sábado, 27 de dezembro de 2008

1 ano de Born to be Wilde

Não podia deixar de fazer um pequeno post para assinalar este dia 27 de Dezembro como o dia em que o "Born to be Wilde" completou um ano de existência. Passado um ano, depois de 9.887 visitas e 108 posts (contando com este), a primeira tentação seria dizer que se trata de um sucesso. Contudo, não é esse o caso, pois não havia qualquer critério de sucesso definido e nem sequer o número de visitas serve pois este tornou-se grande o suficiente para se tornar fenómeno de estatística, fenómenos aos quais sou averso. O trocadilho de Born to be Wilde tanto significa nascer para ser como o Oscar Wilde, como nascer para ser um selvagem do rock como a música. Falhei nos dois. Para ser como o Oscar Wilde falta-me ser mais espirituoso e gay. Para ser um selvagem do Rock, falta-me andar de mota ou tocar guitarra como o guitarrista dos Steppenwolf:


O que posso dizer é que este tem sido essencialmente um espaço freudiano de sublimação de pulsões; um espaço marxista onde formulo e produzo ideias para a colectividade sem qualquer noção de propriedade privada; um espaço kierkegaardiano feito de pseudonimias, ironias, humor e angústias existenciais; um não-espaço deleuziano de desterritorialiações e ligações rizomáticas anti-edipianas; e um espaço estético à Oscar Wilde que se consagra também à beleza das artes.
Enfim, há espaço para tudo. Tem havido também espaço para maravilhosos encontros entre cibernautas que partilham de suas opiniões, pensamentos, paixões, e interessess de classe comuns e que aqui encalham e naufragam bastante oportunamente. Tenho conhecido (no mundo das ideias) pessoas muito interessantes e valiosas vindas de lugares mais distantes, mas de espíritos próximos.

Mas enfim, um ano é um ano, uma volta ao sol, medida padrão de relógio castrador. O que valem são os pretextos para celebrar. Ou como disse Carlos Drummond de Andrade:

"São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer a toda hora."

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Tudo o que sempre quiseste perguntar sobre a crise mas o menino Jesus não sabia e Marx não estava lá para te responder

Hoje venho falar da crise. Sim, a crise. Toda a gente fala nela, e nunca ninguém a viu, pelo menos em carne e osso. É uma coisa abstracta, de números grandes e diz-se que os portugueses nunca se deram bem com matemáticas. Vemos na televisão reportagens idiotas de jornalistas a tentarem saber o que é a crise e basicamente reportam-nos como as pessoas compram o bolo rei mais pequenino do que o costume por causa da crise. Vemos pessoas que, não tendo sido em nada afectadas pela crise, não obstante compram menos, sentem-se culpadas e refream o consumo. A crise é um novo Deus, que ninguém conhece ao vivo mas que todos devemos temer. As vozes que vemos na televisão papagueando sobre a crise diz que ela tem a ver com ganância e com falta de regulação, tal como os padres diziam que a gula é pecado e que devemos regular os nossos impulsos sexuais.

Sobre a crise actual, depois de muito (mal) se ver e ouvir, trago-vos duas vozes lúcidas: o economista marxista americano Rick Wolff e o filósofo francês Alain Badiou. O primeiro, Rick Wolff, escreveu um artigo na Monthly Review chamado Capitalism's Crisis through a Marxian Lens. No site Resistir.Info encontram uma tradução minha para português deste mesmo artigo. Aconselho também a verem o seguinte vídeo de uma palestra de Rick Wolff sobre o mesmo tema. Rick Wolff explica-nos como os salários médios reais dos trabalhadores americanos parou de crescer a partir de meados dos anos 70, sendo que estes, para além de já sofreram a exploração clássica capitalista de verem ser transferidas as mais-valias do seu próprio trabalho para os patrões e administradores, começaram nesta altura e verem congelados o crescimento dos seus salários reais. Para manter o padrão de consumo americano, que é a medida de sucesso pessoal americana, os trabalhadores começaram a contrair empréstimos atrás de empréstimos.


