terça-feira, 24 de março de 2009

Tempo, Causalidade e Memória

"Se existem coisas futuras e passadas, quero saber onde elas estão. Se ainda o não posso compreender, sei todavia que em qualquer parte onde estiverem, aí não são futuras nem pretéritas nem presentes. Pois, se também aí são futuras, ainda lá estão; e se nesse lugar são pretéritas, já lá não estão. Por conseguinte, em qualquer parte onde estiverem, quaisquer que elas sejam, não podem existir senão no presente. Ainda que se narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não os próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles factos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígios."
Santo Agostinho

Num dos livros pretos de Gonçalo Tavares, A máquina de Joseph Walser, a personagem principal (Joseph Walser) sofre de amores por uma perigosa máquina da fábrica onde trabalha. Um dia, ao manejar a máquina, perde o dedo indicador da mão direita. Joseph Walser, nas suas apostas com dados, começa a jogar com a mão amputada e a sua sorte no jogo melhora.

(...) Walser considerava a sua sorte recente como um mistério, e esse mistério significava uma abertura para um mundo diferente, um mundo que ainda não conhecia. Aquela ligação entre acontecimentos - um dedo a menos: mais sorte no jogo de dados - não era ainda, para Walser, catalogável e compreensível. Onde colocar esta ligação? Como classificar a ponte que existia entre estes dois factos? Que acontecimento deveria Walser designar como causa e como efeito? E se um não era efeito ou causa do outro, onde os colocar e a que outros factos se poderiam ligar estes?

Trata-se aqui de aquilo que se pode chamar de coincidência, cujo maravilhamento característico provém da inabilidade ou impossibilidade de atribuir um relação de nexo causal a dois acontecimentos simultâneos. Sobre coincidências já me referi aqui uma vez: são momentos que abalam as nossas atribuições de causalidade e, consequentemente, abrem um buraco na nossa noção de tempo. Nesses momentos, o tempo deixa de existir. Abre-se um buraco na sequenciação lógica e contínua dos acontecimentos vividos.
Isto está relacionado com o grau de simultaneidade dos acontecimentos. Se o acidente com a mão de Walser acontecesse, digamos, dois anos antes da maré de sorte nos dados, a Walser não ocorreria que estes acontecimentos estivessem de alguma forma ligados entre si. Mas no momento em que há uma simultaneidade entre a mão amputada e a maré de sorte, surge o mistério em todo o seu esplendor.

Para esclarecer isto, há uma experiência científica de Ernst Pöppel que nos elucida mais um pouco esta questão:

"Damos uns auscultadores ao sujeito da investigação e tocamos separadamente em cada ouvido um som de pouca duração. Os estímulos acústicos escolhidos só devem demorar um milésimo de segundo cada um. Quando os ouvidos esquerdo e direito são estimulados "simultaneamente", quer dizer, quando não se pode medir a diferença entre o som do lado esquerdo e o do lado direito, então o sujeito da investigação não ouve dois sons como poderíamos imaginar, mas apenas um.

O tempo médio necessário para se estabelecer a distinção entre dois acontecimentos e sair do que o autor chama de "janela da simultaneidade", foi de 4,5 milésimos de segundo.
Contudo, uma coisa é distinguir entre um ou dois estímulos. Já decidir qual é o primeiro e qual o segundo, demora mais algum tempo:

"Apesar de se poderem ouvir dois sons distintos, tem de decorrer, a partir de mais ou menos quatro milésimos de segundo, um lapso de tempo que corresponde ao décuplo, até se ter a certeza sobre qual foi o primeiro som e qual o segundo. Precisamos, portanto, de consideravelmente mais tempo para a identificação de um acontecimento acústico, do que para resolver o problema da distinção entre unidade e dualidade.

