terça-feira, 28 de abril de 2009

Rock e Futebol


No âmbito do meu estágio enquanto psicólogo do Futebol Clube do Porto, tive oportunidade de fazer parte da comitiva que levou uma equipa do escalão 97/98 da escola Dragon Force, ao torneio Rui Caçador em São Pedro do Sul, Viseu. Foi no sábado, dia 25 de Abril. Neste torneio todas as equipas realizaram dois jogos. Fomos bem recebidos, quer eu, quer jogadores e treinador. Relato isto na medida em que tive uma oportunidade de realizar uma intervenção a título experimental, que passou pela junção de rock e futebol. Antes do jogo, no balneário, e a seguir à palestra do treinador, propus aos jogadores que, ao som de Guerrilla Radio dos Rage Against the Machine, abanassem a cabeça, saltassem e dançassem à vontade. O objectivo passava por promover sentimentos de alegria, segurança, confiança e positividade no momento anterior à competição. Há estudos que demonstram que a música pode ter efeitos sobre os níveis de excitação (Lukas, n.d.; Nilsson, Unosson, & Rawal, 2005), motivação (Karageorghis & Terry, 1997) e ajudar a melhorar performances atléticas (Dorney & Goh, 1992; Karageorghis & Terry, 1997; Krumhansl, 2002).
Blood, Zatorre, Bermudez, and Evans (1999) dizem que nossas emoções estão ligadas à música por intermédio da memória e de processos de associação. A expressividade da música tem muito que ver com o seu poder de evocar experiências emocionais imaginativas.
Quanto ao tipo de música, Krumhansl (2002) refere que quando se ouve música dançável de tempos rápidos, a emoção básica mais comum é a alegria. No estudo de Sorenson, L., Czech, D.R., Gonzalez, Klein, S.J., Lachowetz, T. (2008), fizeram entrevistas a vários jogadores de futebol, ténis e futebol americano acerca da sua relação com o uso da música no desporto, tendo alguns dado alguns testemunhos:
“É a batida. É algo que me faz mexer mais rápido.” ; Segundo este estudo, os participantes usavam a música para aumentar a excitação antes do jogo, por o corpo a mexer e o sangue correr, assim como dar energia e agressividade em determinados instantes.

Assim, fechando as janelas do balneário, através de umas pequenas colunas ligadas ao leitor de MP3, pude participar em primeira mão de um balneário em polvorosa com jovens jogadores em ebulição, saltando, trepando às paredes, aos encontrões, berros e mosh uns em cima dos outros.

No fim pedi aos jogadores que entrassem em campo com aquele espírito. Que fizessem um jogo com rock. Saíram do balneário para o aquecimento e de seguida cilindraram o adversário por 9-0. Procedeu-se da mesma forma no segundo jogo, à tarde, tendo o mesmo sido mais equilibrado, ficando-se pelos 3-0 com um excelente golo de canto directo. Não sei se o rock melhorou o futebol da equipa, mas foi sem dúvida uma boa experiência. Quem quiser saber mais, aconselho a leitura deste artigo.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Democracia Representativa segundo Albert Cossery

"- Ora ouve! O caso passou-se há pouco tempo, numa aldeola do Baixo Egipto, durante as eleições para a junta de freguesia. Quando os funcionários do Governo abriram as urnas, notaram que na maioria dos boletins de voto estava escrito o nome Bargute. Ora os ditos funcionários do Governo não conheciam tal nome, que não figurava na lista de nenhum partido. Inquietos, logo se puseram à cata de informações; e acabaram por saber, pasmados de todo, que Bargute era o nome dum burro por quem toda a gente da aldeia nutria muita estima, por via da sabedoria do animal. Quase todos os moradores tinham votado nele. Que me dizes tu a esta história? Gohar respirou com júbilo; sentia.se extasiado. «São ignorantes e iletrados», disse para consigo, «e no entanto acabam de fazer a coisa mais inteligente conhecida no mundo desde que há eleições». O comportamento destes camponeses perdidos no cu de Judas constituía o reconfortante testemunho sem o qual a vida se tornaria impossível. Gohar sentia-se derretido de admiração. (...) - Admirável - exclamou Gohar. - E como acaba a história? - É claro, não foi eleito. Estás tu a ver, um burro de quatro patas! O que eles queriam, lá os do governo, era um burro só de duas patas."