A segunda voz lúcida sobre a crise que vos trago é Alain Badiou, que escreveu este artigo genial: "De Quel Réel Cette Crise Est-Elle le Spectacle". Deste artigo há uma tradução em inglês (Of Which Real is this Crisis the Spectacle?), mas eu próprio realizei uma tradução deste artigo para português que aqui transcrevo:

A que Real pertence o Espectáculo desta Crise

Alain Badiou

Tal como nos é apresentada, a crise financeira planetária assemelha-se a um desses maus filmes preparados por aquela fábrica da produção de blockbusters a que hoje chamamos o “cinema”. Não falta nada: o espectáculo do desastre crescente, a sensação de se ser suspenso de enormes cadeias de marionetas, o exotismo do idêntico – a Bolsa de Valores de Jacarta colocada dentro da mesma forma espectacular que Nova York, a diagonal de Moscovo a São Paulo, em todo lugar o mesmo fogo que assola nos mesmos bancos – para não mencionar lances de enredo horripilantes: é impossível evitar a Sexta-feira Negra, tudo está a cair, tudo cairá...

Mas a esperança sobrevive. No primeiro plano, de olho aberto e focados, como num filme catástrofe, vemos o pequeno bando dos poderosos – Sarkozy, Paulson, Merkel, Marrom, Trichet e outros – tentando extinguir as chamas monetárias, enchendo dezenas de biliões no Buraco central. Teremos depois tempo para nos admirarmos (a saga continuará seguramente) de onde vêm esses biliões, dado que há alguns anos, à menor exigência do pobre, as mesmas personagens responderam virando os seus bolsos de dentro para fora, dizendo que não tinham um cêntimo. Neste momento isso não interessa. "Salvem os bancos!" Este grito nobre, humanista e democrático sai das bocas de cada jornalista e político. Salvem-nos a qualquer preço! Vale a pena indicar isto, dado que o preço não é insignificante.

Tenho de confessar: considerando os números que estão sendo difundidos, cujo sentido, como qualquer outro, sou incapaz da representar para mim mesmo (o que são exactamente mil e quatrocentos biliões de euros?), também estou confiante. Ponho toda a confiança nos nossos bombeiros. Todos juntos, estou seguro, sinto-o, vão conseguir.
Os bancos serão ainda maiores do que antes, enquanto alguns mais pequenos ou de tamanho médio, tendo sido só capaz de sobreviver pela benevolência de estados, serão vendidos aos maiores por uma bagatela. O colapso do capitalismo? Devem estar a brincar. No fim de contas, quem é que o quer? Quem saberia sequer o que isso significaria? Salvemos os bancos, dizem-nos, e o resto se seguirá. Para os protagonistas imediatos do filme – o rico, os seus empregados, os seus parasitas, aqueles que os invejam e aqueles que os aclamam – é inevitável um final feliz, mas ligeiramente melancólico, tendo em conta o actual estado do mundo, e o tipo de política que nele tem lugar.

Voltemo-nos antes para os espectadores deste show, a multidão embrutecida que – vagamente instável, que pouco entende, totalmente desligada de qualquer compromisso activo na situação - ouve, como um barulho distante, o canto de cisne dos bancos à deriva. Esta multidão pode apenas tentar imaginar os fins-de-semana extenuantes da nossa pequena equipa heróica de cabeças do governo. Vêem passar à sua frente números tão enormes como obscuros, comparando-os automaticamente aos seus próprios recursos, ou até, ao puro e simples não-recurso que é a corajosa e amarga base das suas vidas. Aí é que está o Real, e apenas conseguiremos aceder a ele se nos afastarmos do ecrã do espectáculo para considerar as massas invisíveis daqueles para quem este filme catástrofe, com seu final feliz incluído (Sarkozy beija Merkel e todo o mundo chora de alegria) não foi mais do que um teatro de sombras.