Estes tempos, no entanto, são cada vez mais maiores para os diferentes sentidos: visão, tacto, etc. Assim, uma das conclusões deste cientista é que o sentido da audição (o primeiro a senvolver-se, ainda no ventre materno), é o primeiro, mais eficaz e mais rápido a distinguir a ordenação temporal dos estímulos. Por outro lado, a descodificação de estímulos sonoros e a regulação temporal dos acontecimentos acontece no lado esquerdo do cérebro, num local também ligado às àreas da linguagem.

Ernst Popël diz-nos que em primeiro lugar, há uma distinção entre o que é simultâneo e o que não é simultâneo. Depois há uma identificação dos acontecimentos que cria as condições para que estes se ordenem em séries. Há depois um mecanismo de integração que condensa acontecimentos sucessivos em formas presentes. Finalmente, julgamos a duração segundo o que vivemos e o que nos ficou na memória. Só através de todos estes mecanismos chegamos à consciência comum, que organiza os acontecimentos em passado, presente e futuro.

A construção do tempo, é assim algo de complexo, composto por mecanismos fisiológicos e sensoriais básicos que se combinam com outro tipo de mecanismos mais especificamente humanos como é o caso da memória. Isto tem algo a ver com o que diz Deleuze em Diferença e Repetição, acerca do tempo. Deleuze fala-nos do tempo como síntese. E existem sínteses passivas e sínteses activas. Existem aliás, diversos níveis de sínteses passivas orgânicas, sensoriais, perceptivas, que poderíamos aqui fazer corresponder ao que Poppel se refere como identificação dos acontecimentos, ou casos, que criam as condições para que estes se ordenem em séries. Todas estas sínteses passivas, estes "ordenamentos" possibilitam a construção da memória que é já da ordem da sínteses activas, assim como a reflexão e o entendimento.

O tempo só se constitui na síntese originária que incide sobre a repetição dos instantes. Esta síntese contrai uns nos outros os instantes sucessivos independentes. Ela constitui, desse modo, o presente vivido, o presente vivo; e é neste presente que o tempo se desenrola. É a ele que pertence o passado e o futuro: o passado, na medida em que os instantes precedentes são retidos na contracção; o futuro, porque a expectativa é a antecipação dessa mesma contracção. O passado e o futuro não designam instantes, distintos de um instante supostamente presente, mas as dimensões do próprio presente, na medida em que ele contrai os instantes. O presente não tem de sair de si para ir do passado ao futuro. O presente vivo vai, pois, do passado ao futuro que ele constitui no tempo, isto é, também do particular ao geral, dos particulares que ele envolve na contracção, ao geral que ele desenvolve no campo da sua expectativa. (...) Sob todos os aspectos, esta síntese deve ser denominada síntese passiva. Apesar de constituinte, nem por isso ela é activa. Não é feita pelo espírito, mas faz-se no espírito que contempla, precedendo toda a memória e toda a reflexão.

Estas sínteses passivas combinam-se depois com as sínteses activas formando depois um conjunto da síntese global do tempo:

A partir da da impressão qualitativa da imaginação, a memória reconstitui os casos particulares como distintos, conservando-os no "espaço de tempo" que lhe é próprio. O passado, então, não é mais o passado imediato da retenção, mas o passado reflexivo da representação, a particularidade reflectida e reproduzida. Correlativamente, o futuro deixa também de ser o futuro imediato da antecipação para se tornar no futuro reflexivo da previsão, na generalidade reflectida no entendimento (o entendimento proporciona a expectativa da imaginação em relação ao número de casos semelhantes distintos observados e lembrados). Quer isto dizer que as sínteses activas da memória e do entendimento se sobrepõe à síntese passiva da imaginação e se apoiam nela. (Deleuze)

