terça-feira, 1 de abril de 2008

Dia das mentiras, Ekman, Artaud e sistemas imunitários

Hoje, 1 de Abril, dia das mentiras, fiquei contente por ver Paul Ekman na televisão a falar nas mentiras do José Sócrates. Não estive no simpósio da Bial a ouvir o Paul Ekman pois estive eu próprio nestes dias ocupado com arte de mentir chamada teatro como referi no post anterior.

Ekman é um perito no decifrar das emoções faciais. Tem uma perspectiva Darwinista do corpo humano segundo o qual, por exemplo as rugas que os velhos apresentam na cara e as suas feições gerais, dependem do total de movimentações habituais que esses velhos apresentaram na cara durante as suas vidas. Se eu sorrir toda a minha vida, no fim terei essa sorriso estampado, encrustado, sulcado, agarrado à minha cara. As emoções mudam-nos fisicamente. Tudo isto são coisas que são pacíficas actualmente do ponto de vista científico.

Mas quando um maluco e drogado encenador de teatro chamado Antoine Artaud no princípio do séc. XX diz que o teatro tem como fim modificar e recriar o corpo humano, e que a morte foi inventada, era razão para, como o fizeram, acharem que ele estava maluco e darem-lhe choques eléctricos, ou que era um grande poeta. De facto era-o, mas não só. Devemos revisitar Artaud e fazer-lhe uma revisão científica. Tal como aliás, ele o teria desejado:

"No teatro, poesia e ciência devem, de ora em diante, identificar-se. Toda a emoção tem bases orgânicas. A cultivar a sua emoção no seu corpo é que o actor volta a carregar a densidade voltaica. Saber-se de antemão em que pontos do corpo devemos tocar, é atirar o espectador aos transes mágicos. E desta preciosa espécie de ciência é que a poesia, no teatro, desde há muito se desabituou." Artaud

O teatro é a arte pela qual os actores acreditam na mentira que contam e executam levando o público a partilhar da ilusão e da magia do corpo. Porque as possibilidades do corpo excedem a imaginação e no entanto suportam-se em imaginário. No fundo da nossa carne está também lá o dilema da verdade e da mentira, que mais não é o dilema do eu e do que não é eu.

Tomemos isto de um ponto de vista muito materialista, muito físico: há o cérebro, mas o cérebro faz parte do sistemas nervoso que é enorme, tem nervos que se espalham por todo o corpo. E depois há o sistema imunitário com o qual mantém íntimas relações. A missão de um sistema imunitário é: destruir tudo o que não é "eu". Não é só o cérebro, esse calhau cinzento que nos dá identidade. Nossos sistemas imunitários também precisam de ter uma imagem daquilo que é eu e o que não é. Nosso sistema imunitário, o mesmo que nos protege de gripes, vírus e infecções, também tem memórias, que são muito mais duradouras. Essa dialéctica do que é e do que não é "eu", traduzida de forma muito simplista entre verdade e mentira, não é somente uma abstracção filosófica: está inscrita no nosso corpo, na própria carne, na matéria de que somos feitos. Isto é visível até por exemplo no nosso sentido de visão. Senão, vejamos o que diz o imunologista Gerald Calahan sobre isto:

"our immune systems tell us that the portraits of self are true (when they aren't). So, at the very heart of the self live two lies. We are a storytelling species. It is our stories that sustain us. Even the most rudimentary of human infections requires that we imagine we know and care about who we are. Likewise, any infection, no matter how minor, would be enough to destroy us without an iron-clad image of non-self, and the ability to act on it. We need both stories and the lies they conceal."

Ah, é verdade, o Artaud dizia que a morte foi inventada. Também nisto, é bem capaz de ter razão, segundo uma perspectiva muita larga da evolucionismo. Callahan fala-nos, neste excelente livro "Faith, Madness and Spontaneous Human Combustion", que as bactérias são imortais. Ou melhor, elas podem morrer, mas não morrem naturalmente, não tem a morte inscrita nos genes como nós. As bactérias são organismos mais básicos do que os seres humanos. Nalgum ponto da evolução, as regras de reprodução para a nossa espécie mudaram, de forma a que nossa espécie está sempre a renovar-se através da morte. Aliás nossas próprias células vão morrendo e renovando-se de tempos. O que fica é a imagem, esse molde e contra-molde de um eu e de um não eu. Desta natureza dialéctica do "eu" humano advém a angústia existencial do ser humano que, segundo Kierkegaard assume três variantes: Desespero da não consciência de possuir um eu, desespero em não querer ser um eu, e um terceiro que é o desespero de querer ser um eu.

Um comentário:

S. disse...

Pois foi, a morte foi inventada pela vida. É, por isso, que Artuad também diz que «sou um morto vivo, sou vivo sempre morto...».