Albert Cossery em Mendigos e Altivos

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Sobre Darwin e a Evolução: Síntese - Simbiogénese, Teilhard Chardin e Chesterton

Vimos no post anterior como Darwin foi recebido de forma ambivalente por Marx e Engels. Se, por um lado, as descobertas de Darwin situam a evolução da espécie humana como o resultado de sucessivas e intermináveis mutações e transformações, que suporta a visão dialéctica marxista da história, por outro lado criticam a visão próxima de Malthus e Hobbes, que vê a evolução como resultado da selecção natural fundada numa luta pela sobrevivência através da competitividade egoísta.
Engels é aliás bastante preciso sobre esta última questão nas cartas a Pyotr: "Da doutrina Darwiniana aceito a teoria da evolução, mas o método de prova de Darwin (luta pela sobrevivência, selecção natural), considero-a apenas uma primeira expressão imperfeita e provisória de um facto recentemente descoberto. (...) A interacção de corpos na natureza - animados e inanimados - inclui tanto harmonia como colisão, disputa e cooperação.

As pertinentes observações de Engels encontraram eco nas descobertas posteriores do biólogo russo Constantin Merezhkovsky que introduziu à 100 anos, em 1909, o conceito de simbiogénese que é definido como a origem de organismos pela combinação ou associação
de dois ou vários seres através de processos simbióticos. A simbiogénese é um mecanismo evolutivo e simbiose o veículo através do qual esse mecanismo ocorre.

As nossas células, por exemplo, são um exemplo de simbiogénese: todas as células animais contém mitocôndrias, que são o que produz energia para os nossos organismos. A mitocôndria é abastecida pela célula que a hospeda por substâncias orgânicas como oxigénio e glicose, as quais processa e converte em energia sob a forma de ATP que devolve para a célula hospedeira. Acontece que, originariamente, as mitocôndrias existiam isoladas foram das células que nós conhecemos e de que somos feitos. Através deste casamento feliz, pôde-se desenvolver toda a vida animal como a conhecemos.

Se Merezhkovsky a princípio se opunha à selecção natural de Darwin, actualmente aquilo que se chama de Neo-Darwinismo faz a síntese entre estas duas perspectivas. Assim, o motor da evolução da história natural seriam estas duas "forças" que se complementam: uma competitiva e outra cooperativa. Serão estas duas forças correspondentes às pulsões de vida e de morte de Freud? Teriámos por um lado Thanatos, o instinto da vontade de domínio e poder sobre os restantes espécimes em complemento a Eros, a procura do prazer e da profusão da espécie. Aliás, uma das tópicas de Darwin menos conhecidas, é precisamente a noção de selecção sexual, que é um outro mecanismo à parte em conjunto com a selecção natural, que explicaria muitos da evolução humana. A selecção sexual, seria o momento menos conhecido de Darwin onde ele é mais "Freudiano".

Depois de vermos tambem a analogia que Deleuze fez entre a selecção natural de Darwin e o princípio da realidade de Freud, poderíamos também associar o princípio do prazer à simbiogénese, normalmente mais ligado a pequenas partículas, e assim estender os conceitos de amor e desejo à matéria ínfima. Poderíamos aplicar o princípio do prazer à associação entre células e respectivas mitocôndrias. Na verdade, na visão evolucionista, o homem perde seu lugar privilegiado no centro do da natureza e da cosmogonia. E isto é um choque para o narcisismo e megalomania do homem, como bem adverte Freud. Isto tem consequências para a visão teocêntrica do universo, segundo a qual o mundo seria feito por um Deus transcendente, figura paterna que teria no Homem o seu "filho preferido".

É claro que muitos indivíduos, povos e culturas não estão ainda, mais de um século depois, preparados para aceitar todas as consequências da teoria da evolução. Ela significa que deixamos de poder dispor de uma mitologia que nos garante uma ideia de Eu fixa e determinada, através de um passado e um futuro bem definidos.

Neste campo, a ideia dos criacionistas é tentar preservar a cosmogonia simpática segundo todos nós viemos de Deus e voltaremos um dia para Deus. O que aqui está em causa é uma visão do ser humano como algo de fixo e imutável. Relaciona-se com uma ideia estável de Eu, que se define por ideias eternas e determinadas. Isto é uma perspectiva perfeitamente racionalista. Aliás, o próprio nome da teoria que oferecem em contraponto com a teoria da evolução, é revelador: Intelligent Design. Design Inteligente. O universo é algo que foi feito de uma forma planeada, pensada, controlada. Assim sendo, não é justo acusar os criacionistas de fanatismo ou algo que se pareça. Pelo contrário, o criacionismo é uma ideologia do mais extremo racionalismo. Encaixa na análise que Zizek faz quando diz que Deus é uma excepção consitutiva, um milagre, que permite com que o resto do mundo seja completamente racional. A teoria da evolução é sim, uma teoria bastante mais poética e milagrosa, como Chestov nos mostra quando, baseando-se nela, uma pedra se pode transformar numa planta, e uma planta num animal e, assim sucessivamente, tudo é possível.