O passado e o futuro não existem. O que existem são movimentos que nos provocam retenções e previsões. Assim, as nossas sínteses passivas, que passam pelas necessidades do nosso rim e pelas expectativas das nossas enzimas, formam um presente vivo contemplativo que guarda retenções e projecta previsões segundo regras simples de ordenamento, repetição e associação. Porém, o que nos distingue de plantas e animais são nossas memórias, que têm a possibilidade de serem articuladas com o entendimento, fazendo de nós tanto bichos de grande liberdade e ao mesmo tempo de grande angústia. As nossas expectativas conduzem-nos a ver e a fazer determinadas coisas, a viver a vida de determinado ângulo... Mas aquilo que colocamos no futuro são sínteses activas de blocos de memória que temos agora ao nosso dispor. Sempre que evocamos alguma memória estamos a reconstruí-la. Todas as vezes. Só existe o agora, e tudo são velocidades. O ser humano tenta compor uma dança, uma música. Mexemo-nos toda a vida sem parar. Aprendemos movimentos, no fundo comunicamos para poder dançar a vida. Para ser um com o mundo precisamos de saber a nossa parte da dança, participando assim do milagre da existência. O bicho humano tem a tentanção em si de tentar saber de antemão a música inteira do universo. Essa tentação é a sua grandeza e a sua perdição, tal como a centopeia que cai ao chão quando tenta pensar como é que anda com todos os seus 100 pés.

"Esquecerei as coisas passadas. Preocupar-me-ei, sem distracção alguma, não com as coisas futuras e transitórias, mas com aquelas que existem no presente."
Santo Agostinho

(Isto há-de continuar: este texto é uma promessa de futuro, e um passado já consumado)

sexta-feira, 13 de março de 2009

O "frangos" de Helton e os Deuses do Futebol

Num estudo realizado com jogadores de futebol do clube brasileiro SC Internacional, questionaram-se os motivos que levaram à escolha do futebol como profissão. Para além da influencia da família e do desejo de enriquecer, a maioria (50%) dos jogadores tinha como principal motivação a crença num dom para o futebol. Como disse um dos jogadores, "Além da vontade, Deus me deu o dom".

Helton, o guarda-redes brasileiro do FC Porto após um recente jogo em que deu o que se costuma chamar de frango: "Concentração há sempre, infelizmente há quem torça contra, mas é tempo perdido. Deus está no comando. Eu sigo em frente, sempre dando o melhor"




O psicanalista português Jaime Milheiro, numa conferência sobre "O Homem e os Jogos" diz que "um jogador a sério tem sempre o telefone ligado para os deuses pois os deuses garantem que a próxima jogada é a boa. (...) O jogador não luta com os homens, como um invejoso. O invejoso luta continuamente com os homens, mesmo que não dê por isso. É uma mediocridade. (...) O jogador luta num sistema muito mais grandioso em que os seus opositores, ou os seus favorecedores, se quisermos, são os deuses (...)"

Isto faz lembrar o que disse uma Kierkegaard em Fear and Trembling:
"No! No one shall be forgotten who was great in this world; (...) They shall all be remembered, but everyone was great in proportion to the magnitude of what he strove with. For he who strove with the world became great by conquering the world, and he who strove with himself became great by conquering himself; but he who strove with God became great greater than all. Thus there was strife in the world, one against thousands, but he who strove with God was greater than all"

(Tradução: Não! Ninguém será esquecido entre os que foram grandes no mundo; (...) Todos serão lembrados, mas todos na proporção da magnitude daquilo com que lutaram. Pois aquele que lutou com o mundo tornou-se grande ao conquistar o mundo, e aquele lutou consigo mesmo tornou-se grande ao conquistar-se a si mesmo; mas aquele que lutou com Deus tornou-se o maior de todos. Assim, havia luta no mundo, um contra centenas, mas aquele que lutou com Deus tornou-se o maior de todos")

