quinta-feira, 22 de maio de 2008

O Realismo e o Elogio da Ingenuidade

"A antipatia do séc. XIX pelo Realismo é a raiva de Caliban ao ver a sua cara no espelho.
A antipatia do séc. XIX pelo Romantismo é a raiva de Caliban por não ver a sua cara no espelho"

Oscar Wilde em "O Retrato de Dorian Gray"


Quantas vezes não se ouve no discurso mundano do dia-a-dia expressões como: "temos que ser realistas!", seguido de uma possibilidade ameaçadora; "na realidade temos que aceitar isto e aquilo", como quem faz uma cedência a uma qualquer ameaça no ar, perigosa.
Nisto os políticos são muito bons (em discurso mundano), e dizem muitas vezes "temos que ser realistas, as coisas não são tão boas como se poderia pensar". Há quem diga até de uma forma mais elucidativa: "eu não sou pessimista, sou realista".

O realismo trata de algo de chocante e de mau, alguma exigência cruel, etc. Coloca-se a realidade como contrário de um ponto de vista ingénuo e romântico que diz que no fundo tudo está bem e que tudo corre pelo melhor. Ser realista é portanto, focar o problema e o que está mal, ser objectivo e racional numa perspectiva de resolução de catástrofes.

Isto é um sistema pelo qual, quando somos realistas, trazemos à consciência todas as coisas más. É o processo pelo qual, segundo uma perspectiva psicodinâmica, o recalcado retorna à consciência.

O que isto significa é que o realismo (como qualquer tipo de "racionalidade") precisa do seu imaginário, que a um nível psíquico, chamamos inconsciente (imagens, memórias, sonhos), que neste caso está recheado de acontecimentos catastróficos. É por isso que Lacan definia o "Real", no seu triângulo real-imaginário-simbólico como o acontecimento traumático que não se consegue assimilar em termos simbólicos (dai a razão de retornar sempre).

Freud dizia que o homem era dominado primeiro por um princípio do prazer e mais tarde quando fica neurótico, desenvolvia o princípio da realidade. O princípio da realidade é estruturante de um ego vigilante, tendo como função "adaptar-se às exigências do mundo externo".

Isto permite-nos falar desta "realidade cruel" como algo de fundamentalmente externo e separado do sujeito. Por isso é que um realismo exacerbado pode perfeitamente resultar em paranóia.

É aliás necessária essa cisão para que se possa falar num eu autónomo pensante, num "penso logo existo" cartesiano. E nesta perspectiva "realista", o Sujeito é fundamentalmento narcisista e perfeito, sendo postulado todo o mal como algo de externo "que acontece" e é aí nesse outro termo da relação que se encontra a realidade. Se este jogo entre dois termos se mantiver e aprofundar, temos um eu cada vez mais perfeito e cada vez mais idealizado e narcísico, e uma "realidade" cada vez mais cruel e ameaçadora e temos os ingredientes para, numa descompensação, termos uma psicose de delírios narcísicos e paranóicos.

Este funcionamento dialéctico pode funcionar de maneiras diferentes, embora este seja o mais comum na sociedade actual, materialista, secular, utilitarista.
Podemos contrapor com uma visão cristã anterior, mais comum nos nossos avós, segundo o qual existe um Deus, exterior que é, fundamentalmente bom e perfeito. Aqui, a perfeição está do lado de Deus, a vida são provações e testes e todos os homens são pecadores.

Não vamos dizer que esta perspectiva é melhor ou pior. Hoje, será uma perspectiva considerada entre outras coisas, como "ingénua", "romântica" e "pouco realista", pois precisa de crendices. Mas também o homem moderno precisa das suas crenças, por exemplo no "Real", que é o Deus de hoje, mau e vingativo e objectivo, um Deus muito parecido com os deuses pagãos primitivos, muito ligados às catástrofes naturais (externas e objectivas). Daí também o noticiário mostrar também catástrofes naturais: vivemos num mundo pagão com Deuses múltiplos, acabou o monoteísmo.

Quanto à visão cristã antiga, penso que há algo que se pode recuperar e está relacionada com essa "ingenuidade" de que é acusada. Faço aqui então esse "elogio da ingenuidade"

Não se pode dissociar o realismo moderno das correntes filosóficas do séc. XVIII do iluminismo e do positivismo que glorificam o homem como ser pensante, racional, que conseguiria dominar a natureza por intermédio da razão, portanto, um eu "perfeito", narcisista, idealizado.

Voltaire viveu nessa altura e muito gozou e criticou essa posição filosófica humana tão arrogante e tão cheia de si. Foi um escritor e pensador genial que apimentava os seus contos e histórias com críticas mordazes, irónicas e picantes sobre os defeitos e falhas humanas.



