Hoje venho falar da crise. Sim, a crise. Toda a gente fala nela, e nunca ninguém a viu, pelo menos em carne e osso. É uma coisa abstracta, de números grandes e diz-se que os portugueses nunca se deram bem com matemáticas. Vemos na televisão reportagens idiotas de jornalistas a tentarem saber o que é a crise e basicamente reportam-nos como as pessoas compram o bolo rei mais pequenino do que o costume por causa da crise. Vemos pessoas que, não tendo sido em nada afectadas pela crise, não obstante compram menos, sentem-se culpadas e refream o consumo. A crise é um novo Deus, que ninguém conhece ao vivo mas que todos devemos temer. As vozes que vemos na televisão papagueando sobre a crise diz que ela tem a ver com ganância e com falta de regulação, tal como os padres diziam que a gula é pecado e que devemos regular os nossos impulsos sexuais.
Sobre a crise actual, depois de muito (mal) se ver e ouvir, trago-vos duas vozes lúcidas: o economista marxista americano Rick Wolff e o filósofo francês Alain Badiou. O primeiro, Rick Wolff, escreveu um artigo na Monthly Review chamado Capitalism's Crisis through a Marxian Lens. No site Resistir.Info encontram uma tradução minha para português deste mesmo artigo. Aconselho também a verem o seguinte vídeo de uma palestra de Rick Wolff sobre o mesmo tema. Rick Wolff explica-nos como os salários médios reais dos trabalhadores americanos parou de crescer a partir de meados dos anos 70, sendo que estes, para além de já sofreram a exploração clássica capitalista de verem ser transferidas as mais-valias do seu próprio trabalho para os patrões e administradores, começaram nesta altura e verem congelados o crescimento dos seus salários reais. Para manter o padrão de consumo americano, que é a medida de sucesso pessoal americana, os trabalhadores começaram a contrair empréstimos atrás de empréstimos.
A segunda voz lúcida sobre a crise que vos trago é Alain Badiou, que escreveu este artigo genial: "De Quel Réel Cette Crise Est-Elle le Spectacle". Deste artigo há uma tradução em inglês (Of Which Real is this Crisis the Spectacle?), mas eu próprio realizei uma tradução deste artigo para português que aqui transcrevo:
A que Real pertence o Espectáculo desta Crise
Alain Badiou
Alain Badiou

Mas a esperança sobrevive. No primeiro plano, de olho aberto e focados, como num filme catástrofe, vemos o pequeno bando dos poderosos – Sarkozy, Paulson, Merkel, Marrom, Trichet e outros – tentando extinguir as chamas monetárias, enchendo dezenas de biliões no Buraco central. Teremos depois tempo para nos admirarmos (a saga continuará seguramente) de onde vêm esses biliões, dado que há alguns anos, à menor exigência do pobre, as mesmas personagens responderam virando os seus bolsos de dentro para fora, dizendo que não tinham um cêntimo. Neste momento isso não interessa. "Salvem os bancos!" Este grito nobre, humanista e democrático sai das bocas de cada jornalista e político. Salvem-nos a qualquer preço! Vale a pena indicar isto, dado que o preço não é insignificante.
Tenho de confessar: considerando os números que estão sendo difundidos, cujo sentido, como qualquer outro, sou incapaz da representar para mim mesmo (o que são exactamente mil e quatrocentos biliões de euros?), também estou confiante. Ponho toda a confiança nos nossos bombeiros. Todos juntos, estou seguro, sinto-o, vão conseguir.
Os bancos serão ainda maiores do que antes, enquanto alguns mais pequenos ou de tamanho médio, tendo sido só capaz de sobreviver pela benevolência de estados, serão vendidos aos maiores por uma bagatela. O colapso do capitalismo? Devem estar a brincar. No fim de contas, quem é que o quer? Quem saberia sequer o que isso significaria? Salvemos os bancos, dizem-nos, e o resto se seguirá. Para os protagonistas imediatos do filme – o rico, os seus empregados, os seus parasitas, aqueles que os invejam e aqueles que os aclamam – é inevitável um final feliz, mas ligeiramente melancólico, tendo em conta o actual estado do mundo, e o tipo de política que nele tem lugar.
Voltemo-nos antes para os espectadores deste show, a multidão embrutecida que – vagamente instável, que pouco entende, totalmente desligada de qualquer compromisso activo na situação - ouve, como um barulho distante, o canto de cisne dos bancos à deriva. Esta multidão pode apenas tentar imaginar os fins-de-semana extenuantes da nossa pequena equipa heróica de cabeças do governo. Vêem passar à sua frente números tão enormes como obscuros, comparando-os automaticamente aos seus próprios recursos, ou até, ao puro e simples não-recurso que é a corajosa e amarga base das suas vidas. Aí é que está o Real, e apenas conseguiremos aceder a ele se nos afastarmos do ecrã do espectáculo para considerar as massas invisíveis daqueles para quem este filme catástrofe, com seu final feliz incluído (Sarkozy beija Merkel e todo o mundo chora de alegria) não foi mais do que um teatro de sombras.