sexta-feira, 6 de março de 2009

Psicanálise do Casamento Homossexual

Houve no parlamento lugar a um debate acerca dos casamentos entre homossexuais. O nível do debate foi muito baixo ao nível da sensibilidade e profundidade que se pode dar ao tema. Os defensores dos ditos casamentos argumentam que se trata de uma questão de direitos civis e de igualdade. Considero que não seja esse o ponto fundamental a ser discutido. Aliás, do ponto de vista político e económico, é uma questão menor. Não quero dizer com isto que sou contra os ditos casamentos. O que acho é que a única vantagem que os homossexuais retiram desse diploma é que estes passam a contar com determinados benefícios fiscais. Não deixa de ser legítimo, mas a questão é outra. O que os homossexuais pretendem realmente é a legitimação da sua orientação sexual, o que é um aspecto decorrente de uma forma de neurose, já que há uma conflito decorrente da tentativa de moldar as nossas pulsões sexuais a um objecto fixo e definitivo. Já anteriormente me referi aqui à questão da homossexualidade do ponto de vista psicanalítico, mas deixo aqui mais alguns apontamentos. Para Freud somos todos bissexuais. Todos mantemos relações afectivas com homens e mulheres e todos temos a possibilidade de retirar prazer dessas relações. Para Jung, o homem tem um anima, uma parte mulher dentro de si, e todo a mulher tem um animus, uma parte homem. O problema surge quando existe a necessidade de moldarmos as nossas inconstantes pulsões sexuais segundo conceitos abstractos rígidos e castradores. A homossexualidade e a heterossexualidade, à partida não existem. São identidades que é necessário construir. Do ponto de vista do desenvolvimento infantil as coisas passam-se mais ou menos segundo este esquema:

Infância (0-5 anos)___________________Bissexualidade

Quando nasce, um bebé olha para o corpo da mãe como sendo o prolongamento do seu próprio corpo, sendo que essa separação é gradual, à medida que a criança se vai tornando fisicamente mais autónoma. Com esta autonomização motora gradual, surge uma necessidade de explorar o mundo externo, sendo que se vai apercebendo aos poucos da sua individualidade face à mãe e ao mundo externo. Até aos 5 anos, as crianças investem afectivamente todo a realidade e o campo familiar de forma indiferenciada e exploratória.

Latência (6-11 anos)___________________Homossexualidade estruturante

Este período é particularmente importante para as nossas reflexões sobre a homossexualidade. Entre os 4 e 5 anos dá-se o complexo de Édipo/Electra, sendo que este processo começa mais cedo, antes de mais pela percepção da diferença de sexos. Resolvido este conflito, a criança começa a ganhar a noção de pertença a um género. É aliás o primeiro sentimento de pertença a um grupo: o do sexo. O período de latência é aquele período em que os rapazes só andam com rapazes e as raparigas só andam com raparigas. Os rapazes têm "nojo" das raparigas e estas acham os rapazes "parvos e porcos". É o que Freud chama de homossexualidade estruturante, situação típica do período de latência que Freud caracteriza assim:
"é no período de latência total ou parcial que se constituem as forças psíquicas que mais tarde farão obstáculo às pulsões sexuais e, à semelhança de diques, vão limitar a sua evolução (desagrado, pudor, aspirações morais e estéticas). (...) No período de latência as tendências sexuais são desviadas do seu uso próprio e aplicadas a fins diferentes, processo a que se dá o nome de sublimação, um dos pilares em que assenta civilização"

Adolescência/idade adulta (>12 anos)________Neurose

Com a puberdade e a adolescência, as crianças desenvolvem seu corpos, tornam-se homens e mulheres com seus caracteres sexuais principais e secundários plenamente desenvolvidos. A reprodução é possível e os adolescentes só pensam em duas coisas: sexo e sexo. É também nesta idade que se consuma uma noçao de identidade, de eu, mais definida, com uma estrutura neurótica já bem desenvolvida. Há nesta idade um conflito entre a preservação de uma identidade recém adquirida, e uma necessidade de uma abertura para a alteridade, para capacidade de, após a homossexualidade estruturante do período de latência, voltar a haver interesse pelo mundo do sexo oposto. O sexo oposto surge como um grande mistério e diferença absoluta que atrai.