Teilhard Chardin viu na teoria da evolução todo este potencial poético, milagroso e divino. Tentou fazer uma síntese entre o Cristianismo e a teoria da evolução. Para Chardin, se o mundo era concebido como algo fixo, acabado, como um sistema de elementos estáveis
em equilíbrio fechado, o mundo deixa de ser visto como algo estático para ser descrito como uma massa em vias de transformação. O universo é um processo de evolução e vai convergindo, à medida que a evolução avança, para formas cada vez mais organizadas. Teilhard denomina esse fenómeno de Cosmogénese.

É esta teoria da evolução levada às últimas consequências que inaugura a ideia de progresso, e o endeusamento do futuro ou, como diz Deleuze, o tempo deixa de ser curvado por um Deus que o fazia depender do movimento. (...) Tudo aquilo que se move e se altera está no tempo, mas o próprio tempo não se altera, não se move, nem sequer é eterno.

Não será isto a ideia de Chesterton de que trocámos a adoração do passado pelo endeusamento do futuro? Só neste contexto é que se cria o lugar para o surgimento da chamada ficção científica: o romance do futuro. Em vez de as histórias se contarem num "Há muito tempo atrás...", passam a ser contadas na fórmulas "daqui a muitos milhares de anos" Há um artigo de Chesterton, do início do séc. XX, que resume as consequências da teoria da evolução na modernidade. Chama-se The Fear of the Past:

The last few decades have been marked by a special cultivation of the romance of the future. We seem to have made up our minds to misunderstand what has happened; and we turn, with a sort of relief, to stating what will happen- which is (apparently) much easier. The modern man no longer presents the memoirs of his great grandfather; but is engaged in writing a detailed and authoritative biography of his great-grandson. Instead of trembling before the specters of the dead, we shudder abjectly under the shadow of the babe unborn.

(Tradução: As últimas décadas foram marcadas por um especial cultivo do romance do futuro. Parece que nos convencemos a distorcer o que aconteceu; e viramo-nos, com uma espécie de alívio, para dizermos o que vai acontecer - o que é (aparentemente) bastante mais fácil. O homem moderno já não apresenta as memórias dos seus avós; mas está empenhado em escrever uma biografia detalhada e autoritária dos seus netos. Ao invés de tremer face aos espectros dos mortos, temos um medo abjecto da sombra dos bebés por nascer.)

Vale a pena ler aqui o texto completo deste fantástico ensaio de G. K. Chesterton. Termino (re)lembrando as palavras do sociólogo polaco Zygmunt Baumann:

"A modernidade é o que é - uma obsessiva marcha adiante -, não porque queira sempre mais, mas porque nunca consegue o bastante; não porque se torna mais ambiciosa e aventureira, mas porque as suas aventuras são mais amargas e as suas ambições frustradas. (...) Estabelecer uma tarefa impossível não significa amar o futuro mas desvalorizar o presente. O presente está sempre "a querer", o que o torna feio, abominável e insuportável."

terça-feira, 7 de abril de 2009

Sobre Darwin e a Evolução: Marx, Engels, Lenine, Freud, Deleuze e Chestov

"Darwin, que estou neste momento a ler, é absolutamente esplêndido. Havia um aspecto da teleologia que faltava ser demolida, e isso agora encontra-se realizado. Nunca anteriormente foi feita uma tentativa tão grandiosa de demonstrar a evolução histórica na natureza, ou pelo menos de forma tão feliz. Temos, claro, que aturar o cru método inglês. (...) "É notável como Darwin reconhece entre animais e plantas sua sociedade inglesa com sua divisão de trabalho, competição, abertura de novos mercados, 'invenções' e a 'luta pela existência' malthusiana. É o 'bellum omnium contra ommnes' (guerra de todos contra todos) de Hobbes, e lembra a Fenomenologia de Hegel onde a sociedade civil é descrita como um 'reino animal e espiritual', enquanto em Darwin o reino animal figura como sociedade civil".
Cartas de Marx a Engels entre 1859 e 1860

"Darwin não sonhou sequer em dizer que a origem da ideia da luta pela existência era a teoria de Malthus. O que ele diz é que a sua teoria da luta pela existência é a teoria de Malthus aplicada a todo mundo vegetal e animal. Por maior que fosse o deslize cometido por Darwin de aceitar, na sua ingenuidade, a teoria malthusiana, vê-se logo, a um primeiro exame, que, para se perceber a luta pela existência na natureza – que aparece na contradição entre a multidão inumerável de germes engendrados pela natureza, em sua prodigalidade, e o pequeno número desses germes que podem chegar à maturidade, contradição que, de fato, se resolve em grande parte numa luta, às vezes extremamente cruel, pela existência – não há necessidade das lunetas de Malthus. E, assim como a lei que rege o salário conservou o seu valor muito tempo depois de estarem caducos os argumentos malthusianos sobre os quais Ricardo a baseava, a luta pela existência pode igualmente ter lugar na natureza sem nenhuma interpretação malthusiana. De resto, os organismos da natureza têm, também eles, as suas leis de população, que estão pouco estudadas, mas cuja descoberta será de importância capital para a teoria do desenvolvimento das espécies. E quem, senão Darwin, deu o impulso decisivo nessa direção?"
Carta de Friedrich Engels a Pyotr Lavrov

