terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Futebol, Édipo, Arbitragem e Revolução


Se há coisa que me repele como adepto de futebol são as inúmeras e inesgotáveis conversas e discussões sobre arbitragens. Todas a beleza e interesse das complexidades tácticas, técnicas, físicas e estéticas de um jogo de futebol são afuniladas para questões ordinárias de ordem jurídica tais como: estava ou não fora-de-jogo, foi penalti /não foi penalti, foi falta/não foi falta. Dá-se muito mais atenção às prestações dos árbitros nos jogos, do que aos jogadores, quer nas conversas de café quer nos debates televisivos. Pior: os próprios jogadores "jogam" com o árbitro, atirando-se para o chão, fazendo birras e queixinhas.

Os árbitros, tal como qualquer figura jurídica, são como uma autoridade paterna que regula os conflitos entre duas equipas por recurso a leis. Tal como já foi aqui referido anteriormente, o advento do desporto moderno não se pode dissociar do advento do estado de direito moderno, que trocou o conflito físico e violento entre os homens, por um confronto regido por leis, o que se pode chamar jogo, e que está na base de qualquer processo civilizacional.

O problema nesta cultura de arbitragem está relacionada com um complexo de édipo vivido de uma forma geral por todos os agentes do futebol (jogadores, adeptos, treinadores) que se fixa no árbitro como o pai que interdita o gozo dos filhos, impedindo-os de verem os seus desejos fálicos de triunfo triunfarem sem restrições, qual princípio do prazer sem limites. Esta situação origina uma dependência eterna em relação à figura da autoridade paterna, neste caso o árbitro, sendo que os jogadores e adeptos nunca chegam a ser moralmente autónomos. Pelo contrário, nesta situação, sua dependência mantém-se, e pior, os jogadores infatilizam-se, como podemos ver pelas suas quedas no relvado, birras, queixinhas e choradinhos.

Só há uma maneira de resolver esta situação: Matem o árbitro, façam uma revolução: tirem os árbitros do futebol. Joguem sozinhos e os jogadores e clubes que decidam entre si como hão-de resolver os problemas. Acontecerá o que aconteceu nos primórdios da humanidade e do complexo de Édipo, que Freud explicou bem e Marcuse resumiu com um toque Marxista:

Segundo a hipótese de Freud, o pai [árbitro] é assassinado pelos filhos [jogadores e adeptos] e devorado colectivamente numa refeição fúnebre. A primeira tentativa de libertar as pulsões e generalizar a sua satisfação, de eliminar a distribuição despótica, hierárquica e privilegiada da felicidade e do trabalho, consiste em se libertar da dominação. Esta acaba, segundo Freud, quando os filhos rebeldes ou irmãos vêem ou crêem ver que é impossível não haver dominação e que na verdade o pai não era inútil, por mais despoticamente que tivesse governado. O pai é reposto pelos irmãos, agora voluntariamente e, por assim dizer, de maneira generalizada, como moralidade, isto é, eles impõe a si mesmos, livremente, as renúncias e restrições às pulsões a que antes haviam sido coagidos pelo pai primitivo. Com essa interiorização da dominação paterna - origem da moralidade e da consciência moral - começam a cultura e a civilização.
Herbert Marcuse

Assim sendo, bastava acabar com os árbitros no futebol para podermos começar a ver verdadeiro fair-play e futebol a sério. Seria bonito vermos todos os que se queixavam de roubalheiras e injustiças ficarem sem ninguém que arcasse com as culpas e queixas e, ao contrário, ficarem todos a suspirar pela falta do árbitro.

sábado, 24 de janeiro de 2009

"O Presidente Vai Nu": Obama, Moda e Perversão


A visão do espectáculo Obama produzido pela TV deve ser lido como uma cebola: São várias as camadas de sentido que se devem separar até se chegar a um núcleo duro traumático que faz chorar. Aparentemente é um acontecimento político. Sim, trata-se da tomada de posse de um presidente, evidentemente. Mas vendo de mais perto e prestando bem atenção, vemos que talvez isto não seja bem política: fala-se do vestido da mulher do presidente, das roupas das filhas do presidente e do casaco do presidente, e tudo parece um espectáculo de Moda. Depois, mais de perto, vemos os estilistas a falar das roupas ouve-se coisas como: "Vestido amarelo de Michelle reflete o tema da esperança: com cor que foge da tradição, é vista como símbolo da esperança da campanha e da presidência de Obama".