Erich Fromm diz que "o desvio homossexual é o fracasso em atingir essa união polarizada, e por isso o homossexual sofre a dor da separação,nunca solucionada, fracasso, entretanto, de que com ele compartilha o heterossexual comum que não consegue amar."
Fromm refere-se então ao homossexual como uma neurose partilhada com o heterossexual comum, relativamente à incapacidade de amar em pleno, fruto da dificuldade de relacionamento com a anima e animus, os caracteres do sexo oposto presentes em cada um de nós. O homem neurótico heterossexual responde muitas vezes a este conflito através da homofobia, evitando adoptar ou mostrar simpatia com características femininas. O homem homossexual responde às suas sensibilidades femininas também de uma forma desconfortável, gerando dúvidas que são fruto de dualismos mentais rígidos. Assim, homens e mulheres altamente racionalistas, são mais propensos a dúvidas típicas de homossexuais. Não é por acaso que muitas das características de um homem homossexual, tais como a parcimónia na limpeza, a organização, obsessões e rituais, são típicas de uma neurose obsessiva, que se caracteriza por uma excessiva racionalização da vida afectiva. Neste esquema, as dúvidas em relação a aspectos básicos da identidade sexual são difíceis de gerir. Ferenczi chegou a fazer uma distinção entre homossexuais da seguinte forma: o "homo-erótico, subjectal", que sente e se comporta como uma mulher, e o "homo-erótico, objectal", completamente masculino, e que apenas trocou um objecto feminino por um masculino. Os primeiros denominou de "intermediários" e os segundos denominou precisamente de "neuróticos obsessvivos". Contudo, esta distinção parece-me algo dicotómica, eliminando a vivência da ambivalência entre estes dois modos. Freud referiu-se a essa distinção da seguinte forma: "reconhecemos a existência destes dois tipos, acrescentamos que há muitas pessoas em quem se encontra uma certa quantidade de homo-erotismo subjectal combinada com certa proporção de homo-erotismo objectal"

O "sair do armário", a assumpção e identificação com o papel homossexual é um passo que tenta resolver a ambivalência, mas que não resolve o conflito. Há posteriormente, uma necessidade de reconstruir toda uma identidade nova. Frequentemente relatam que, olhando para a sua vida passada sempre se sentiram homossexuais, o que é uma falsa questão: aplica-se aqui o conceito de Freud de Nachträglichkeit, conceito que é difícil de traduzir mas que reflecte uma um efeito retroactivo da consciência presente sobre as memórias anteriores. No fundo, as memórias anteriores são sempre possíveis de actualização e modificação tendo em conta as circunstâncias presentes. Há uma passagem de Lautréamont que é um bom exemplo disto: "Assentemos em poucas linhas como Maldoror foi bom durante os seus primeiros anos, em que viveu feliz; está dito. Reparou depois que tinha nascido mau: fatalidade extraordinária"

Para terminar deixo aqui a nota de rodapé que Freud em 1915 acrescentou ao primeiro dos seus "Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade" de 1905:

"A pesquisa psicanalítica opõe-se firmemente a qualquer tentativa para a separação dos homossexuais do resto da humanidade considerando-a como um grupo de características especiais. Ao estudar outras excitações sexuais além das questões que são manifestamente apresentadas, a psicanálise descobriu que todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha de objecto homossexual e até a fizeram de facto no seu inconsciente. Na verdade, vinculações libidinais por pessoas do mesmo sexo desempenham um papel como factores na vida mental normal, não inferior ao desempenhado por vinculações similares pelo sexo oposto (...). A psicanálise considera que a escolha de um objecto independentemente do seu sexo - susceptível de se distribuir igualmente entre objectos masculinos ou femininos - como se encontra na infância, é a base original de onde, em resultado de restrições numa ou noutra direcção, se desenvolveram tanto o tipo normal como o invertido. Assim, do ponto de vista da psicanálise, o interesse sexual exclusivo de um homem por uma mulher é também um problema que precisa de ser esclarecido e não um facto auto-evidente baseado num atracção que, em última instância, é de natureza química"

terça-feira, 3 de março de 2009

Novilho com Cogumelos, Vinho Tinto, Dylan Thomas e Miles Davis

Receita Born to be Wilde para os 5 sentidos

Ingredientes p/2 pessoas:

