quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Obama, Pós-Modernidade e Walt Whitman

Os Estados Unidos da América têm um novo presidente, eleito com uma participação nunca antes vista desde 1908, ou seja há cem anos, que os americanos não votavam tanto. 66%, ou seja dois terços dos americanos, foram votar.

Quem é este homem, Barack Obama, que um dia se emocionou ao compreender as suas raízes africanas no Quénia, terra do pai que nunca conheceu verdadeiramente? Quem é este homem que que diz ter como referências literárias e filosóficas, entre outros, Shakespeare, Hemingway, Mark Twain, John Steinbeck e Nietzsche?

Obama nasceu no Hawai, filho de negro queniano e mulher branca do Kansas, viveu com padrasto muçulmano na Indonésia, voltou para os EUA e mais tarde foi para a urbe de Chicago. Nos tempos de liceu, diz Obama que "tinha amigos brancos e amigos negros. Ia às festas de uns e dos outros. Falava "à branco" ou "à preto", integrava-se em ambas as realidades" mas angustiva-se por não pertencer verdadeiramente a nenhuma delas. Tentou misturá-las, mas não conseguiu.

Kurt Lewin diz-nos que "é característico dos indivíduos que cruzam o limite entre grupos sociais não estarem seguros de pertencer ao grupo no qual estão a entrar nem também àquele de que estão a sair... a causa da dificuldade não é pertencer a muitos grupos, mas a incerteza quanto a pertencer a qualquer um deles.

Esta ambivalência é a condição nata do ser-humano actual pós-moderno. Kurt Lewin é citado por Zygmunt Bauman em "Modernidade e Ambivalência" que nos fala daquilo que é e ficou conhecido como Modernidade, um projecto de nova ordem social herdeiro das tradições filosóficas do iluminismo, que apelavam á ascenção da razão à categoria de verdade, na tentativa de renegar as paixões, supertições e crendices humanas, uma tentativa de combater a ambivalência presente no espírito humano.

O que está subjecente a este projecto de ordem social, é esta visão do jardineiro em que, ao definir muito bem como deve ser o jardim, faz surgir as ervas daninhas. As ervas daninhas só existem na medida em que não encaixam no plano do jardineiro. Assim, de certa forma, é o jardineiro que dá origem á erva daninha, e que origina uma luta sem fim para a combater, por causa da divisão que criou.

A pós-modernidade surge como falhanço deste projecto e o ressurgir da ambivalência. Bauman usa o exemplo dos judeus na alemanha como exemplo do primeiro povo que pode experimentar o que mais tarde se tornou universal: somos todos estranhos, por definição deslocados: já não existe uma identidade colectiva nativa natural, as nossas identidades são algo que é preciso construir. E os deslocados deste mundo experimentam portanto, a condição de estranho universal de cada um de nós neste mundo.

Bauman fala-nos dos judeus na Alemanha como o povo nómada que, nos anos anteriores à segunda grande guerra, foram convidados a aderir ao projecto de assimilação alemão, ou seja a tornarem-se alemães, a abdicar dos privilégios que tinham anteriormente em que vivam em comunidades auto-geridas e com leis próprias dentro do território alemão. Uma geração de judeus como Marx, Freud, Kafka, etc, viveram neste espaço intermédio de não poder voltar para atrás para aquilo que eram os seus antepassados judeus, nem ter a possibilidade de poderem ser verdadeiramente alemães por muito que se esforçassem. Aliás, quanto mais os judeus se esforçavam por serem alemães, mais óbvio era o seu fracasso pois, os alemães tinham medo desta noção de "germanidade" artificial, que pode ser adquirida por esforço. Os alemães posteriormente enfatizavam o "ser alemão" como algo racial, natural, fruto dos genes, nativo. Esta defesa, produto ainda da visão jardineira racional moderna, fracassou com Hitler no expoente desta derrota. Depois, finalmente quando os judeus se estabeleceram, já se encontraram num mundo em que não havia jardineiro para os admitir como plantas autorizadas, num mundo multiculturalista e globalizadao em que os projectos nacionalistas europeus falharam e já não há verdades impostas e absolutas (que era o que antes legitimava as identidades individuais)