Isto faz lembrar a história Zen de Ch'ing-yuan, que conta que antes antes de começar a instrução olhava para as águas e as montanhas e elas eram apenas águas e montanhas. Depois de começar o caminho da libertação, reparou que as águas não são águas, e que as montanhas não são montanhas. Depois, quando teve o seu satori, momento de iluminação, pode ver finalmente as montanhas como montanhas e as águas como águas.

A estrutura deste conto Zen passa por um caminho que começa pela ausência de sentido inicial, passando por um processo de atribuição de um outro sentido às águas e montanhas, com o retorno ao sem sentido original no final.

O espectáculo Obama, porém, tem um caminho que passa pelo evento inicial carregado de sentido, havendo depois uma fase de liquidação de sentido em que se fala de tudo o que está aparentemente esvaziado de significação política (como roupas e vestidos), para no fim se voltar a atribuir sentido político a elementos que haviam sido usados para mascarar um sentido inicial. Trata-se de um processo de recalcamento de um elemento traumático, tapado com roupas, sendo que o recalcamento falha e as roupas surgem de novo com a carga traumática inicial. A carga política que o fato de Obama assume no fim, é o que se pode então chamar de perversão.

Assim sendo, a política moderna é rigorosamente aquilo que o Presidente veste, ou seja uma perversão. Mas não nos admiremos com isto, uma vez que todos usamos roupas, e a componente social e sexual das roupas que todos compartilhamos, pode ser tratada como uma perversão generalizada e civilizada.

Klossowski em A Moeda Viva pega na lógica de Sade ao explicar que a perversão é "a primeira reacção contra a animalidade pura e logo uma primeira manifestação interpretativa das impulsões elas mesmas (...) O termo perversão refere-se pois à fixação da emoção voluptuosa num estádio prévio ao acto de procriar, enquanto os termos sadianos "paixões simples", combinando-se em "paixões complicadas", designam as diversas artimanhas pelas quais a emoção voluptuosa inicial, na sua capacidade interpretativa, acaba por escolher entre diversas funções orgânicas novos objectos de sensação para os substituir à ùnica função procriativa e assim manter indefinidamente em suspenso esta última."

Não serão estes "novos objectos de sensação" aquilo que se aplica na perfeição ao que se chama de "roupa": algo que é usado para manter em suspenso a função procriativa, substituindo-a por um processo anterior que se fixa no fantasma da satisfação do desejo? Não serão as roupas o símbolo máximo da possibilidade de trocar a emoção voluptuosa por significações e símbolos que valem pelas mesmas? A importância da farda de Obama e do vestido de Michelle na vida pulsional dos povos ganha assim uma luz nova.

Sobre fardas, vale a pena ler também este pequeno excerto dos sonâmbulos de Herman Broch (que acaba de ganhar o prémio de romance mais citado neste blog):
"A verdadeira função do uniforme não é seguramente outra qualquer senão essa mesma: manifestar e estatuir a ordem do mundo, suprimir o vaporoso e movente da vida, da mesma maneira que esconde o vaporoso e a moleza do corpo humano, encobre a roupa de baixo e a própria pele, é por isso que a sentinela no seu posto deve usar luvas brancas. Assim, ao homem que pela manhã se aperta na sua farda até ao último botão é dada como que uma segunda pele mais espessa, e se lhe afigura então reencontrar a sua vida verdadeira e a sua solidez originária.

Obama vem então dar um novo sentido ao belo conto do Rei que vai nu. Obama e Michele, pensando estarem a usar vestidos muito originais e elegantes, convencidos por dois estilistas larápios, exibem-se face aos jornalistas que os cobrem de elogios. Eu porém, sinto-me como a criança que diz "O Presidente vai Nu", na medida em que Obama mostra não uma roupinha bonita, mas sim de forma bastante nua e crua a forma como a política moderna e racional é essencialmente uma perversão e negação da realidade inegável da vida pulsional ambivalente e móvel de nossos corpos.