Uma das suas personagens mais famosas é o Ingénuo, da Hurânia:
"Sempre dei pelo nome de Ingénuo - replicou o hurão - e em Inglaterra sempre me chamaram assim, pois digo sempre ingenuamente o que penso, assim como faço tudo quanto quero."
Trata-se de uma personagem que, para além de dizer sempre despreocupadamente aquilo que pensa, é dotado de uma enorme curiosidade e gosto de conhecer o mundo e é, ao mesmo tempo, humilde e desinteressada sendo que, por ter estas características, ao longo das histórias de Voltaire vai causando sensação e escândalo no confronto com outras personagens comuns, mesquinhas, interesseiras e egoístas.

Numa outra versão desta personagem, o "Cândido", há uma crença imputada a esta personagem retirada directamente do postulado de Leibniz de que "este é o melhor dos mundos possíveis". Cândido é uma personagem parecida com o "Ingénuo" que vai passando por imensas provações, é feito escravo, anda na guerra, é raptado, perde-se, acontece-lhe tudo. Mas no meio dessas provações vai prosseguindo sempre com a ideia de que aquele é "o melhor dos mundos possíveis", mantendo sempre seu optimismo ingénuo.

Em contraponto de um realismo pessimista, proponho então essa ingenuidade optimista em que ao invés de olhar sobre o mundo à procura de ameaças na defesa de um ego orgulhoso e arrogante, há um prazer em olhar o mundo não em defesa de um eu, mas em contemplação daquilo que supera largamente o âmbito de um eu individual. Uma perspectiva em que assumimos a nossa pequenês perante um mundo grande e misterioso.

Depois de Nietzsche preencher a certidão de óbito de Deus, esta morte foi confirmada pelos diálogos ecuménicos em que os líderes religiosos admitem haver espaço para outras religiões ao invés da tentativa antiga de tentar universalizar seu Deus. É isto que a morte de Deus significa, já não existe o Deus monoteísta, ao invés temos uma variedade de religiões que toda a gente diz que respeita (sem seguir até ao fundo) um politeísmo oficial, um retorno ao paganismo.

Assim, o que divide essencialmente as pessoas não é a religião. Como dizia Oscar Wilde, já não há separação entre os que acreditam em Deus e os que não acreditam. O que há é uma divisão entre optimistas e pessimistas. Há duas posições que podemos escolher. A primeira é: "realisticamente, temos que assumir que as pessoas são más e mesquinhas e egoístas" ou ao invés considerar que "as pessoas são naturalmente bondosas e procuram a felicidade".

Ambas as posições são crenças, pois nenhuma destas proposições é verificável. Não podemos correr o mundo e ver pessoa a pessoa, se a humanidade é boa ou má. Por isso temos que escolher.

Eu escolho a segunda, a posição ingénua, a posição que, ao invés de glorificar o poder da razão humana sobre a natureza, arrumando o universo em duas ou três ideias e permitindo-nos a arrogância de pensar que somos perfeitos por sabermos tudo sobre o mundo, pelo contrário parte do princípio de que nunca perceberemos o mundo na sua totalidade pois numa posição ingénua são os sentidos a fonte priveligiada do conhecimento.

Os sentidos são superiores à razão por duas razões. Primeiro, sem os sentidos não haveria razão, ou seja, os sentidos são a causa primeira da razão. Em segundo lugar, o que provém dos sentidos é sempre excessivo, enquanto que a razão é sempre reducionista.

Em suma, no realismo pessimista, pensa-se que se sabe tudo através da razão, e como a razão só serve interesses pessoais, fica-se com um ego do tamanho do mundo. Na posição ingénua que defendo há uma humildade perante o "excesso de mundo" que nos provém dos sentidos.

É esta uma perspectiva que assume que o conhecimento maior do mundo não provém da experiência e da razão, mas sim dos sentidos, que são o alimento do pensamento racional. É uma perspectiva parecida com os empiristas ingleses que Voltaire admirava.

Num dos contos de Voltaire, Micrómegas, um gigante vindo de outro planeta, chega à Terra e um barco cheio de cientistas e filósofos que ao princípio julgava serem insectos, naufraga na sua mão de gigante e começa a falar com eles. A princípio julgava aqueles bichinhos como seres que "gozam as benesses bem puras do vosso globo, (...) devem passar a vida a amar e a pensar."

Rapidamente o gigante é desmentido por um dos humanos, que diz que "há cem mil loucos da nossa espécie usando chapéu que matam outros animais com as cabeças com turbantes, ou que são por estes chacinados"

Desgostoso, o gigante continua a ouvir um partidário de Descartes que dizia que "a alma é um espírito puro que recebeu no ventre materno todas as ideias metafísicas e que, ao sair para o exterior, é obrigada a aprender de novo tudo quanto soube na perfeição"

Pouco impressionado com este "insecto", o gigante ri-se imenso ainda de um partidário de S.Tomás que diz seriamente que todas as coisas do universo foram feitas para servir o homem, e fica impressionado com as palavras de um partidário de Locke que diz o seguinte:
"Que haja substâncias imateriais e inteligentes, disso não duvido. Mas que seja impossível a Deus comunicar o discernimento à matéria, ah! disso duvido mesmo. Venero o poder eterno. Não me cabe a mim abordá-lo. Nada afirmo. Contento-me em crer que existem bastantes mais coisas possíveis do que aquilo que imaginamos"

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