300 gramas de carne de novilho
1 garrafa de um bom vinho tinto
1 lata de cogumelos pequena
2 colheres de sopa de polpa de tomate
3 dentes de alho
2 folhas de louro
Pimenta a olho
Piri-piri a olho
Tomilho a olho
(para quem não tiver o olho treinado, não deitar mais do que duas colheres de chá de cada)
Uma xícara de arroz
1 álbum de Miles Davis: Relaxin' (Saquem aqui)
Sobremesa: um poema ou dois de Dylan Thomas

Primeiro: preparar o arroz branco que é o mais fácil e pode ficar cozinhar enquanto se faz o resto. Uma parte de arroz, duas de água. Um colher de Sal. Deixar ao lume. Tapar, mas não completamente. Simples.

Agora, partir a carne de novilho em bocados pequenos. Na frigideira um fundo de azeite e acende-se o lume. Picar os alhos e deitar lá dentro. Mal o alho comece a dourar, o que é uma questão de segundos, deitar a polpa de tomate. Mexer com colher de pau. Acrescentar um copo de vinho meio cheio (pode ser meio vazio, consoante as sensibilidades). Convém que o vinho seja bom e que seja o mesmo que se vai beber durante a refeição. Acrescentar as folhas de louro, o sal, a pimenta e o tomilho. Mexer. Agora segue-se a carne e os cogumelos. Mexer. Passados uns 10 minutos deve estar bom. Vejam pelo aspecto (é preciso treinar o olho). Não se esqueçam do arroz, que deve estar pronto antes disso!

Agora, é tempo de pôr a mesa bonita (o olho em acção, mais uma vez), e se quiserem podem por o arroz em forma de montinhos usando duas tigelas pequenas como forma. Ao servir, reguem o arroz com o molho da carne

Agora, ponham o álbum Relaxin' de Miles Davis a tocar. Vão ver como se trata do complemento perfeito para esta simples e bela refeição. O groove do contra-baixo e o saxofone cool de miles, conjuga na perfeição com uma boa carne e bom vinho.

No final, quando já só sobrar o vinho e a música, sugiro a leitura de This Bread I Break de Dylan Thomas, que aqui traduzo desta forma (ver original aqui):

Este pão que abro

Este pão que abro foi antes centeio,
Este vinho sobre uma ramada forasteira
Ficou submerso nos seus frutos
O homem de dia ou o vento à noite
Derrubaram as searas, arrancaram a alegria dos cachos

Outrora neste vinho, o sangue do verão
palpitou na carne que enfeitava a videira
Antes, neste pão
o centeio era feliz sob o vento;
mas o homem desfez o sol e o vento foi abatido.

Esta carne que desfazes, este sangue
que deixas desolar nas veias,
Eram cachos e centeio
Nascidos das raízes e seiva sensuais;
Deste meu vinho bebes, deste meu pão te alimentas