Nas últimas semanas ouvimos muitas vezes falar da “economia real” (a produção e circulação de mercadorias) e da - como devemos chamá-la? irreal? – economia que é a fonte de toda a maldade, em que os seus agentes tinham-se tornado "irresponsáveis", "irracionais" e "predadores" – abastecendo, primeiro com espírito de rapina, e posteriormente em pânico, a agora massa informe de acções, títulos e moeda. Esta distinção é absurda, e é geralmente imediatamente contradita, quando, por meio de uma metáfora oposta, a circulação financeira e a especulação são apresentadas como 'o sistema circulatório' do capitalismo. O coração e o sangue podem ser subtraídos da realidade viva de um corpo? Um golpe financeiro é indiferente à saúde da economia no conjunto? Como sabemos, o capitalismo financeiro tem sido sempre – o que equivale a dizer nos últimos cinco séculos – um componente principal, central do capitalismo em geral. Quanto aos proprietários e os gerentes deste sistema, por definição eles são só "responsáveis" por lucros, a sua “racionalidade” é medida pelos ganhos e não se trata de eles serem ou não predadores: eles têm que o ser.

Assim sendo, não encontramos nada mais “Real” na sala de máquinas da produção capitalista do que nos seus balcões comerciais ou nas suas cabines especulativas. Os dois últimos corrompem o primeiro: na sua maioria esmagadora, os objetos produzidos por este tipo de maquinaria – apontando apenas para o lucro e para especulações derivadas que são a parte mais rápida e mais considerável deste lucro – são feios, embaraçosos, inconvenientes, inúteis, e é necessário gastar biliões para persuadir as pessoas do contrário. Isto pressupõe transformar as pessoas em crianças mimadas e eternos adolescentes cuja existência consiste simplesmente em arranjar novos brinquedos.

O regresso ao Real não pode ser um movimento que conduz a má especulação "irracional" de volta à produção saudável. É o retorno à vida imediata e reflexiva de todos os que habitam este mundo. É apenas através desse ponto de vantagem que se pode observar o capitalismo sem estremecimento, incluindo o filme catástrofe que ele está infligindo actualmente sobre nós. O Real não é este filme, mas o seu público.

Então o que vemos, se virarmos deste modo tudo ao contrário deste modo? Vemos, e isto é o que significa ver, coisas simples que sabíamos há muito tempo: o capitalismo é nada mais do que roubo, irracional na sua essência e devastador no seu desenvolvimento. As suas poucas décadas de prosperidade selvaticamente desigual sempre se fizeram à custa de crises nas quais quantidades astronómicas de valor desaparecem, expedições punitivas e sangrentas a cada zona que o capitalismo julga ser estrategicamente importante ou uma ameaça, e guerras mundiais que o devolveram à sua saúde.

Aqui reside a força didáctica do visionamento deste filme da crise. Face à vida da gente que o olha, ainda nos atreveremos a orgulharmo-nos de um sistema que delega a organização da vida colectiva ao mais básico dos impulsos – ganância, rivalidade, egoísmo irreflectido? Podemos cantar os louvores de uma “democracia” cujos líderes fazem a licitação da apropriação financeira privada com tal impunidade que chocariam o próprio Marx, que no entanto já havia definido os governos, há cento e sessenta anos, como "os agentes do capital"? O cidadão comum deve “perceber” que é impossível compor o buraco da dívida da segurança social, mas que é imperativo encher de biliões o buraco financeiro dos bancos? Temos que aceitar sombriamente que já não é possível nacionalizar uma fábrica ameaçada pela competição, uma fábrica que emprega milhares de funcionários, mas que já é óbvio fazê-lo com um banco que ficou sem dinheiro por causa da especulação?

Neste negócio, o Real deve ser encontrado do lado mais perto da crise. Pois de onde vem então toda esta fantasmagoria financeira? Simplesmente do facto de, por créditos miraculosos pendentes diantes dos seus olhos, as pessoas destituídas dos meios de as comprar, foram encorajadas na compra de casas vistosas. Os títulos de dívida dessas pessoas foram então vendido e misturados, como se faz com drogas sofisticadas, com produtos financeiros cuja composição se mostrou tão científica como opaca por batalhões de matemáticos.

