terça-feira, 24 de março de 2009

Tempo, Causalidade e Memória

"Se existem coisas futuras e passadas, quero saber onde elas estão. Se ainda o não posso compreender, sei todavia que em qualquer parte onde estiverem, aí não são futuras nem pretéritas nem presentes. Pois, se também aí são futuras, ainda lá estão; e se nesse lugar são pretéritas, já lá não estão. Por conseguinte, em qualquer parte onde estiverem, quaisquer que elas sejam, não podem existir senão no presente. Ainda que se narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não os próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles factos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígios."
Santo Agostinho

Num dos livros pretos de Gonçalo Tavares, A máquina de Joseph Walser, a personagem principal (Joseph Walser) sofre de amores por uma perigosa máquina da fábrica onde trabalha. Um dia, ao manejar a máquina, perde o dedo indicador da mão direita. Joseph Walser, nas suas apostas com dados, começa a jogar com a mão amputada e a sua sorte no jogo melhora.

(...) Walser considerava a sua sorte recente como um mistério, e esse mistério significava uma abertura para um mundo diferente, um mundo que ainda não conhecia. Aquela ligação entre acontecimentos - um dedo a menos: mais sorte no jogo de dados - não era ainda, para Walser, catalogável e compreensível. Onde colocar esta ligação? Como classificar a ponte que existia entre estes dois factos? Que acontecimento deveria Walser designar como causa e como efeito? E se um não era efeito ou causa do outro, onde os colocar e a que outros factos se poderiam ligar estes?

Trata-se aqui de aquilo que se pode chamar de coincidência, cujo maravilhamento característico provém da inabilidade ou impossibilidade de atribuir um relação de nexo causal a dois acontecimentos simultâneos. Sobre coincidências já me referi aqui uma vez: são momentos que abalam as nossas atribuições de causalidade e, consequentemente, abrem um buraco na nossa noção de tempo. Nesses momentos, o tempo deixa de existir. Abre-se um buraco na sequenciação lógica e contínua dos acontecimentos vividos.
Isto está relacionado com o grau de simultaneidade dos acontecimentos. Se o acidente com a mão de Walser acontecesse, digamos, dois anos antes da maré de sorte nos dados, a Walser não ocorreria que estes acontecimentos estivessem de alguma forma ligados entre si. Mas no momento em que há uma simultaneidade entre a mão amputada e a maré de sorte, surge o mistério em todo o seu esplendor.

Para esclarecer isto, há uma experiência científica de Ernst Pöppel que nos elucida mais um pouco esta questão:

"Damos uns auscultadores ao sujeito da investigação e tocamos separadamente em cada ouvido um som de pouca duração. Os estímulos acústicos escolhidos só devem demorar um milésimo de segundo cada um. Quando os ouvidos esquerdo e direito são estimulados "simultaneamente", quer dizer, quando não se pode medir a diferença entre o som do lado esquerdo e o do lado direito, então o sujeito da investigação não ouve dois sons como poderíamos imaginar, mas apenas um.

O tempo médio necessário para se estabelecer a distinção entre dois acontecimentos e sair do que o autor chama de "janela da simultaneidade", foi de 4,5 milésimos de segundo.
Contudo, uma coisa é distinguir entre um ou dois estímulos. Já decidir qual é o primeiro e qual o segundo, demora mais algum tempo:

"Apesar de se poderem ouvir dois sons distintos, tem de decorrer, a partir de mais ou menos quatro milésimos de segundo, um lapso de tempo que corresponde ao décuplo, até se ter a certeza sobre qual foi o primeiro som e qual o segundo. Precisamos, portanto, de consideravelmente mais tempo para a identificação de um acontecimento acústico, do que para resolver o problema da distinção entre unidade e dualidade.

Estes tempos, no entanto, são cada vez mais maiores para os diferentes sentidos: visão, tacto, etc. Assim, uma das conclusões deste cientista é que o sentido da audição (o primeiro a senvolver-se, ainda no ventre materno), é o primeiro, mais eficaz e mais rápido a distinguir a ordenação temporal dos estímulos. Por outro lado, a descodificação de estímulos sonoros e a regulação temporal dos acontecimentos acontece no lado esquerdo do cérebro, num local também ligado às àreas da linguagem.

Ernst Popël diz-nos que em primeiro lugar, há uma distinção entre o que é simultâneo e o que não é simultâneo. Depois há uma identificação dos acontecimentos que cria as condições para que estes se ordenem em séries. Há depois um mecanismo de integração que condensa acontecimentos sucessivos em formas presentes. Finalmente, julgamos a duração segundo o que vivemos e o que nos ficou na memória. Só através de todos estes mecanismos chegamos à consciência comum, que organiza os acontecimentos em passado, presente e futuro.