Lembro ainda um conto Zen acerca de um monge que perguntou a um mestre Zen qual a verdadeira natureza de Buda. Eis que o mestre se levantou e tirou o seu hábito ficando completamente nu. O monge fugiu assustado e o mestre correu atrás dele rindo às gargalhadas.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Cristiano Ronaldo e a Sociedade do Espectáculo de Débord; Pasolini e o futebol como poesia


Eleito Cristiano Ronaldo o melhor jogador de futebol do mundo, seguem-se as "reacções" produzidas pelos jornalistas, para fazer render mais-valias da produção deste espectáculo. Questionam-se figuras celebridades e políticos que dizem muito bem, que é merecido e desejam tudo de bom. Que mais hão-de dizer? Cristiano Ronaldo, face ao seu apagamento futebolístico que dura há uns bons meses, tem vindo a suplicar aos deuses este prémio, tal compensação fálica de uma insatisfação narcísica. O pior para Ronaldo é que agora é mais difícil jogar com o peso de um tal falo e o receber do prémio não vale mais do que um orgasmo fugidio, perpetuando-se a insatisfação.

O que me ressalta de toda estes cerimoniais e rituais à volta deste prémio, é a profunda incompatibilidade do Ronaldo figura pública com o Ronaldo futebolista. Ronaldo é retirado do seu habitat natural, o relvado e a bola, suada e sangrenta, sendo obrigado a vestir fato e gravata, e a produzir discurso, coisa para a qual não é manifestamente talentoso. Ronaldo é obrigado sob a ditadura da celebridade, a dizer as coisas certas nos momentos certos, e a vestir-se sob determinado código, tal o preço da fama. Assistir a Ronaldo alinhar-se em determinados códigos da fala, que dizem que não podemos dizer abertamente que somos os melhores e os maiores (precisamente quando o somos), obrigando-nos a fazer o neurótico movimento de negação pública da sua superioridade fálica privada para se sacrificar ao princípio da realidade, é assisitir ao ritual da sua própria castração.

Ronaldo, o teu prémio já o ganhaste há muito nos relvados, e quem o deu foram os berros dos ingleses de sábado à tarde que gritam "Rohnaaaldoh" todos os fins de semana a cada golo teu. Não tentes dominar um código que não é o teu, por muito que te estimulem a isso.
Guy Debord já avisava que o mundo moderno haveria de expulsar toda a vivência humana para o mundo da representação. Assim também o futebol vive esse perigo de ver a sua espontaneidade e imediatez serem transmutadas em título e notícia vendível. E as belas capacidades e potências corporais atléticas e estéticas de Ronaldo, vão sendo vilipendeadas e atraiçoadas pelos discursos daqueles que Deleuze chamaria de "agentes de sobrecodificação": jornalistas, burocratas e políticos que se associam e transformam Ronaldo numa marca e numa outra coisa qualquer que não aquilo que é. Ronaldo, através deste prémio, passa a ser a figura que simboliza o espírito de sucesso de uma determinada ideologia de competição competitiva capitalista, ou a figura do sucesso Darwinista do melhor sobre os mais fracos, ou até a figura do elemento destacado do resto da equipa, qual burguesia que se aproveita do trabalho colectivo e das mais-valias de toda uma equipa de mais de 10 jogadores.

Agamben reportando-se Débord diz-nos que "é na figura deste mundo separado e organizado através dos media, em que as formas do Estado e da economia se penetram mutuamente, que a economia mercantil acede a um estatuto de soberania absoluta e irresponsável sobre toda a vida social. Depois de a ter falsificado a totalidade da produção, ela pode agora manipular a percepção colectiva e apoderar-se da memória e da comunicação social para transformá-las numa única mercadoria espectacular, em que tudo pode ser posto em questão, excepto o próprio espectáculo, que, em si, nada mais diz do que isto: "o que aparece é bom, o que é bom aparece"

