da moda pois uma mulher desactualizada não atrai, está desfasada, é de mau gosto. Compra outro par de sapatos pois os que tu tens podem-se estragar.

Em suma, o maior argumento para vender mercadoria, e nisto podem consultar os manuais do marketing, é o de que os produtos satisfazem necessidades. Então como é que a nossa psique reconhece uma necessidade? Através do sentimento do medo. O medo é o sentimento que nos sinaliza os potenciais perigos e potenciais ameaças. O medo nunca é a coisa mesma, mas sim algo que o antecede. O medo vem sempre por antecipação senão não tinha utilidade evolutiva. O medo vem sempre antes do real perigo, e daí o poder incrível que o medo tem, pois não tem fim a nossa imaginação daquilo que é possível acontecer de mal.

Há quem diga que o maior medo de todos é o medo da morte. Sendo assim, vivemos numa sociedade da morte, onde toda a nossa imaginação e ilusão está subordinada ao sentimento do medo de morrer. A verdade é que não é possível vender nada a um homem que não tenha medo da morte. Nem mesmo comida. Para o homem que não teme a morte, toda uma sociedade parece um castelo de cartas ridículo. Não é por acaso que nós modernos temos tanto celeuma com o suicídio e a eutanásia. Lembremo-nos que o que alimenta o comércio é o medo da morte, não a morte em si. O medo é sempre algo que antecede a coisa mesmo. A coisa mesmo, a morte, não serve de muito se queremos prolongar o medo. É sempre preciso deixar com que a morte nunca chegue a vir, mas que ela esteja sempre presente.

"A obsessão da morte, a vontade de abolir a morte através da acumulação, torna-se o motor fundamental da racionalidade da economia política"
Jean Baudrillard

Por isso temos a medicina que em casos determinados nos prolonga a vida até aos 100 anos com a condição de andarmos entubados, comatosos, inúteis, não vivos, mas também não mortos ainda. Assim damos emprego a vendedores de soro, camas, enfermeiros, médicos, farmacêuticos.
O mesmo raciocínio é válido para tudo: o crime dá emprego a polícias, advogados, magistrados e juízes; a pressa dá emprego aos construtores de automóveis, a doença mental dá emprego a psicólogos, psiquiatras, videntes e bruxos; e os desempregados dão emprego a muita gente: todos vivemos bem sobre o mal dos outros.

Os outros, sempre os outros. O maior medo de todos não é a morte. O maior medo de todos é o de ficar sozinho. Quem não tem medo de morrer tem para si assegurado uma companhia no além, ou então sabe para si que ele mesmo não existe separado de nada. As boas companhias não se compram. A vida não se compra, mas pode-se vender pois somos todos necessariamente uns vendidos (o que fazes da vida? sou isto, aquilo, camionista, corretor). O que não se compra é a boa companhia. Só o medo se compra e se vende desmesuradamente.

Fiquem com um "Poema Pouco Original do Medo" de Alexandre O'Neill. (Os Godot têm uma música feita a partir desta bela poesia)

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

The Band

Uma das coisas boas da vida é descobrir uma boa banda de rock dos anos 70. Mas desta vez descobri não uma banda, mas sim A Banda, ou melhor The Band.

















Os The Band eram uma banda de canadianos tida em muito boa conta pela generalidade dos músicos folk e rock da altura, como Bob Dylan que os chegou a levar consigo numa tornée.
A formação original durou apenas entre 1967 e 1976.

No dia 25 de Novembro de 1976 deram um magnífico concerto de despedida com uma dúzia de convidados ilustres como por exemplo Eric Clapton, Neil Diamond, Bob Dylan, Van Morrison, Ringo Starr, Muddy Waters, e Neil Young. Um passarinho disse-me que dava para sacar o álbum desse concerto aqui.

Édipo e Anti-Édipo, A lei moral de Kant como legislação da castração

Transcrevo aqui comentário a um post do Dioniso no seu blog. Vale a pena para todos os amantes da filosofia (e particularmente de Nietzsche e Deleuze) irem visitar o seu "Declínio da Escola".

Freud dizia, se não me engano quanto às suas palavras exactas: "Que necessidade haveria de proibir o que não seria de antemão desejado?". Mas Deleuze e Guattari no Anti-Édipo insurge-se contra esta ligação directa entre a proibição e o desejo, no sentido em que toda a produção de desejo seria eminentemente social na sua génese, que o desejo tem de ser produzido e investido num campo social.