A construção do tempo, é assim algo de complexo, composto por mecanismos fisiológicos e sensoriais básicos que se combinam com outro tipo de mecanismos mais especificamente humanos como é o caso da memória. Isto tem algo a ver com o que diz Deleuze em Diferença e Repetição, acerca do tempo. Deleuze fala-nos do tempo como síntese. E existem sínteses passivas e sínteses activas. Existem aliás, diversos níveis de sínteses passivas orgânicas, sensoriais, perceptivas, que poderíamos aqui fazer corresponder ao que Poppel se refere como identificação dos acontecimentos, ou casos, que criam as condições para que estes se ordenem em séries. Todas estas sínteses passivas, estes "ordenamentos" possibilitam a construção da memória que é já da ordem da sínteses activas, assim como a reflexão e o entendimento.

O tempo só se constitui na síntese originária que incide sobre a repetição dos instantes. Esta síntese contrai uns nos outros os instantes sucessivos independentes. Ela constitui, desse modo, o presente vivido, o presente vivo; e é neste presente que o tempo se desenrola. É a ele que pertence o passado e o futuro: o passado, na medida em que os instantes precedentes são retidos na contracção; o futuro, porque a expectativa é a antecipação dessa mesma contracção. O passado e o futuro não designam instantes, distintos de um instante supostamente presente, mas as dimensões do próprio presente, na medida em que ele contrai os instantes. O presente não tem de sair de si para ir do passado ao futuro. O presente vivo vai, pois, do passado ao futuro que ele constitui no tempo, isto é, também do particular ao geral, dos particulares que ele envolve na contracção, ao geral que ele desenvolve no campo da sua expectativa. (...) Sob todos os aspectos, esta síntese deve ser denominada síntese passiva. Apesar de constituinte, nem por isso ela é activa. Não é feita pelo espírito, mas faz-se no espírito que contempla, precedendo toda a memória e toda a reflexão.

Estas sínteses passivas combinam-se depois com as sínteses activas formando depois um conjunto da síntese global do tempo:

A partir da da impressão qualitativa da imaginação, a memória reconstitui os casos particulares como distintos, conservando-os no "espaço de tempo" que lhe é próprio. O passado, então, não é mais o passado imediato da retenção, mas o passado reflexivo da representação, a particularidade reflectida e reproduzida. Correlativamente, o futuro deixa também de ser o futuro imediato da antecipação para se tornar no futuro reflexivo da previsão, na generalidade reflectida no entendimento (o entendimento proporciona a expectativa da imaginação em relação ao número de casos semelhantes distintos observados e lembrados). Quer isto dizer que as sínteses activas da memória e do entendimento se sobrepõe à síntese passiva da imaginação e se apoiam nela. (Deleuze)

O passado e o futuro não existem. O que existem são movimentos que nos provocam retenções e previsões. Assim, as nossas sínteses passivas, que passam pelas necessidades do nosso rim e pelas expectativas das nossas enzimas, formam um presente vivo contemplativo que guarda retenções e projecta previsões segundo regras simples de ordenamento, repetição e associação. Porém, o que nos distingue de plantas e animais são nossas memórias, que têm a possibilidade de serem articuladas com o entendimento, fazendo de nós tanto bichos de grande liberdade e ao mesmo tempo de grande angústia. As nossas expectativas conduzem-nos a ver e a fazer determinadas coisas, a viver a vida de determinado ângulo... Mas aquilo que colocamos no futuro são sínteses activas de blocos de memória que temos agora ao nosso dispor. Sempre que evocamos alguma memória estamos a reconstruí-la. Todas as vezes. Só existe o agora, e tudo são velocidades. O ser humano tenta compor uma dança, uma música. Mexemo-nos toda a vida sem parar. Aprendemos movimentos, no fundo comunicamos para poder dançar a vida. Para ser um com o mundo precisamos de saber a nossa parte da dança, participando assim do milagre da existência. O bicho humano tem a tentanção em si de tentar saber de antemão a música inteira do universo. Essa tentação é a sua grandeza e a sua perdição, tal como a centopeia que cai ao chão quando tenta pensar como é que anda com todos os seus 100 pés.

"Esquecerei as coisas passadas. Preocupar-me-ei, sem distracção alguma, não com as coisas futuras e transitórias, mas com aquelas que existem no presente."
Santo Agostinho

(Isto há-de continuar: este texto é uma promessa de futuro, e um passado já consumado)

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