Onde é que isto nos leva a Obama? Dizem os especialistas que Obama subiu ao poder através de 98% do voto dos afro-americanos, 68% por cento do voto hispânico e 63% dos votos dos asiáticos. Foi aliás, assim, que esta eleição se torna histórica, pois finalmente os americanos puderam ver em Obama alguém que carrega o fardo de ser estrangeiro num país onde todos são estrangeiros

E de facto, o que os Estados Unidos da América têm de único o facto de serem o fruto novo advindo do falhanço dos nacionalismos europeus. Os Estados Unidos são o país pós-moderno por excelência, onde não há uma identidade nativa natural propriamente dita mas sim uma mescla de culturas, não há uma identidade natural, mas sim, e sempre, uma identidade a ser construída socialmente por diferenciação individual. Os mais deslocados deste mundo, os emigrantes, os que são filhos de estangeiros em terra estrangeira, são, portanto, os que vivem mais agudamente a ambivalência universal do ser humano.

Reparem num pequeno bocado (exemplificativo) do discurso da vitória de Barack Obama:
"(Esta noite) Foi a resposta dada por jovens e velhos, ricos e pobres, Democratas e Republicanos, negros, brancos, latinos, asiáticos, homossexuais, heterossexuais, deficientes, americanos que enviaram a mensagem ao mundo de que não somos somente um conjunto de indivíduos ou um conjunto de estados vermelhos ou azuis. Nós somos, e sempre seremos, os Estados Unidos da América."

Deleuze dizia que os europeus têm um sentido inato da totalidade orgânica, ou da composição, mas eles precisam adquirir o sentido do fragmento, e apenas o podem fazer através de uma reflexão trágica ou de uma experiência do desastre. Os americanos, pelo contrário, têm um sentido natural do fragmento, e que aquilo que precisam de conquistar é o sentimento da totalidade, da bela composição. (...) Neste ponto de vista, o mim dos anglo-saxónicos, sempre rebentado, fragmentário, relativo, opõe-se ao Eu substancial, total e solipsista dos europeus.

Deleuze diz-nos isto num ensaio sobre Walt Whitman. Este poeta foi o primeiro americano talvez, a sonhar o sonho que Obama tenta agora concretizar, dos Estados Unidos como uma totalidade de fragmentos. Deleuze diz que Whitman introduz previamente a ideia de Todo, invocando um cosmos que nos convida à fusão; numa meditação particularmente convulsiva, diz-se hegeliano, afirma que apenas a América "realiza" Hegel, e institui os direitos primeiros de uma totalidade orgânica.

Termino com um poema de Whitman,
poeta das ervas, das pradarias, das uniões indomáveis da natureza, antítese da metáfora do estado nacionalista jardineiro de Bauman, e símbolo de uma universalidade e companheirismo selvagem e fraterno:

























Separando a Erva dos Prados


Separando a erva dos prados, aspirando o seu raro aroma,
Dela reclamo a espiritualidade,
Exijo o mais íntimo e abundante companheirismo entre os homens,
Peço que ergam as suas folhas as palavras, actos, seres,
Esses de límpidos ares, rudes, solares, frescos, férteis,
Esses que traçam o seu próprio caminho, erectos e livres
avançando, conduzinho e não conduzidos,
Esses de indomável audácia, de doce e veemente carne sem mácula,
Esses que olham de frente, imperturbáveis, o rosto dos presidentes
e governadores como se dissessem Quem és tu?
Esses de natural paixão, simples, nunca constrangidos, insubmissos,
Esses da América interior

Um comentário:

Unknown disse...

obrigado pela lição. aprendemos todos os dias, e hoje foi um desses dias.