Penso que é possível conciliar o Édipo de Freud com o Anti-Édipo de Deleuze e Guattari (síntese hegeliana?), através da leitura dessa obra formidável de Freud, Totem e Tabu, que mostra como as regras elementares sociais de tribos primitivas, o totem (que designa o clã e a linhagem) e o tabu (as proibições implícitas) tinham a consequência de impedir a consanguinidade. Assim, o filho não podia ter relações sexuais com a mãe, a filha com o pai, nem entre irmãos e irmãs, o que efectivamente corresponde a uma primeira organização social humana, que permitia distinguir as linhagens e ordenar-se socialmente. Aqui é que faz sentido então falar na castração como algo de fundamental para a civilização humana, no sentido em que o desejo tinha de se manifestar na sua estrutura social adequada.

A moral kantiana pode ser considerada então, de certa forma, como uma rigorosa legislação da castração, do que nos torna humanos civilizados.
Só através da castração acedemos à ideia de objecto ideal de amor, onde cabe a ideia de pureza e de impureza. Só quando um objecto de amor tem a possiblidade de ser considerado "impuro" (a mãe e os irmãos) é que se pode chegar à noção de objecto de amor "puro", ideal (a mulher do tipo mãe que será minha, nunca realmente a mãe mesmo) E só aí é possível sermos seres linguísticos, pois a linguagem tem funções, como sugere Baumann, de inclusão e de exclusão, ou da criação de simulacros de Baudrillard, tentando combater a ambivalência do desejo.
A linguagem verbal é neste sentido uma permanente legitimação da pureza da sensualidade da experiência de nossas vidas (sim, neste sentido tudo é sexual e sensual na linguagem).

A lei moral kantiana como concepção do desejo no seu estado puro implica uma concepção do desejo como o inalcançável precisamente por ser puro. A noção de pureza implica um objecto ideal de amor que naturalmente nunca poderá ser satisfeito. Isto implica uma clara cisão (e aí entra a lei) em que todo e qualquer desejo tem necessariamente de ser produzido socialmente. Mas isto é precisamente onde Deleuze e Guattari insistiam tanto, que não devemos voltar a pegar na mãe e no pai para compreender o desejo, mas sim no investimento que é feito em todo um campo social alargado. O esquizofrénico persegue então, não um objecto social "puro", mas sim os objecto parciais de Melanie Klein que Deleuze tanto gostava. O esquizofrénico rasgaria assim esse corte entre a pureza e a impureza, o ideal e o real, num modo de ser terrivelmente ambivalente.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

O Tempo e o Progresso em Kant, Deleuze, Baumann e Hermann Broch

"Quero ser feliz porra, quero ser feliz agora, que se foda o futuro, que se foda o progresso"

José Mário Branco em "FMI"

"A verdade é que, faça o homem o que fizer, tudo o que ele faz tem por fim anular o tempo, suprimi-lo e a esta supressão se chama espaço. A própria música, que existe unicamente no tempo e que enche o espaço, transmuda o tempo em espaço."

Hermann Broch em "Os Sonâmbulos"

Comecei a ler "Modernidade e Ambivalência" de Zygmunt Bauman. Começa por nos falar da modernidade como fragmentação do mundo. Fragmentação como esp
artilhamento e legitimação do ordem. Fala-nos de um mundo de especialistas, de otorrinos e urologistas para sempre separados. Há uma necessidade de cada um de nós ter uma tarefa bem delimitada, particular privada e impossível, que nunca acabe. O discurso moderno passa por dizer que o que interessa é a viagem, o processo e não a chegada. Os pontos de chegada são apenas estações temporárias. Num mundo sem deuses, já não há uma causa e fins comuns e universais. Há passados relativos, privatizados que desembocam numa viagem sem fim de repetições eternas desses mesmos passados.

"A modernidade é o que é - uma obsessiva marcha adiante -, não porque queira sempre mais, mas porque nunca consegue o bastante; não porque se torna mais ambiciosa e aventureira, mas porque as suas aventuras são mais amargas e as suas ambições frustradas. (...) Estabelecer uma tarefa impossível não significa amar o futuro mas desvalorizar o presente. O presente está sempre "a querer", o que o torna feio, abominável e insuportável."

