terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Os Sonâmbulos, o Mar e a Nau dos Loucos

Ando a ser subjugado por esta obra portentosa de Herman Broch, "Os Sonâmbulos". Divide-se em três partes, mas ando a ler uma edição rara e velhinha comprada por 5 euros que tem as três partes num só volume de setecentas e tal páginas. É um obra portentosa que começa de forma quase inocente, insinuadora, progride, leva-nos numa viagem pela Europa do fim do séc. XIX até à primeira guerra mundial já no séc XX, por intermédio de personagens que sintetizam cada uma, as angústias, as marcas e os estilos das épocas que se desenrolam.

"Os Sonâmbulos" não é só um romance. Hermann Broch, à medida que obra se desenvolve, vai abrindo o jogo a diversos estilos e discursos que vão desde a acção do próprio romance, passando por momentos de poesia, devaneio filosófico e ensaio estético, tudo a um nível de escrita altíssimo e delicioso. Tem momentos tocantes de profundidade e lucidez de pensamento assim como momentos de humor caricato em diálogos sempre interessantes. A determinada altura, há um passagem sobre o mar que me fez cócegas na alma. Vejam:

"Lá longe o passageiro do paquete (...) não concebe o perigo onde entretanto está mergulhado, não tem consciência de que uma alta montanha de água o separa do fundo dos mares, que é a terra. Só aquele que visa a um objectivo tem medo, pois pelo seu objectivo é que ele teme . (...) Quem vai sobre as ondas do mar não tem objectivo e não pode cumprir-se: está encerrado em si mesmo. Nele o possível dormita. Quem quer que seja que o ame só o pode amar pelo que ele promete, pelo que repousa nele, não pelo que atingiu ou pelo que atingirá. Por isso o homem da terra firme ignora o amor e toma por amor a ansiedade em que vive. (...) Ora quem procura o amor procura o oceano. Fala talvez ainda da terra que está longe, para além dos mares, mas os seus pensamentos estão alhures, pois crê sem fim a viagem, esperança de alma solitária, esperança de se abrir e de acolher a alma estrangeira que nasce da bruma luminosa e se esvai dentro dele, o homem sem entraves, e que o reconhecer naquilo que ele é, o próprio ser, para além do nascimento e da morte."

Esta pequena digressão de Hermann Broch sobre o mar fez-me lembrar um outro romance:
"O Marinheiro que perdeu as graças do mar" de Yukio Mishima, que fala de um Marinheiro que deixa a sua vida no mar para abraçar uma vida em Terra com Fusako e seu filho Noboru:
"Foi o mar que me fez começar a pensar no amor, mais do que outra coisa; quero dizer, num amor por que valha a pena morrer, num amor que consuma uma pessoa. Para um homem fechado durante todo o tempo num barco de aço, o mar assemelha-se demasiado a uma mulher. Coisas como um mar dolente, tempestades marinhas, caprichos do mar, a beleza do peito do mar reflectindo o sol poente, tudo isso se pode conhecer quando se está num barco. Mas mais do que isso, está-se num navio que monta e cavalga o mar e que é constantemente rejeitado, tal como o velho ditado sobre as milhas e milhas de água que não podem matar-nos a sede. A natureza rodeou o marinheiro com todos estes elementos femininos e, no entanto, ele é mantido tão longe quanto um homem pode estar do corpo quente, vivo, da mulher. É aí que problema começa, aí mesmo - tenho a certeza"

O Mar como símbolo do amor, ou da sua ausência. O mar e a sua completa supremacia sobre a nossa pequenês. O mar, sempre tão maior do que qualquer coisa que imaginemos, é forte e simples, líquido e difícil. O viajante do mar abandona-se ao caos, ao esquecimento da terra e a promessa de uma nova. É o mar como o supremo intervalo entre o eu e o outro, uma contemplação das fronteiras infinitas entre a ordem da terra e a indeterminação do mar.
Em boa verdade, quem se abandona ao mar já não tem pátria pois a sua pátria é o mar que banha todas as terras. O viajante do mar está fora do mundo dos homens e é neste sentido, louco na sua verdadeira acepção, tal como mostra a Nau dos Loucos de Bosch

Foucault explica, na sua "História da Loucura", que durante os séculos XV e XVI, os loucos eram escorraçados, enfiados em barcos para deambularem de terra em terra, para serem expulsos de novo, condenados a andar no mar "ad infinitum". Diz Foucault que "confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro da sua própria partida. Mas a isso a água acrescenta a massa obscura dos seus próprios valores: ela leva embora, mas faz mais do que isso, ela purifica. Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza da sorte; nela cada um é confiado ao seu próprio destino, todo embarque é potencialmente, o último. É para o outro mundo que parte o louco em barca louca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca. (...) Postura altamente simbólica e que permanecerá sem dúvida a sua até aos nossos dias, se admitirmos que aquilo que outrora foi fortaleza visível da ordem tornou-se agora castelo da nossa consciência."

Um comentário:

Unknown disse...

Oi, José! Gostei do que encontrei aqui.
Estou lendo "A história da loucura" e procurei Bosch para entender melhor as referências de Foucault.
Bem engajado seu blog.
Andréia.