domingo, 26 de outubro de 2008

A Crise da Economia Parasitária

Toda a gente fala da crise, se chegou ou não o fim do capitalismo, entre outras coisas que tais. Entretanto temos visto coisas formidáveis. O Presidente da Reserva Federal Americana veio dizer qualquer coisas como "ups, afinal o mercado livre não funciona tão bem como eu pensava".

Na Alemanha, costumava-se vender cerca de 500 exemplares por ano de "O Capital" de Karl Marx. Este ano já se venderam mais de 1500. No mesmo artigo onde vi isto, dá-se conta de uma sondagem feita a alemães de leste que diz que 52% perderam a confiança no mercado livre, e que 43% gostava de voltar a uma economia socialista. Vejam o resto do artigo aqui.

Ah, hoje vi na capa da Visão o seguinte título "Fukuyama diz o que vai mudar no capitalismo". Incrível vindo do homem que dizia que a História tinha acabado. Bastou-me ler o título.

Neste estado de coisas, é sempre bom voltar ao situacionismo de Raoul Vaneigem, com o seu livro "A Economia Parasitária", de 1996. Selecciono aqui algumas passagens:

"A acumulação de dinheiro improdutivo e o estado de uma terra esgotada por ter produzido rendibilidade em vez de alimentar os povos, são coisas que hoje em dia só nos mostram o impasse a que foi conduzida uma economia cujos êxitos se alicerçavam na exploração conjugada da natureza e do homem pelo homem. (...)

As sociedades só mudaram em função das mudanças exigidas por uma economia tributária dos progressos da mercadoria e do trabalho que corrigia a sua execução. A preponderância da agricultura cede terrreno à indústria sob a pressão do comércio e da livre circulação dos bens.

O novo modo de produção, por sua vez, cai em desuso em proveito de um vasto circuito de consumo em que a mercadoria ganha mais em distribuir-se do que em manufacturar-se. Mais rendível, em suma, que a produção e o consumo, a gestão do capital leva a melhor, deixando o planeta entregue ao estado de património fundiário apto para a rendibilidade e inapto para o investimento. (...) uma economia extenuada dedica-se zelosamente a sacar os seus derradeiros benefícios e a concentrá-los no círculo duma especulação internacional onde a sua inutilidade tem cotação na bolsa. (...)

A proliferação da inutilidade e a rarefacção do primordial não podiam encontrar uma forma mais adequada de expressão do que a burocracia financeira internacional, cujo absolutismo estabelece com a sociedade viva uma relação de extraterrestre (...)

A nossa época situa-se no ponto de confluência e de divergência de duas sociedades que rejeitamos, uma porque produz a morte, a outra porque prefere à vida a sua mentira lucrativa.

A cibernetização dos lucros prepara-se para reduzir ao mínimo um trabalho condenado em virtude da sua rendibilidade decrescente. O desemprego, as reduções de salários e a supressão das regalias sociais expõe nas tabelas mundiais das cotações bolsistas os mandamentos do Deus caprichoso que reina nos mercados e nos lares. Cada qual se vê obrigado a sacrificar-se-lhe como ao velho Jeová, que, oprimindo os seus fiéis com desgraças, os ameaçava com outras ainda maiores se deixassem de os adorar. Ora, ao contrário da sobrevivência, a vida não é competitiva. (...)

Rejeitamos uma relação de forças em que a vontade de poder volte a ter rigor espiritual, ou uma relação de torca onde o vivo se degrada em coisa morta. A nossa época precisa de uma grande lufada de ar fresco, que volte a vivificá-la. Há-de vir o tempo em que cada indivíduo, rejeitando a apatia de que o poder letárgico extrai a força necessária a oprimi-lo, se há-de tornar guerreiro sem armadura e sem outra arma que não seja uma invencível força de viver. Que sem tréguas ele combata em prol daquilo que tem de único e de mais encarecido no mundo, a sua própria existência, verdadeiro campo de batalha onde nervos, músculos , sensações e pensamentos respondem à solidão de desejos ofuscados pela paixão de fruir, vendo-se contrariados, recalcados, mutilados e negados pelos mecanismo deuma economia que explora o corpo exactamente como explora a terra."

3 comentários:

Victor Gonçalves disse...

A grande vantagem da história continuar é de ninguém saber para onde vai. Aliás, é interessante ter sido um,na altura, neoconservador a ditar o fim da história (Fukuyama), quando essa teleologia niilista está muito mais ligada às ideologias de esquerda, quer na grande dialéctica hegeliana, quer no materialismo dialéctico marxista.

Seja como for, ainda bem que afinal as previsões só podem ser feitas no fim do jogo!!!

pls disse...

é interessante a referência ao Vaneigem nos tempos conturbados que passam. sempre me pareceu o situacionista mais prometedor, muito longe do estruturalismo circular da sociedade de espectáculo do outro.

a verdade é que nós vivemos numa sociedade esquizofrénica, a portuguesa, integrada num mundo e numa economia global que são ainda mais esquizofrénicos. no campo da esquizofrenia, os "brandos costumes" ou a singularidade da alma portuguesa (que não é necessariamente só um reflexo dos brandos costumes; a alma portuguesa é assunto muito complexo e que exige fino juízo e fino entendimento) protegem-nos em parte, actuando como escudo contra a esquizofrenia galopante do capitalismo actual. esta Nova Grande Depressão, pois é disso que se trata, é apenas um sintoma do abismo que separa o real vivo do sistema de mercado global, das políticas monetárias que permitem o agravamento do fosso entre os mais ricos e os mais pobres (e nisso Portugal é um péssimo exemplo, muito pior do que os EUA...), das políticas de exploração (e destruição sistemática) dos recursos ambientais combinadas com o fenómeno do aumento tendencialmente inflaccionário do desemprego (porque se adoptássemos políticas económicas compatíveis com a preservação do planeta isso iria criar milhões de novos postos de trabalho), e, sobretudo, um apego à materialidade que desapossa a vida do seu elemento espiritual, quero dizer daquilo que justamente pode conferir um sentido à vida.
não tenho a pretensão de leccionar ou ensinar sobre o sentido da espiritualidade, mas direi apenas que se trata de uma espiritualidade dos sentidos e do corpo, e não uma espiritualidade negadora dos sentidos e do corpo.
é preciso ter a esperança de que estamos a assistir (e a viver) ao colapso da civilização ocidental e mundial tal como a conhecemos até aqui. o fim da história prematuramente anunciado por Hegel (e quase 200 anos depois de novo por Fukuyama, e de novo prematuramente) deve-se a um narcisismo primário que tem caracterizado um dos lados mais infelizes da história ocidental. nós não somos os últimos. a história é uma disciplina que só no final do séc XIX adquiriu estatuto científico, e é por isso lícito pensar que estamos ainda numa fase infantil do seu desenvolvimento (embora haja algumas raras excepções a isto). a história é uma ciência quase inteiramente por inventar. e o fim da história não se poderá produzir antes da invenção de uma nova história.
a nova história será, como todas as novas ciências, informada pelo princípio do amor. claro que não me refiro aqui ao amor que é cego (mas será isso amor ou só narcísica projecção idealizante), mas ao amor que é, conforme ensinaram Buda e Jesus entre outros, discernimento.
actualmente, cada um de nós tem o potencial para ser um Buda vivo ou um Jesus vivo. mas quantos de nós o actualizam?

José Magalhães disse...

Oh meu mestre e amigo Paulo Lima Santos, obrigado pelo teu brilhante e luminoso comentário. Fico muito contente por partilhares connosco a tua sabedoria milenar. Um abraço!