Vivemos num tempo subjugado pelo tempo e pelo progresso. Entenda-se o tempo como sucessão de momentos, como noção ordenadora de acontecimentos uns atrás dos outros. É neste plano que se pode conceber a causalidade e a lógica a que estamos todos obrigados a viv
er. Entenda-se o tempo como plano de racionalidade extrema. Vivemos os nossos dias contados hora a hora, segundo a segundo. Vivemos as nossas vidas como acontecimentos que têm uma causa, causa que tem uma outra causa e assim por diante. Há uma crise financeira que acontece de um momento para o outro e tenta-se entendê-la dando-se possíveis causas, que por sua vez têm outras causas. Há consequências que por sua vez originam consequências tal como os minutos se sucedem aos minutos. Não há forma de sair de fora do tempo. É este o plano de uma racionalidade extrema, que vive por si só, isolada do eterno. Entenda-se o eterno como um agora que se estende aquém e além do tempo. Perdeu-se uma noção de eternidade que vive de um presente total e não fragmentado em bocados, a capacidade de apreender o todo ao invés de apreender apenas "uma coisa de cada vez". A única forma actual de termos uma noção aproximada do eterno é através de coincidências que nos remetem para uma circularidade e totalidade perdidas. Se antes toda a noção de tempo era circular e centrada na eternidade de Deus, de onde todos vimos e todos regressamos, o que se abre é uma linha para o infinito de repetições.

Sobre isto Deleuze tem um texto "Acerca de Quatro Fórmulas Poéticas que Poderiam Resumir a Filosofia Kantiana". Nele Deleuze aborda a mudança operada por Ka
nt ao nível da noção de tempo:

"O tempo já não se refere ao movimento que ele mede, pelo contrário, o movimento refere-se ao tempo que o condiciona. Do mesmo modo, o tempo já não é uma determinação do objecto, mas a descrição de um espaço, espaço que devemos abstrair para descobrir o tempo como condição do acto. O tempo torna-se unlinear e rectilíneo, já não no sentido em que ele media um movimento derivado, mas nele mesmo e por ele mesmo, na medida em que ele impõe a todo o movimento possível a sucessão das suas determinações. (...) O tempo deixa de ser curvado por um Deus que o fazia depender do movimento. (...) Tudo aquilo que se move e se altera está no tempo, mas o próprio tempo não se altera, não se move, nem sequer é eterno. Ele é a forma de tudo aquilo que se altera e que se move, mas é uma forma imutável e que não se altera.

De que forma é que daqui, desta noção de tempo reificada, rectilínea, lineariz
ada, a apontar para o infinito, chamada de progresso, se pode entendender a excessiva especialização do mundo de que fala Baumann? Nada como voltar aos romance "Sonâmbulos" de Hermann Broch, como já fiz por duas vezes neste blog (aqui e aqui) e por motivos bem distintos:

"A razão primeira foi transportada da infinidade "finita" de um Deus, em todos os casos ainda antropomórfico, para o verdadeiro infinito abstracto. As cadeias de questões não desembocam mais nessa ideia de Deus, dirigem-se, efectivamente, para o infinito (não convergem mais, por assim dizer, tornam-se paralelas), a cosmogonia já não repousa em Deus, mas na (...) consciência de que não existe em parte alguma um ponto de chegada, (...), de que não podemos isolar nem uma matéria original nem uma razão primeira (...)"

E assim chegamos finalmente à ideia de especialização, progresso e de modernidade, expressa maravilhosamente desta forma:

"Faz parte da lógica do Soldado atirar uma granada às pernas do inimigo.
Pertence, da maneira geral, à lógica do militar tirar partido dos agentes de potência militar com as mais extremas consequências e o mais radicalmente possível, caso haja necessidade disso, inclusivamente exterminando os povos, fazendo ruir as catedrais e bombardeando os hospitais e as salas de operação.

Faz parte da lógica do potencial da economia explorar os agentes económicos com as consequências mais extremas e o mais integralmente possível, e, anulada toda e qualquer concorrência, auxiliar o seu próprio instrumento económico a ascender à dominação exclusiva, quer se trate de uma empresa comercial, de uma fábrica, de um trust ou de qualquer outro organismo económico.

Faz parte da lógica do pintor levar os princípios da pintura à sua realização, com a consequência mais extrema e mais radicalmente possível, correndo o perigo de fazer nascer uma criação completamente esotérica, só acessível à compreensão do produtor.

Pertence à lógica do revolucionário levar avante o impulso revolucionário com a consequência mais extrema e o mais radicalmente possível até que hajam decretado que se trata de uma revolução em sia, da mesma forma que em geral pertence à lógica do homem político levar o seu objectivo político até à ditadura absoluta.