O futebol e os jogadores de futebol como Cristiano Ronaldo devem resistir a estas tentativas de subverter o código do futebol por um outro código que é o código do marketing capitalista.
O futebol deve sim ser respeitado no seu próprio código. Sim, o futebol tem o seu próprio código que é o de uma comunicação não-verbal, sendo que o futebol de Cristiano Ronaldo é mais bem expresso numa linguagem poética, mais próxima da imediatez e espontaneidade dos ritmos do corpo e das emoções do futebol. Mas nisto não sou muito original: o cineasta Pasolini já em tempos definiu o futebol como linguagem própria, sendo que o jornalismo uma sub-código da língua que estaria muito aquém de conseguir traduzir o fenómeno futebolístico. Após a final do Campeonato do Mundo de 1970, em que o Brasil ganhou à Itália, Pasolini dizia que o futebol poético brasileiro havia ganho à prosa estilizante italiana:

"Justamente por razões de cultura e de história, o futebol de alguns povos é fundamentalmente de prosa, seja ela realista ou estetizante (este último é o caso da Itália); ao passo que o futebol de outros povos é fundamentalmente de poesia.

Há no futebol momentos que são exclusivamente poéticos: trata-se dos momentos do golo. Cada golo é sempre uma invenção, uma subversão do código: cada golo é fatalidade, fulguração, espanto, irreversibilidade. Precisamente como a palavra poética. O artilheiro de um campeonato é sempre o melhor poeta do ano. Neste momento, Savoldi [jogador do Bolonha, do Nápoles e da selecção italiana] é o melhor poeta. O futebol que exprime mais golos é o mais poético. [Tal como Ronaldo]

O drible é também essencialmente poético (embora nem sempre, como a acção do golo). De fato, o sonho de todo jogador (compartilhado por cada espectador) é partir da metade do campo, driblar os adversários e marcar. Se, dentro dos limites permitidos, é possível imaginar algo sublime no futebol, trata-se disso. Mas nunca acontece. É um sonho (que só vi realizado por Franco Franchi [1922-92, um dos principais nomes do cinema cômico italiano] nos "Mágicos da Bola", o qual, apesar do nível tosco, conseguiu ser perfeitamente onírico).

Quem são os melhores dribladores do mundo e os melhores fazedores de gols? Os brasileiros. Portanto o futebol deles é um futebol de poesia -e, de fato, está todo centrado no drible e no gol. A retranca e a triangulação é futebol de prosa: baseia-se na sintaxe, isto é, no jogo colectivo e organizado, na execução racional do código. O seu único momento poético é o contrapé seguido do gol (que, como vimos, é necessariamente poético). Em suma, o momento poético do futebol parece ser (como sempre) o momento individualista (drible e golo; ou passe inspirado).

O futebol de prosa é o do chamado sistema (o futebol europeu). Nesse esquema, o golo é confiado à conclusão, possivelmente por um "poeta realista" como Riva, mas deve derivar de uma organização de jogo colectivo, fundado por uma série de passagens "geométricas", executadas segundo as regras do código (...)

O futebol de poesia é o latino-americano. Esquema que, para ser realizado, demanda uma capacidade monstruosa de driblar (coisa que na Europa é snobada em nome da "prosa coletiva"): nele, o golo pode ser inventado por qualquer um e de qualquer posição. Se o drible e o golo são o momento individualista-poético do futebol, o futebol brasileiro é, portanto, um futebol de poesia. (...)

Destas reflexões de Pasolini acrescentar-se-ia que o nível literário do futebol português subiu bastante desde os anos 70 até hoje, e que a maneira com que Pasolini fala do futebol brasileiro aplica-se também ao futebol português, muito embora Portugal também é uma espécie de síntese hegeliana entre o futebol europeu e o sul-americano, na medida em que é mais táctico do que sul-americano, mas mais latino e criativo que o restante futebol europeu. Assim, o futebol de Portugal seria uma espécie de poesia clássica, de estrutura e canônes rígidos, sendo que o brasil seria um tipo de poesia neo-romântica, mais liberta de regras e estruturas, menos "racional". Só assim então, por uma questão linguística, Ronaldo se pôde afirmar no meio do pragmatismo e utilitarismo inglês.