segunda-feira, 2 de março de 2009

Erich Fromm: Psicanálise e Religião

Li este livro de Erich Fromm, Psicanálise e Religião
Erich Fromm é um autor que aprecio, principalmente quando ele junta Freud, Marx e Buda nos seus raciocínios. Neste pequeno livro, Fromm começa por distinguir duas visões diferentes da psicanálise face à religião, encarnadas nas posições de Freud e Jung. Para Freud, a religião é uma regressão à infância, uma projecção da figura de um pai protector e fonte de segurança na ideia de um Deus. Já para Jung, a religião encontra-se no inconsciente. Jung situa a religião no inconsciente como algo de sagrado e transcendente, cheio de arquétipos e fonte de descoberta de um eu transpessoal.
Jung tem a sua obra muito associada à religião e várias das suas obras se centram à volta das questões psicológicas espirituais e religiosas. Contudo, é um autor que constantemente me desilude no contacto com a sua obra, na medida em que facilmente entra em campos esotéricos profundos mas depois não está à altura das coisas que fala, reduzindo todas estas questões a uma análise cientifizante e simplista, nunca saindo de uma posição racionalista banal. Fromm apresenta a visão de Jung da seguinte forma: "tendo definido a prática religiosa como a submissão a um poder que nos é estranho, Jung continua, interpretando o conceito do inconsciente como sendo religioso. Segundo o autor, o inconsciente não pode ser apenas uma parte da mente do indivíduo, mas sim um poder para além do nosso controlo que se intromente na nossa mente".
Jung, como que aliena o inconsciente humano, tornando-o algo de separado da nossa psique individual. Para Jung, o inconsciente são conteúdos sagrados que por aí pairam (como almas penadas) que entram na nossa mente e nos dominam. Perigoso! Jung acaba equiparar o inconsciente a um delírio paranóico, de algo que "anda algures lá fora" e que penetra a nossa mente dominando-a! Esquizofrénico!
Freud tinha uma visão muito menos esotérica, ligando a religião a uma estrutura social de obediência a uma autoridade paterna, garante da ordem e do sentido para a comunidade. Isto sim, parece-me algo bastante mais profundo do que todas as esquizofrenias e esoterismos de Jung. Quer isto dizer que a religião para Freud, embora ele não havia aprofundado este caminho, estaria ligado às estruturas comunitárias e políticas de uma sociedade.
Fromm depois segue bem este caminho, mostrando como o patriotismo e as neuroses modernas são da mesma família da àrvore genealógica da religiosidade:

Como forma colectiva e poderosa de idolatria moderna encontramos o culto do poder, do sucesso e da autoridade do mercado; mas, para além destas formas colectivas, encontramos algo mais. Se rasparmos a superfície do homem moderno encontramos um sem-núemro de formas primitivas e individualizadas de religião. Muitas destas formas são designadas por neuroses, mas também lhe poderíamos dar os respectivos nomes religiosos: culto dos antepassados, totemismo, fetichismo, ritualismo, culto da purificação e por aí adiante.

Assim, o culto dos antepassados pode ser encontrado na adoração em massas de uma estrela do rock falecida há muitos anos; o totemismo pode ser encontrado no culto do dragão, do leão e da águia (falo do futebol português como é óbvio), com suas estruturas grupais e tribais geradoras de culto de massas; o culto da purificação, para além de atingir muito doentes obsessivo-compulsivos, é um espírito que a ASAE encarna bem e encontramos uma mitologia da purificação muito bem elaborada nos anúncios do detergente da louça e da roupa (as bolinhas brancas que comem a sujidade à superfície e as bolinhas verdes que comem a sujidade profundas), o ritualismo é facilmente visível nas tomadas de posse e corte de fitas de muitas figuras políticas. Sobre esses políticos acrescentaria um outro aspecto religioso importante: as rezas (quando eles têm as orações/discursos já prontos e o seu único trabalho é encaixar a rezinha certa no momento certo).

Erich Fromm distingue depois as religiões em autoritárias/humanistas. Esta distinção não me convence, pois resumindo Fromm um pouco à minha maneira, isto seria qualquer coisa como: as religiões autoritárias subjugam o homem e nas humanistas é o homem individual que subjuga. Isto porque a defesa que Fromm faz de um tipo de religião humanista passa pela defesa de uma religião que eleva a razão, a liberdade e o amor como ideiais, descartando Deus como suporte ético. Para mim, há razão a mais em Fromm. A razão, como instrumento de domínio humano, não descarta o autoritarismo, pelo contrário. A razão traz consigo uma pulsão de morte, um instinto de dominação e de poder. Aliás, o próprio Fromm refere umas páginas antes que "a razão, benção do homem, é também a sua maldição, pois obriga-o a enfrentar constantemente a tarefa de resolver uma dicotomia insolúvel".