“Tal como Darwin pôs um fim à visão das espécies animais e de plantas como sendo desconectadas, fortuitas, 'criadas por Deus' e imutáveis, e tendo sido o primeiro a colocar a bilogia numa base absolutamente científica através do estabelecimento da mutabilidade e da sucessão das espécies, assim Marx pôs fim à visão da sociedade como agregação de indivíduos sujeitos a todos os tipos de modificações sob a vontade das autoridades (ou, se quisermos, sob a vontade da sociedade ou governo) que emergem e mudam casualmente, tendo sido o primeiro a colocar a sociologia numa base científica, através do estabelecimento do conceito da formação económica da sociedade como soma total das relações de produção, estabelecendo o facto de esse desenvolvimento ser um processo da história da natureza."
Tradução de Lenin’s Collected Works, Vol. 1

"No decorrer dos séculos, o ingénuo amor-próprio dos homens teve de submeter-se a dois grandes golpes desferidos pela ciência. O primeiro foi quando souberam que a nossa Terra não era o centro do universo, mas o diminuto fragmento de um sistema cósmico de uma vastidão que mal se pode imaginar. Isto estabelece conexão, em nossas mentes, com o nome de Copérnico, embora algo semelhante já tivesse sido afirmado pela ciência de Alexandria. O segundo golpe foi dado quando a investigação biológica destruiu o lugar supostamente privilegiado do homem na criação, e provou sua descendência do reino animal e sua inextirpável natureza animal. Esta nova avaliação foi realizada em nossos dias, por Darwin, Wallace e seus predecessores, embora não sem a mais violenta oposição contemporânea. Mas a megalomania humana terá sofrido seu terceiro golpe, o mais violento, a partir da pesquisa psicológica da época actual, que procura provar o ego que ele não é senhor nem sequer em sua própria casa, devendo, porém, contentar-se com escassas informações acerca do que acontece inconscientemente em sua mente."

Sigmund Freud em "Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, 1917"

A grande novidade de Darwin talvez tenha sido a de instaurar o pensamento da diferença individual. (...) O problema de Darwin apresenta-se em termos muito semelhantes àqueles de que Freud se servirá noutra ocasião: trata-se de saber em que condições pequenas diferenças, livres, flutuantes ou não ligadas, se tornam diferenças apreciáveis, ligadas e fixas. Ora, é a selecção natural, desempenhando verdadeiramente o papel de um princípio da realidade e mesmo de sucesso, que mostra como diferenças se ligam e se acumulam numa direcção, mas também como elas tendem cada vez mais a divergir em direcções diversas e mesmo opostas.

Gilles Deleuze em Diferença e Repetição

"A=A. Dizem que a lógica não precisa deste postulado e que poderia facilmente desenvolvê-lo por dedução. Penso que não. Pelo contrário, na minha opinião, a lógica não poderia existir sem esta premissa. Ao mesmo tempo, ela tem uma origem puramente empírica. No mundo dos factos, A é sempre mais ou menos igual a A. Mas poderia ser de outra forma. O Universo poderia ser constituído de forma a admitir as mais fantásticas metamorfoses. Aquilo que agora é igual a A, seria sucessivamente igual a B e a C, e por aí em diante. De momento uma pedra permanece durante bastante tempo como pedra, uma planta como uma planta e um animal como animal. Mas poderia acontecer a pedra transformar-se numa planta diante dos nossos olhos, e a planta num animal. Que não existe nada de impensável nesta suposição, é provado pela teoria da evolução. Esta teoria apenas coloca séculos no lugar de segundos.

Lev Chestov traduzido de "All things are possible"

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Bob Dylan e Deleuze



Como professor, gostaria de fazer um curso tal como Dylan compõe uma canção, assombroso produtor mais do que autor. E que comece como ele, num instante, com a sua máscara de clown, com uma arte que coloca cada detalhe no sítio exacto, e que, no entanto pareça improvisada. O contrário de um plagiador, mas também o contrário de um mestre ou de um modelo. Uma longúissima preparação, mas sem método nem regras ou receitas.
Gilles Deleuze