Tudo isso então circulou, aumentando o seu valor de venda em venda, em bancos cada vez mais distantes. Sim, a medida material desta circulação deve ser encontrada nas casas. Mas foi o suficiente para o mercado imobiliário abrir falência e, como esta medida desvalorizou e os credores exigiram mais, os compradores tornaram-se cada vez menos capazes de pagar as suas dívidas. E quando finalmente eles não puderam de todo pagá-las, a droga injectada nos produtos financeiros envenenou-os a todos: estes deixaram de valer o que quer que fosse. Mas isto parece ser um jogo de soma nula: o especulador perde a sua aposta e os compradores as suas casas, das quais são polidamente desalojados. Mas o Real deste jogo de soma nula fica como sempre no lado da colectividade, da vida comum: no fim de contas, tudo tem origem no facto de existirem milhões de pessoas cujos salários, ou a ausência deles, as tornam absolutamente incapazes de se alojarem. A verdadeira essência da crise financeira é uma crise de alojamento. E aqueles que não encontram casa não são os banqueiros, seguramente. É sempre necessário regressar à existência comum.

A única coisa que podemos esperar deste assunto é que este poder didáctico pode ser encontrado nas lições deste drama severo vivido pelo povo, e não pelos banqueiros, os governos que os servem, e os jornais que servem esses mesmos governos. Este regresso ao Real tem dois aspectos relacionados. O primeiro é claramente político. Como o filme mostrou, o fetiche "democrático" é simplesmente o empregado zeloso dos bancos. O seu verdadeiro nome, o seu nome técnico, como defendi há algum tempo, é o parlamentarismo-capitalista. É aconselhável, como várias experiências políticas que começaram ser feitas nos últimos vinte anos, organizar uma política de uma natureza diferente.

Tal política está, e estará sem dúvida durante muito tempo, a uma grande distância do poder estatal, mas não importa. Ela começa ao nível do real, pela aliança prática entre aqueles que são o mais imediatamente disponíveis para inventar tal política: os proletários recentemente chegados de África e outros lugares, e os intelectuais que herdaram as batalhas políticas das últimas décadas. Esta aliança crescerá com base no que será, ponto por ponto, a sua capacidade de realização. Não entreterá nenhuma espécie de relação orgânica com os partidos existentes nem com o sistema eleitoral e institucional que os sustém. Ela irá inventar a nova disciplina daqueles que não têm nada, a sua capacidade política, a ideia nova daquilo que se parecerá com a sua vitória.

O segundo aspecto é ideológico. Devemos derrubar o velho veredicto segundo o qual este seria o tempo do “fim de ideologias”. Hoje podemos ver claramente que a única realidade deste suposto fim se encontra no slogan “salvem os bancos”. Nada é mais importante do que recuperar a paixão das ideias e contrapôr o mundo tal como ele é com uma hipótese geral, a certeza anticipada de um estado de coisas inteiramente diferente. Ao espetáculo nefasto do capitalismo, opomos o Real dos povos, da existência de todos no movimento próprio das ideias. O tema de uma emancipação da humanidade não perdeu nenhum do seu poder. Sem dúvida que a palavra "comunismo", que durante muito tempo serviu para denominar este poder, foi desvirtuada e prostituída.

Mas hoje, o seu desaparecimento só beneficia os advogados da ordem, os actores fervorosos do filme catástrofe. Mas ressuscitaremos o comunismo na sua claridade novamente descoberta. Esta claridade é também a sua virtude mais velha, como quando Marx disse do comunismo que ele "quebra da forma mais radical com ideias tradicionais" e que ele trará consigo "uma associação na qual o desenvolvimento gratuito de cada um é a condição prévia do desenvolvimento gratuito de todos".

O corte total com o o parlamentarismo-capitalista, a invenção de uma política nivelada com o popular Real, a soberania da ideia: está tudo lá, tudo o que precisamos para nos elevarmos e virarmo-nos para longe do filme da crise.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

