quarta-feira, 17 de junho de 2009

O Inconsciente no Futebol, Freud, Deleuze e a Arte Zen do Tiro ao Arco

















No Sábado, no âmbito do meu estágio como Psicólogo no Futebol Clube do Porto, estive a observar o treino de uma turma de iniciação da escola Dragon Force, o que me suscitou algumas reflexões.
O treino começou com a treinadora a mostrar algumas habilidades com a bola que os alunos devem imitar. Numa delas, as crianças têm que, a meio do percurso com a bola, dar um toque súbito com a parte de fora do pé na bola, de forma a ficarem automaticamente virados para o lado contrário. Um dos alunos, o João, diz prontamente que “é fácil”, mas ele, como todos os outros, mostram imensa dificuldade neste exercício não tanto no gesto técnico em si, mas na sua sequência, na qual devem ficar orientados para o lado contrário do campo. A atenção delas, poder-se-ia dizer que está demasiado centrada na bola, e é difícil encarar uma outra perspectiva, de uma orientação geral no espaço do jogo. Para além de o sentido de orientação espacial não encontrar plenamente desenvolvido, a bola é, no momento em que jogam, o planeta delas, o centro do universo. O virar-se ao contrário, enquanto tocam na bola é uma operação prodigiosa, como virar o universo ao contrário. As crianças têm neste caso, de manter três perspectivas relacionais entre o corpo, a bola e o campo de jogo.
Conscientemente, é impossível manter estes três elementos presentes ao mesmo tempo. A solução passa por tornar inconsciente um dos termos da relação. À medida que começa a haver um domínio cada vez maior da bola, esta é como que introjectada, torna-se um elemento integrante da psique, sob a forma inconsciente. Só através do “esquecimento” da bola, é possível relacionarmo-nos com o campo de jogo de uma forma mais completa. Até lá, as crianças estão completa e conscientemente centradas na bola, ocupadas em estabelecer uma mecânica íntima com ela. Observando o jogo-treino destas crianças que não têm mais do que 5 anos, é possível verificar que nenhuma delas em algum momento retira o olhar sobre a bola para olhar para outros elementos do jogo, como a baliza e os outros jogadores. Aliás, o único momento em que o olhar se descentra da bola, é quando a criança está na sua posse, e a tem plenamente controlada, pois é o momento em que é necessário colocar a bola em relação com outros elementos do jogo. É através da integração e domínio da bola, que começa a táctica e os espaços, e as relações que a bola estabelece com estes.

É preciso inverter a fórmula freudiana segundo a qual onde era id, deve advir o ego. Para Freud, há demasiado inconsciente. É necessário pensar como Deleuze sugeriu, na medida em que é necessário “produzir inconsciente”. A única forma de “superar” a bola, é ter um domínio tal sobre ela que nos permita esquecermo-nos da mesma. Não é possível pensar a bola e jogá-la ao mesmo tempo. É preciso pensar o jogo e jogar a bola. A razão e a consciência operam sempre na separação entre sujeito e objecto. É preciso abolir esta separação e tornar a bola inseparável do sujeito. Como tal, é necessário uma habituação e uma aceitação plena da bola como extensão do próprio corpo. Inseguros do chão sobre o qual caminhamos, centramo-nos sobre o chão, não conseguindo olhar para o céu. Também se não se adquire esta “mecânica íntima” com a bola, não se consegue o desprendimento necessário para se poder olhar o jogo de forma completa.

Transcendendo as observações realizadas com estas crianças, poder-se-ia também fazer evoluir este raciocínio do futebol infantil para o futebol de alta competição da equipa-sénior do F.C. Porto. Senão, vejamos o que disse Jesualdo Ferreira a propósito do jogo da 1ª mão da eliminatória com o Manchester United: “Na altura, disse aos jogadores que tínhamos de ser tacticamente inconscientes. E fomos.” Para além da inconsciência da bola já referida, há um estádio mais avançado que é a própria inconsciência da táctica, que se adquire após muito treino e entrosamento de uma outra mecânica íntima do jogo. Quando os jogadores se habituam uns aos outros, em rotinas definidas e treinadas, o jogador deve ser capaz de se “esquecer” da táctica, de a tornar inconsciente. Superar a táctica é torná-la em acto sem mediação da razão consciente.

Estas obervações assemelham-se muito às realizadas por Suzuki, no prefácio do livro de Eugen Herrigel “Zen e a arte do tiro com arco”, acerca das lições de tiro ao arco com um mestre zen: “acima de tudo, pretende-se harmonizar o consciente com o inconsciente. (...) No que diz respeito ao tiro com arco, isto significa que atirador e alvo deixam de ser duas entidades opostas, para se unirem numa única realidade. (...) Este estado de não-consciência só é alcançado quando o arqueiro se desprende e liberta inteiramente do seu Ego, quando forma uma unidade com a perfeição da perícia técnica."

Um comentário:

Ivo disse...

Mais um texto bastante interessante. Ainda que muitas das matérias aqui abordadas me passem um bocado ao lado por causa da abundância de termos filosóficos.
Como leitor deste blog espero que a crise já tenha passado.

Abraço!