domingo, 23 de março de 2008

Os Nove Mil Milhões de Nomes de Deus de Arthur C. Clarke e o humor

Já não coloco aqui nada há uma semana. Na quarta-feira morreu Arthur C. Clarke. O funeral foi ontem, no Sri Lanka, ao som da música de 2001 Odisseia no Espaço, apesar de Clarke ter pedido por escrito que a sua morte não fosse acompanhada de qualquer tipo de ritual religioso. Pois que sua religião era outra, chamada ficção científica, com outros rituais e outras músicas. Clarke não se livra assim tão facilmente da religiosidade. Nunca li nenhum livro dele mas lembro-me do resumo que Jean Baudrillard fez de uma obra dele: "Os nove mil milhões de nomes de Deus":

"Num romance de ciência-ficção, uma confraria de lamas perdidos no fundo do Tibete, dedicam toda a sua vida à recitação dos nomes de Deus, que são inúmeros: nove mil milhões. Quando os tiverem dito e declinado todos, então o mundo acabará, um ciclo completo do mundo. Chegar ao fim do mundo a pé, palavra por palavra, esgotando o conjunto dos significantes de Deus - tal é o seu delírio religioso - ou a verdade da sua pulsão de morte.

Mas os lamas soletram lentamente, o seu ofício dura há séculos. Ouvem então falar de misteriosas máquinas ocidentais, que podem gravar e soletrar a uma velocidade fabulosa. E um deles encomendou um potente computador à IBM para apressar a sua tarefa. Técnicos americanos vêm aos montes do Tibete instalar e programar a máquina. Segundo eles, três meses serão suficientes para chegar ao fim dos nove mil milhões de nomes. Claro que os técnicos não dão o mínimo crédito às consequências proféticas desta contabilidade e, pouco antes do prazo da operação, temendo que os monges se voltem contra eles perante o fracasso da sua profecia, fogem do mosteiro. É então que, ao regressarem ao mundo civilizado, vêem as estrelas a apagar-se uma a uma."

Em nota de rodapé, Baudrillard comenta ainda que "o humor deste romance é tanto mais disparatado quanto procura, erradamente, inscrever a morte onde a pulsão de morte está barrada: os sistemas cibernéticos."

Isto é tirado do livro "Troca Simbólica e a Morte" que comprei há cerca de um ano numa feira do livro do Mercado Ferreira Borges. Não conhecia nada dele, fiquei entusiasmado com a forma como ele descrevia as mais diversas manifestações da pulsão de morte na sociedade moderna. Poucos dias depois, Jean Baudrillard morreu (6 de Março de 2007).

Passado mais de um ano depois, fui agora a uma outra feira no mercado Ferreira Borges, com livros a 1 euro, e encontrei um livro do Gilles Lipovetsky, "A Era do Vazio". Já há algum tempo que procurava ler algo dele. É um sociólogo crítico do moderno e do pós-moderno na mesma linha de Baudrillard, mas muito mais pobre no estilo. Critica a sociedade de consumo, etc etc, faz o discurso clássico da perda de valores, do individualismo e do hedonismo. Mas tem um capítulo interessante sobre o humor que no entanto padece de um problema, na minha opinião: trata o riso e o cómico de forma séria. Tenta explicar o humor e chega a distinguir o cómico velho do cómico moderno com um discurso racional e sério que, basicamente, não tem piada nenhuma.

A maneira de dizer é tão importante quanto o que se diz. O que se diz também é a maneira com que o dizemos, especialmente em anedotas. O erro de tentar explicar o humor de forma séria é o mesmo de pessoas que não entendem uma anedota e pedem que se "explique" a piada.

Freud com a psicanálise tentou explicar tudo. Obviamente que não o conseguiu, mas tentou-o de facto. Freud interpretava coisas como lapsos, sonhos, esquecimentos e anedotas, coisas que são à partida pouco "explicáveis", com hipóteses que ligavam as causas a motivos sexuais, material que curiosamente é muito usado para fazer piadas.

Wittgenstein deu duas hipóteses para Freud tentar explicar tudo com o sexo:
a) ele quer explicar tudo o que é belo de uma maneira porca, querendo com isso quase dizer que ele gosta da obscenidade. Não é obviamente este o caso.
b) As relações que ele estabelece interessam enormemente as pessoas. Têm um encanto. Destruir preconceitos tem encanto.

Wittgenstein é sem dúvida mais engraçado do que Freud, e talvez por isso mesmo foi um bom crítico da sua obra. Já Lacan, que fez uma cisão no movimento psicanalítico tal como a igreja protestante se formou separando-se da igreja católica, também sofre de um problema de estilo.

Zizek é o maior fã de Lacan, mas não lhe perdoa a seriedade excessiva e o estilo rígido e obscuro com que falava na televisão francesa. Zizek
detesta o estilo de Lacan, e usa anedotas e piadas nos seus trabalhos.

Hegel também é um chato, mas teve em Kierkegaard um crítico muito bem humorado, como era preciso. O humor é a forma mais sublime de crítica. Um dos critérios para asseverar a qualidade de um autor é o seu sentido de humor. Como dizia Bergson, o humorista é um moralista disfarçado de sábio. Relembro aqui um texto engraçado de Kierkegaard, sobre o riso:

"Something wonderful happened to me. I was transported into the seventh heaven. All the gods sat there in assembly. By special grace I was accordd the favour of a wish. "Will You", said Mercury, "have youth, or power, or a long life, or the prettiest girl, or any other of many splendours we have in our chest of knick-knacks? So choose, but just one thing."
For a moment, I was at a loss. Then I addressed myself to the gods as follows: "Esteemed contemporaries, I choose one thing: always to have the laughter on my side" Not a single word did one god offer in answer; on the contrary, they all began to laugh. From this I concluded that my prayer was fulfilled and that the gods knew how to express themselves with taste, for it would hardly been fitting gravely to answer, "it has been granted to you"

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