O Natal e a Monstruosidade de Jesus

Este ano recebi uma prenda de Natal especial. Nesta data infestada de pais natais trepadores e consumismo atroz, é interessante lembrar a interessante coincidência de um sujeito que faz anos precisamente no Dia de Natal. Chama-se Jesus Cristo. E nesta "monstruosidade de Cristo", Zizek defende uma perspectiva marxista, lacaniana e hegeliana de Jesus. Zizek defende rigorosa e ardentemente o ateísmo como a única maneira de se ser verdadeiramente cristão, defendendo ao mesmo tempo os termos de uma ética materialista.
«Quando as pessoas imaginam toda a espécie de sentidos profundos porque as "assustam as palavras que dizem: Ele fez-se Homem", aquilo que na realidade receiam é perderem o Deus transcendente que garante o sentido do universo, Deus como o senhor oculto que move os cordelinhos - em seu lugar encontramos um deus que abandona a sua posição transcendente e se precipita na sua própria criação, comprometendo-se com ela até à morte, o que faz com que nós, seres humanos, fiquemos sem qualquer Poder superior que olhe por nós, sem outra coisa que não seja o terrível fardo da liberdade e da responsabilidade pelo destino da criação divina e, portanto, do próprio deus. Não continuarão hoje a recear demasiado assumir todas as consequênciaqs dessas palavras? Não preferirão aqueles que se dizem "cristãos" guardar a imagem confortável de um Deus sentado lá em cima, que observa benevolentemente as nossas vidas, nos envia o seu filho como símbolo do seu amor, ou, ainda mais confortavelmente, com a simples imagem de uma força Superior impessoal?"
Slavoj Zizek

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Gonçalo Tavares - Jerusalém

Li há pouco tempo este magnífico romance de Gonçalo Tavares, Jerusalém. Apelidado em França de Kafka português, com uma escrita lúcida, concreta e dura, Gonçalo Tavares transporta-nos para um mundo de personagens sui generis, entre eles o doutor Theodor Busbeck que quer fazer um estudo sobre a distribuição do horror na história humana e que entende necessária a busca de Deus como critério de saúde mental:

"Theodor era absolutamente saudável, em qualquer parâmetro que fosse considerado. Fisicamente, mentalmente e espiritualmente. Estas três categorias eram, aliás, para Theodor uma espécie de pontos cardeais indispensáveis à existência com saúde. Era, a este nível, bem mais flexível do que a maior parte dos seus colegas de clínica mental que reduziam a saúde ao estado em que os músculos fazem o que nós queremos e nós queremos algo de sensato. Para Theodor, a este indivíduo, faltaria ainda a normalidade espiritual. E o que era esta? Eis a fórmula: falta algo ao homem normal, ao homem dito saudável, e ele - como qualquer criança - procura encontrar o que lhe falta, principalmente porque esta sensação de roubo: alguém ou algo que me levou uma parte - parte, continuemos a chamar-lhe assim, espiritual -, então, o homem normal, o homem saudável, vai à procura do ladrão e do objecto roubado, mas neste caso, ele não percebe aquilo que lhe foi roubado, não conhece a forma e o conteúdo da substância que agora lhe faz falta. Descobrir o que fora roubado a nível espiritual, era, para Theodor, um objectivo indispensável. O homem saudável quer encontrar Deus, dizia Busbeck de modo mais directo."

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A Mercantilização do Saber e a Universidade como Estrutura de Certificação de Título Nobiliárquicos

"A cultura superior ainda existe. E mais acessível do que nunca. É lida, vista e ouvida por mais pessoas do que jamais o fora; porém a sociedade bloqueou há muito tempo os domínios espirituais dentro dos quais essa cultura poderia ser entendida em seu conteúdo cognitivo e em sua verdade determinada. O operacionalismo no pensamento e no comportamento remete estas verdades à dimensão pessoal, subjectiva e emocional; nessa forma podem ser facilmente ajustadas ao existente - a transcendência crítica e qualitativa da cultura é eliminada e o negativo integrado no positivo. Os elementos oposicionais da cultura são assim enfraquecidos: a civilização assume organiza, compra e vende a cultura; ideias que em sua essência são não-operacionais, não orientadas para o comportamento, são traduzidas em operacionais e referidas ao comportamento; e essa tradução não é uma simples metodologia, mas sim um processo social e até político"
Herbert Marcuse

Da 12ª Assembleia da Organização do Ensino Superior do Porto da Juventude Comunista Portuguesa saiu uma resolução política fruto da reflexão dos camaradas ao longo dos últimos meses em que se sublinhou o processo de mercantilização do ensino, posta em prática pelos nossos (des)governos, em linha com as orientações globais do processo capitalista. Sob este processo faço aqui algumas observações e reflexões.

