"A cultura superior ainda existe. E mais acessível do que nunca. É lida, vista e ouvida por mais pessoas do que jamais o fora; porém a sociedade bloqueou há muito tempo os domínios espirituais dentro dos quais essa cultura poderia ser entendida em seu conteúdo cognitivo e em sua verdade determinada. O operacionalismo no pensamento e no comportamento remete estas verdades à dimensão pessoal, subjectiva e emocional; nessa forma podem ser facilmente ajustadas ao existente - a transcendência crítica e qualitativa da cultura é eliminada e o negativo integrado no positivo. Os elementos oposicionais da cultura são assim enfraquecidos: a civilização assume organiza, compra e vende a cultura; ideias que em sua essência são não-operacionais, não orientadas para o comportamento, são traduzidas em operacionais e referidas ao comportamento; e essa tradução não é uma simples metodologia, mas sim um processo social e até político"
Herbert Marcuse
Da 12ª Assembleia da Organização do Ensino Superior do Porto da Juventude Comunista Portuguesa saiu uma resolução política fruto da reflexão dos camaradas ao longo dos últimos meses em que se sublinhou o processo de mercantilização do ensino, posta em prática pelos nossos (des)governos, em linha com as orientações globais do processo capitalista. Sob este processo faço aqui algumas observações e reflexões.
O novo Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior, prevê a mudança das nossas Universidades Públicas para o estatuto de Fundações Privadas. Isto é o princípio do fim da distinção entre Ensino público e Privado, na medida em que todo o ensino será privatizado. Será privatizado na medida em que as Universidades começam a ter de funcionar sob uma lógica do lucro, tendo o estado cortado substancialmente nos fundos para o Ensino Superior, obrigando as Universidades a subir as propinas e a fazer parcerias com poderes económicos para poderem simplesmente sobreviver.
Quanto ao aumento brutal das propinas no ensino público universitário, que começam a estar em muitos casos equiparadas ao custo de uma qualquer Universidade privada, convém salientar que isto é uma situação criminosa e anti-constitucional. Basta dar uma olhada na nossa constituição:
Artigo 74º:
(...) 2. Na realização da política de ensino incumbe ao Estado:
(...) d) Garantir a todos os cidadãos, segundo as suas capacidades, o acesso aos graus mais elevados do ensino, da investigação científica e da criação artística;
e) Estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino;
Face a isto, faria todo o sentido que o nosso protector máximo da Constituição, o Presidente da República, vetasse tais leis e obrigasse o governo a parar de atacar direitos dos cidadãos consignados na constiuição. Ao invés disso, temos um presidente corta-fitas, que faz discursos totalmente inócuos e ridículos sobre a "necessidade de união dos portugueses" e de que é preciso, face à crise, "não baixar os braços" entre outras banalidades.
O pior é que nos habituámos a ver o cargo de presidente da república ser reduzido a esta figura de mera representatividade simbólica, que nada faz e que nada diz de sério para além de maus discursos de circunstância e gestos vazios. Chega-se até a acreditar que é um cargo que não serve para nada, quando este tem o poder de vetar leis e derrubar governos.
Mas o que há de trágico em tudo isto é mesmo a privatização e gestão pelo lucro a que está sujeito o conhecimento académico. De repente os cursos tornaram-se também mercadoria e as Universidades tornaram-se centros de recrutamento de mão-de-obra barata, de onde saem todos os anos estagiários frescos e inocentes que não precisam de ser pagos, substituídos a cada ano.
Hoje em dia estudar numa universidade já não é um processo de auto e hetero-conhecimento, uma elevação de padrões culturais e sociais e a construção de uma voz crítica e portadora de novos ideais para a sociedade. A Universidade já não é onde vamos buscar o saber e o conhecimento elevado. A Universidade tornou-se um instrumento burocrático de certificação do saber e legitimador de discursos. O conhecimento já não se ensina de uma forma pessoal e edificante, mas sim em pacotes indiferenciados onde os mesmos programas e matérias são dados por professores diferentes e diferentes alunos recebem informação despersonalizada e empacotada para fácil consumo.