Assim sendo, não encontramos nada mais “Real” na sala de máquinas da produção capitalista do que nos seus balcões comerciais ou nas suas cabines especulativas. Os dois últimos corrompem o primeiro: na sua maioria esmagadora, os objetos produzidos por este tipo de maquinaria – apontando apenas para o lucro e para especulações derivadas que são a parte mais rápida e mais considerável deste lucro – são feios, embaraçosos, inconvenientes, inúteis, e é necessário gastar biliões para persuadir as pessoas do contrário. Isto pressupõe transformar as pessoas em crianças mimadas e eternos adolescentes cuja existência consiste simplesmente em arranjar novos brinquedos.
O regresso ao Real não pode ser um movimento que conduz a má especulação "irracional" de volta à produção saudável. É o retorno à vida imediata e reflexiva de todos os que habitam este mundo. É apenas através desse ponto de vantagem que se pode observar o capitalismo sem estremecimento, incluindo o filme catástrofe que ele está infligindo actualmente sobre nós. O Real não é este filme, mas o seu público.
Então o que vemos, se virarmos deste modo tudo ao contrário deste modo? Vemos, e isto é o que significa ver, coisas simples que sabíamos há muito tempo: o capitalismo é nada mais do que roubo, irracional na sua essência e devastador no seu desenvolvimento. As suas poucas décadas de prosperidade selvaticamente desigual sempre se fizeram à custa de crises nas quais quantidades astronómicas de valor desaparecem, expedições punitivas e sangrentas a cada zona que o capitalismo julga ser estrategicamente importante ou uma ameaça, e guerras mundiais que o devolveram à sua saúde.
Aqui reside a força didáctica do visionamento deste filme da crise. Face à vida da gente que o olha, ainda nos atreveremos a orgulharmo-nos de um sistema que delega a organização da vida colectiva ao mais básico dos impulsos – ganância, rivalidade, egoísmo irreflectido? Podemos cantar os louvores de uma “democracia” cujos líderes fazem a licitação da apropriação financeira privada com tal impunidade que chocariam o próprio Marx, que no entanto já havia definido os governos, há cento e sessenta anos, como "os agentes do capital"? O cidadão comum deve “perceber” que é impossível compor o buraco da dívida da segurança social, mas que é imperativo encher de biliões o buraco financeiro dos bancos? Temos que aceitar sombriamente que já não é possível nacionalizar uma fábrica ameaçada pela competição, uma fábrica que emprega milhares de funcionários, mas que já é óbvio fazê-lo com um banco que ficou sem dinheiro por causa da especulação?
Neste negócio, o Real deve ser encontrado do lado mais perto da crise. Pois de onde vem então toda esta fantasmagoria financeira? Simplesmente do facto de, por créditos miraculosos pendentes diantes dos seus olhos, as pessoas destituídas dos meios de as comprar, foram encorajadas na compra de casas vistosas. Os títulos de dívida dessas pessoas foram então vendido e misturados, como se faz com drogas sofisticadas, com produtos financeiros cuja composição se mostrou tão científica como opaca por batalhões de matemáticos.

A única coisa que podemos esperar deste assunto é que este poder didáctico pode ser encontrado nas lições deste drama severo vivido pelo povo, e não pelos banqueiros, os governos que os servem, e os jornais que servem esses mesmos governos. Este regresso ao Real tem dois aspectos relacionados. O primeiro é claramente político. Como o filme mostrou, o fetiche "democrático" é simplesmente o empregado zeloso dos bancos. O seu verdadeiro nome, o seu nome técnico, como defendi há algum tempo, é o parlamentarismo-capitalista. É aconselhável, como várias experiências políticas que começaram ser feitas nos últimos vinte anos, organizar uma política de uma natureza diferente.

O segundo aspecto é ideológico. Devemos derrubar o velho veredicto segundo o qual este seria o tempo do “fim de ideologias”. Hoje podemos ver claramente que a única realidade deste suposto fim se encontra no slogan “salvem os bancos”. Nada é mais importante do que recuperar a paixão das ideias e contrapôr o mundo tal como ele é com uma hipótese geral, a certeza anticipada de um estado de coisas inteiramente diferente. Ao espetáculo nefasto do capitalismo, opomos o Real dos povos, da existência de todos no movimento próprio das ideias. O tema de uma emancipação da humanidade não perdeu nenhum do seu poder. Sem dúvida que a palavra "comunismo", que durante muito tempo serviu para denominar este poder, foi desvirtuada e prostituída.
Mas hoje, o seu desaparecimento só beneficia os advogados da ordem, os actores fervorosos do filme catástrofe. Mas ressuscitaremos o comunismo na sua claridade novamente descoberta. Esta claridade é também a sua virtude mais velha, como quando Marx disse do comunismo que ele "quebra da forma mais radical com ideias tradicionais" e que ele trará consigo "uma associação na qual o desenvolvimento gratuito de cada um é a condição prévia do desenvolvimento gratuito de todos".
O corte total com o o parlamentarismo-capitalista, a invenção de uma política nivelada com o popular Real, a soberania da ideia: está tudo lá, tudo o que precisamos para nos elevarmos e virarmo-nos para longe do filme da crise.
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