O novo Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior, prevê a mudança das nossas Universidades Públicas para o estatuto de Fundações Privadas. Isto é o princípio do fim da distinção entre Ensino público e Privado, na medida em que todo o ensino será privatizado. Será privatizado na medida em que as Universidades começam a ter de funcionar sob uma lógica do lucro, tendo o estado cortado substancialmente nos fundos para o Ensino Superior, obrigando as Universidades a subir as propinas e a fazer parcerias com poderes económicos para poderem simplesmente sobreviver.

Quanto ao aumento brutal das propinas no ensino público universitário, que começam a estar em muitos casos equiparadas ao custo de uma qualquer Universidade privada, convém salientar que isto é uma situação criminosa e anti-constitucional. Basta dar uma olhada na nossa constituição:

Artigo 74º:
(...) 2. Na realização da política de ensino incumbe ao Estado:
(...) d) Garantir a todos os cidadãos, segundo as suas capacidades, o acesso aos graus mais elevados do ensino, da investigação científica e da criação artística;
e) Estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino;

Face a isto, faria todo o sentido que o nosso protector máximo da Constituição, o Presidente da República, vetasse tais leis e obrigasse o governo a parar de atacar direitos dos cidadãos consignados na constiuição. Ao invés disso, temos um presidente corta-fitas, que faz discursos totalmente inócuos e ridículos sobre a "necessidade de união dos portugueses" e de que é preciso, face à crise, "não baixar os braços" entre outras banalidades.
O pior é que nos habituámos a ver o cargo de presidente da república ser reduzido a esta figura de mera representatividade simbólica, que nada faz e que nada diz de sério para além de maus discursos de circunstância e gestos vazios. Chega-se até a acreditar que é um cargo que não serve para nada, quando este tem o poder de vetar leis e derrubar governos.

Mas o que há de trágico em tudo isto é mesmo a privatização e gestão pelo lucro a que está sujeito o conhecimento académico. De repente os cursos tornaram-se também mercadoria e as Universidades tornaram-se centros de recrutamento de mão-de-obra barata, de onde saem todos os anos estagiários frescos e inocentes que não precisam de ser pagos, substituídos a cada ano.

Hoje em dia estudar numa universidade já não é um processo de auto e hetero-conhecimento, uma elevação de padrões culturais e sociais e a construção de uma voz crítica e portadora de novos ideais para a sociedade. A Universidade já não é onde vamos buscar o saber e o conhecimento elevado. A Universidade tornou-se um instrumento burocrático de certificação do saber e legitimador de discursos. O conhecimento já não se ensina de uma forma pessoal e edificante, mas sim em pacotes indiferenciados onde os mesmos programas e matérias são dados por professores diferentes e diferentes alunos recebem informação despersonalizada e empacotada para fácil consumo.

Já não é de agora que muitos alunos apenas vão à universidade para verem reconhecidos um título, fazendo todas as artimanhas disponíveis para o fazer. Mas agora, com o advento da Internet, o saber que a universidade propõe torna-se mais supérfluo. Na internet as novidades científicas e culturais circulam mais rapidamente do que nas universidades. Na internet podemos até tirar cursos de engenharia, mecânica, biologia, filosofia, sociologia, astronomia, etc etc. Está lá tudo, se soubermos procurar. É verdade que não tem os livros todos, mas estão lá as referências e as bibliografias que devemos consultar.
O Professor já não é dono do saber, mas apenas um avaliador que certifica o bem papaguear de rezas estabelecidas.

De tudo isto resulta que a Universidade é reformulada num espírito interesseiro: Tira-se um curso não para aprender mais, mas para aceder aos privilégios de uma determinada classe.
A fusão da universidade com o mercado de trabalho que nossos políticos apregoam é, ao contrário do que se pensa, a desqualificação da universidade na sua capacidade de formular conhecimento e ideais de progresso para um mundo novo, e a legitimação e criação de um neo-nobreza cortejadora dos poderes dominantes e da práxis do mercado.

É preciso tornar as Universidades gratuitas e inúteis, de forma a fazer com que entrem lá apenas as pessoas que querem aprender de uma forma desinteressada. Não é só preciso mudar a universidade. É preciso tornar acessíveis ao povo os bens necessários à sua subsistência, para que a universidade possa acolher, não pessoas desesperadas por sobreviver, e que vêm na universidade um intrumento de garantia de privilégios, mas sim todo um povo interessado em aprender a desenvolver-se cultural e socialmente.