Faz parte da lógica do intrujão, oriundo da burguesia, pôr em prática, com a consequência mais extrema e o mais radicalmente possível, a directriz: enriquece-te! (...)

A guerra é a guerra, arte é a arte, em política nada de escrúpulos, negócios são negócios;- tudo isto repete a mesma coisa, tudo isto está possuído desse mesmo espírito agressivo de soluções radicais, está possuído dessa inquietadora brutalidade que eu me sinto tentado a qualificar de metafísica, está possuído desse espírito lógico dirigido ao seu objecto e só ao seu objecto, sem olhar para a direita nem para a esquerda - oh! tudo isto é o estilo do pensamento desta época"

Herman Broch em "Os sonâmbulos"

Este post já vai longo e assim, resta-me acabar sob protesto contra o progresso e assim, termino sem conclusões e não me demorarei mais com este post, pois quanto a isto não tenho mais mais nada a dizer, nem progressos a fazer. Se comecei com José Mário Branco e Herman Broch, termino não de uma forma rectilínea, mas sim de uma forma circular, com Hermann Broch e... José Mário Branco:

"Estamos no caminho para estarmos aqui de vez"

José Mário Branco em "FMI"

domingo, 12 de outubro de 2008

Introdução ao Surrealismo Clandestino, História e Epistemologia do Medo

O título deste post foi, rigorosamente, o sumário da lição 40 do Pinguim no Porto tendo eu recebido humildemente a honra de o escrever na pedra de ardósia para o efeito.

Assim, ontem, Sábado à noite, houve lugar a uma actuação entusiástica dos Godot, com sua "música rock glamourosa". São quatro rapazes e uma rapariga que constituem um conjunto harmonioso de música, teatro, vídeo e poesia.















Dois deles, Miguel, o guitarrista que mais uma vez fez uma actuação fabulosa cheia de alma e Rabino, baterista que espancou a bateria impiedosamente como é hábito, já contracenaram comigo noutros palcos, por exemplo com a peça de teatro Minimal Show. O vocalista Mário Costa, assumiu (e assume) nesse outro palco, o papel de encenador. Aqui é vocalista e intérprete da poesia de Mário Cesariny, Alexandre O'Neill, entre outros, sob a capa de estrela do rock. O Mário teve uma actuação turbulenta e enérgica e os restantes elementos, a Sara no orgão e Luís com seus vídeos de fundo, estiveram em alto nível como é costume neles.

Este sábado também houve lugar a uma homenagem ao recentemente falecido Joaquim Castro Caldas, por intermédio de uma música dos Godot com a participação do público e também do Rui Spranger.

Joaquim Castro Caldas, poeta não alinhado, poeta das tabernas, o poeta que dizia que a poesia "é para comer todos os dias", tal qual uma receita de nutricionista preocupado com a alimentação poética do povo, merece toda a saudade e reverência que se vê espalhada por essa blogosfera fora aqui, aqui, aqui e aqui, por exemplo.

sábado, 4 de outubro de 2008

Jerónimo de Sousa: "Zás, enfio-te o Manuel Alegre no Mário Soares, Sausurre contra Sausurre, Freud contra Freud"

Vi a notícia espampanante de que o Jerónimo de Sousa tinha pedido o Bloco de Esquerda em namoro. Fui ver mais de perto as notícias divulgadas por "Jornal de Notícias" e "TSF" e outros contadores de histórias onde já diziam que a "aliança de forças progressivas de esquerda" não se referia explicitamente ao Bloco de Esquerda. Entretanto, Jerónimo de Sousa desmentiu tudo.

Já que a classe jornalística dominante em Portugal está altamente enviesada ideologicamente pois não sabem ouvir e ler português convenientemente, eu aqui posso dar em primeira mão de que necessária aliança das forças progressivas de esquerda é que o Jerónimo estava a falar. Não é nada de novo, é aliás muito parecido com que um sociólogo francês e
um cantor português cantaram e escreverem há muito tempo, o primeiro em 1976 e o segundo em 1979

"Há que atirar Mauss contra Mauss, Sausurre contra Sausurre, Freud contra Freud"

Jean Baudrillard em "Troca Simbólica e a Morte", 1976


"E zás, enfio-te o Manuel Alegre no Mário Soares, zás, enfio-te o Ary dos Santos no Álvaro de Cunhal, zás, enfio-te o Zé Fanha no Acácio Barreiros, zás, enfio-te a Natalia Correia no Sá Carneiro"

José Mário Branco em "FMI", 1979