Já não é de agora que muitos alunos apenas vão à universidade para verem reconhecidos um título, fazendo todas as artimanhas disponíveis para o fazer. Mas agora, com o advento da Internet, o saber que a universidade propõe torna-se mais supérfluo. Na internet as novidades científicas e culturais circulam mais rapidamente do que nas universidades. Na internet podemos até tirar cursos de engenharia, mecânica, biologia, filosofia, sociologia, astronomia, etc etc. Está lá tudo, se soubermos procurar. É verdade que não tem os livros todos, mas estão lá as referências e as bibliografias que devemos consultar.
O Professor já não é dono do saber, mas apenas um avaliador que certifica o bem papaguear de rezas estabelecidas.
De tudo isto resulta que a Universidade é reformulada num espírito interesseiro: Tira-se um curso não para aprender mais, mas para aceder aos privilégios de uma determinada classe.
A fusão da universidade com o mercado de trabalho que nossos políticos apregoam é, ao contrário do que se pensa, a desqualificação da universidade na sua capacidade de formular conhecimento e ideais de progresso para um mundo novo, e a legitimação e criação de um neo-nobreza cortejadora dos poderes dominantes e da práxis do mercado.
É preciso tornar as Universidades gratuitas e inúteis, de forma a fazer com que entrem lá apenas as pessoas que querem aprender de uma forma desinteressada. Não é só preciso mudar a universidade. É preciso tornar acessíveis ao povo os bens necessários à sua subsistência, para que a universidade possa acolher, não pessoas desesperadas por sobreviver, e que vêm na universidade um intrumento de garantia de privilégios, mas sim todo um povo interessado em aprender a desenvolver-se cultural e socialmente.
É preciso apontar para o crescimento cultural de um povo e não um crescimento económico. Por algum motivo têm-se a ideia generalizada entre os políticos de que o crescimento económico é sempre bom e deve correr para o infinito. Contudo os recursos naturais da Terra não são infinitos. O que é infinito é a possibilidade de crescimento humano.
Um comentário:
«A escola é o contrário do movimento. (...) Para mim, duas coisas são importantes: a relação que podemos ter com os estudantes é ensinar que eles fiquem felizes com sua solidão. Eles vivem dizendo: "Um pouco de comunicação. Nós nos sentimos sós, somos todos solitários". Por isso eles querem escolas. Eles não poderão fazer nada em relação à solidão. Temos de ensinar-lhes os benefícios da sua solidão, reconciliá-los com sua solidão. Esse era o meu papel de professor. O segundo aspecto é um pouco a mesma coisa. Não quero lançar noções que façam escola. Quero lançar noções e conceitos que se tornem correntes, que se tornem não exatamente ordinárias, mas que se tornem idéias correntes, que possam ser manejadas de vários modos. Isso só é possível se eu me dirigir a solitários que vão transformar as noções ao seu modo, usá-las de acordo com suas necessidades. Tudo isso são noções de movimento, não de escola.
CP: Você acha que, na universidade hoje, a era dos grandes professores acabou?
GD: Não sei bem porque não faço mais parte disso. Saí em um momento aterrorizador. Eu não entendia como os professores podiam dar aulas. Eles tinham se tornado administradores. Quanto à universidade, a política atual é muito clara. Isso tem a ver com a adoção de disciplinas que nada têm a ver com disciplinas universitárias. Meu sonho seria que as universidades continuassem a ser locais de pesquisa e que, ao lado das universidades, se multiplicassem as escolas. Escolas técnicas, onde aprendemos Contabilidade, Informática etc. Mas a universidade só interviria na Informática e na Contabilidade no nível da pesquisa. Haveria acordos entre uma escola e uma universidade. A escola enviaria seus alunos para fazer cursos de pesquisa. A partir do momento em que admitimos na universidade matérias de escola, a universidade está acabada, não é mais um local de pesquisa. Somos cada vez mais corroídos por problemas administrativos. O número de reuniões nas universidades... Por isso não sei como os professores conseguem preparar um curso. Suponho que façam o mesmo todos os anos, ou que nem os façam mais. Talvez eu esteja enganado, tomara que sim. A tendência parece ser o desaparecimento da pesquisa, o aumento de disciplinas não inovadoras na universidade, que não são disciplinas de pesquisa. É o que chamamos de adaptação da universidade ao mercado de trabalho. Esse não é o papel da universidade, mas das escolas».
"P de Professor", Abecedário de Gilles Deleuze.
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