É preciso apontar para o crescimento cultural de um povo e não um crescimento económico. Por algum motivo têm-se a ideia generalizada entre os políticos de que o crescimento económico é sempre bom e deve correr para o infinito. Contudo os recursos naturais da Terra não são infinitos. O que é infinito é a possibilidade de crescimento humano.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Wittgenstein sobre Freud

"Uma vez quando Wittgenstein estava a contar uma coisa que Freud tinha dito e o conselho que tinha dado a alguém, um de nós disse que o conselho não lhe parecia muito sábio. Claro que não, disse Wittgenstein. Mas a sabedoria é uma coisa que nunca esperaria de Freud. Esperteza, sem dúvida; mas não sabedoria"

Rush Rhees em Aulas e Conversas - Ludwig Wittgenstein

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Elbow - Seldom Seen Kid


Um dos melhores álbuns deste ano. Saquem o álbum aqui, e vejam também este vídeo de "Grounds for Divorce":

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Budismo e Avaliação de Professores


O famigerado processo de avaliação de professores instituído por este nosso (des)governo, tem feito correr muito sangue. Bem... sangue não. Tem feito correr muita... tinta vermelha. Os professores queixam-se da excessiva burocratização da profissão e de estarem a ser usados por exemplo, como vendedores de computadores magalhães, desvirtuando as suas nobres funções de elevar o nível de cultura e sabedoria de um povo.

Há um paralelismo que se pode encontrar entre esta situação e um momento particular da história do Japão no período Edo (1615-1867) na forma como eram tratados na altura os monges budistas. No início do período Edo, o Japão foi reorganizado inteiramente por um poder ditatorial, assistido por uma burocracia eficaz e minunciosa. O Budismo perdera sua influência política, tendo passado a ser regida pelo estado, graças aos sistemas dos danka (paroquianos). Os pobres monges para além de terem de mostrar ao povo o caminho da iluminação e libertação, tinham por exemplo que atender os japoneses que estavam obrigados a registarem-se num templo, próximo do qual cada família teria seu jazigo, num processo semelhante ao de um recenseamento.

Assim, tal como os professores portugueses, fizeram dos monges budistas meros serventuários de paróquias, com um estatuto de funcionários e rendimentos derivados de funerais e de outras cerimónias e serviços. Com isso fizeram com que muitos monges budistas Zen, das escolas Rinzai e Soto se recusassem a submeterem-se a um poder que não se limitava a nomear abades e dignatários, mas chegava ao ponto de regulamentar a vida quotidiana dos monges. Também aqui em Portugal, em 2008, vemos muitos professores a reformarem-se mais cedo e a oporem-se a um governo que teima em sobre-regulamentar burocraticamente a profissão.

Pequena nota - Partilho da opinião mais radical e ao mesmo tempo mais sensata que já ouvi sobre isto. Deixem os professores serem avaliados, não pelo ministério, nem os professores uns pelos outros, mas sim pelo elemento da comunidade escolar a quem mais interessa tudo isto: os alunos

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Elogio da Vida Simples - Lanza del Vasto

Esta sexta-feira às 22h, dia 5 de Dezembro, não percam esta apresentação do livro "Elogio da Vida Simples" de Lanza del Vasto, no Clube Literário do Porto. A tradução desta obra foi realizada pelo Psicólogo Paulo Lima Santos, e é ele mesmo que irá fazer esta apresentação. Lanza Del Vasto foi um padre católico que viajou a pé de Itália até à Índia e que, entre outras coisas. foi discípulo de Gandhi.

Pretendia eu transcrever aqui uma ou outra passagem mas perdi-me a olhar para o livro tal o poder e choque causado por muitas das duras e belas afirmações de que é composta esta obra formidável.

"Para não odiar ninguém, hás-de odiar muitas coisas"

" Aquele que não morre por alguma coisa morre por nada. Eis porque eu sustento que é mais sábio ousar"

"A morte é um absurdo: Aquilo que é não pode cessar de ser. Mas nós morremos: porque esta vida não é o nosso ser, mas falta dele."