terça-feira, 14 de outubro de 2008

O Tempo e o Progresso em Kant, Deleuze, Baumann e Hermann Broch

"Quero ser feliz porra, quero ser feliz agora, que se foda o futuro, que se foda o progresso"

José Mário Branco em "FMI"

"A verdade é que, faça o homem o que fizer, tudo o que ele faz tem por fim anular o tempo, suprimi-lo e a esta supressão se chama espaço. A própria música, que existe unicamente no tempo e que enche o espaço, transmuda o tempo em espaço."

Hermann Broch em "Os Sonâmbulos"

Comecei a ler "Modernidade e Ambivalência" de Zygmunt Bauman. Começa por nos falar da modernidade como fragmentação do mundo. Fragmentação como esp
artilhamento e legitimação do ordem. Fala-nos de um mundo de especialistas, de otorrinos e urologistas para sempre separados. Há uma necessidade de cada um de nós ter uma tarefa bem delimitada, particular privada e impossível, que nunca acabe. O discurso moderno passa por dizer que o que interessa é a viagem, o processo e não a chegada. Os pontos de chegada são apenas estações temporárias. Num mundo sem deuses, já não há uma causa e fins comuns e universais. Há passados relativos, privatizados que desembocam numa viagem sem fim de repetições eternas desses mesmos passados.

"A modernidade é o que é - uma obsessiva marcha adiante -, não porque queira sempre mais, mas porque nunca consegue o bastante; não porque se torna mais ambiciosa e aventureira, mas porque as suas aventuras são mais amargas e as suas ambições frustradas. (...) Estabelecer uma tarefa impossível não significa amar o futuro mas desvalorizar o presente. O presente está sempre "a querer", o que o torna feio, abominável e insuportável."

Vivemos num tempo subjugado pelo tempo e pelo progresso. Entenda-se o tempo como sucessão de momentos, como noção ordenadora de acontecimentos uns atrás dos outros. É neste plano que se pode conceber a causalidade e a lógica a que estamos todos obrigados a viv
er. Entenda-se o tempo como plano de racionalidade extrema. Vivemos os nossos dias contados hora a hora, segundo a segundo. Vivemos as nossas vidas como acontecimentos que têm uma causa, causa que tem uma outra causa e assim por diante. Há uma crise financeira que acontece de um momento para o outro e tenta-se entendê-la dando-se possíveis causas, que por sua vez têm outras causas. Há consequências que por sua vez originam consequências tal como os minutos se sucedem aos minutos. Não há forma de sair de fora do tempo. É este o plano de uma racionalidade extrema, que vive por si só, isolada do eterno. Entenda-se o eterno como um agora que se estende aquém e além do tempo. Perdeu-se uma noção de eternidade que vive de um presente total e não fragmentado em bocados, a capacidade de apreender o todo ao invés de apreender apenas "uma coisa de cada vez". A única forma actual de termos uma noção aproximada do eterno é através de coincidências que nos remetem para uma circularidade e totalidade perdidas. Se antes toda a noção de tempo era circular e centrada na eternidade de Deus, de onde todos vimos e todos regressamos, o que se abre é uma linha para o infinito de repetições.

Sobre isto Deleuze tem um texto "Acerca de Quatro Fórmulas Poéticas que Poderiam Resumir a Filosofia Kantiana". Nele Deleuze aborda a mudança operada por Ka
nt ao nível da noção de tempo:

"O tempo já não se refere ao movimento que ele mede, pelo contrário, o movimento refere-se ao tempo que o condiciona. Do mesmo modo, o tempo já não é uma determinação do objecto, mas a descrição de um espaço, espaço que devemos abstrair para descobrir o tempo como condição do acto. O tempo torna-se unlinear e rectilíneo, já não no sentido em que ele media um movimento derivado, mas nele mesmo e por ele mesmo, na medida em que ele impõe a todo o movimento possível a sucessão das suas determinações. (...) O tempo deixa de ser curvado por um Deus que o fazia depender do movimento. (...) Tudo aquilo que se move e se altera está no tempo, mas o próprio tempo não se altera, não se move, nem sequer é eterno. Ele é a forma de tudo aquilo que se altera e que se move, mas é uma forma imutável e que não se altera.

De que forma é que daqui, desta noção de tempo reificada, rectilínea, lineariz
ada, a apontar para o infinito, chamada de progresso, se pode entendender a excessiva especialização do mundo de que fala Baumann? Nada como voltar aos romance "Sonâmbulos" de Hermann Broch, como já fiz por duas vezes neste blog (aqui e aqui) e por motivos bem distintos:

"A razão primeira foi transportada da infinidade "finita" de um Deus, em todos os casos ainda antropomórfico, para o verdadeiro infinito abstracto. As cadeias de questões não desembocam mais nessa ideia de Deus, dirigem-se, efectivamente, para o infinito (não convergem mais, por assim dizer, tornam-se paralelas), a cosmogonia já não repousa em Deus, mas na (...) consciência de que não existe em parte alguma um ponto de chegada, (...), de que não podemos isolar nem uma matéria original nem uma razão primeira (...)"

E assim chegamos finalmente à ideia de especialização, progresso e de modernidade, expressa maravilhosamente desta forma:

"Faz parte da lógica do Soldado atirar uma granada às pernas do inimigo.
Pertence, da maneira geral, à lógica do militar tirar partido dos agentes de potência militar com as mais extremas consequências e o mais radicalmente possível, caso haja necessidade disso, inclusivamente exterminando os povos, fazendo ruir as catedrais e bombardeando os hospitais e as salas de operação.

Faz parte da lógica do potencial da economia explorar os agentes económicos com as consequências mais extremas e o mais integralmente possível, e, anulada toda e qualquer concorrência, auxiliar o seu próprio instrumento económico a ascender à dominação exclusiva, quer se trate de uma empresa comercial, de uma fábrica, de um trust ou de qualquer outro organismo económico.

Faz parte da lógica do pintor levar os princípios da pintura à sua realização, com a consequência mais extrema e mais radicalmente possível, correndo o perigo de fazer nascer uma criação completamente esotérica, só acessível à compreensão do produtor.

Pertence à lógica do revolucionário levar avante o impulso revolucionário com a consequência mais extrema e o mais radicalmente possível até que hajam decretado que se trata de uma revolução em sia, da mesma forma que em geral pertence à lógica do homem político levar o seu objectivo político até à ditadura absoluta.

Faz parte da lógica do intrujão, oriundo da burguesia, pôr em prática, com a consequência mais extrema e o mais radicalmente possível, a directriz: enriquece-te! (...)

A guerra é a guerra, arte é a arte, em política nada de escrúpulos, negócios são negócios;- tudo isto repete a mesma coisa, tudo isto está possuído desse mesmo espírito agressivo de soluções radicais, está possuído dessa inquietadora brutalidade que eu me sinto tentado a qualificar de metafísica, está possuído desse espírito lógico dirigido ao seu objecto e só ao seu objecto, sem olhar para a direita nem para a esquerda - oh! tudo isto é o estilo do pensamento desta época"

Herman Broch em "Os sonâmbulos"

Este post já vai longo e assim, resta-me acabar sob protesto contra o progresso e assim, termino sem conclusões e não me demorarei mais com este post, pois quanto a isto não tenho mais mais nada a dizer, nem progressos a fazer. Se comecei com José Mário Branco e Herman Broch, termino não de uma forma rectilínea, mas sim de uma forma circular, com Hermann Broch e... José Mário Branco:

"Estamos no caminho para estarmos aqui de vez"

José Mário Branco em "FMI"

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