terça-feira, 15 de julho de 2008

O Estado do Mundo: Civilização do Trauma, Museus-Cemitério e a Igreja do Índio

"E contudo se não houver futuro, se não tivermos futuro, seremos como dizia o outro, «cadáveres adiados que procriam». Porque aquele medo se torna uma patologia do desejo, uma tão brutal antecipação simbólica da morte que inibiria todo o imaginário, amputaria a capacidade de simbolização e tornaria toda a esperança uma ilusão ou um produto do sono da razão. Ora nós precisamos do futuro como do ar que respiramos."

Manuel Gusmão na revista ACTO #8, O Futuro

No post anterior destaquei dois artigos do livro "o estado do mundo", o de Sloterdijk e o do João Barrento. Falta dar o devido destaque a outros dois ensaios. Um é o do Santiago Kovadloff "A Construção do Presente, Feições Filosóficas do Conceito de Trauma". Com uma linguagem muita clara, límpida e ao mesmo tempo, profunda, Kovadloff tem passagens como estas:






"Bem poderia acontecer, e de facto acontece, que o homem aspire a congelar numa interpretação definitiva, de intenção exaustiva e inamovível, o fluxo do tempo, a dinâmica da actualidade
. Quando isto acontece, o homem não provém já do porvir, e sim do passado. Sempre, é claro, que o passado for entendido nos termos que aqui proponho: o fixo, o calcário, (...) e nós todos sabemos que o outro nome eminente para designar o imodificável é o de dogma. Dogmatizar o presente é o mesmo que habitá-lo com vocação de passado. A razão dogmática pode ser entendida com expressão da lógica traumática. Nela o tempo aparece cristalizado e, nessa medida, o discurso subjectivo não opera"

Museus-Cemitério:


A construção de um museu corresponde precisamente a esta lógica de habitar o presente com vocação de passado. Há uma ligação entre o coleccionar e o guardar com uma pulsão de morte, estando conservação e a posse no ocupar desse buraco negro do desejo que nunca poderá ser satisfeito.

Há um outro artigo neste "O Estado do Mundo" muito interessante de Moira Simpson: "Um mundo de Museus: Novos Conceitos, Novos Modelos". Simpson fala da evolução do conceito de museu desde os tempos que eram obra de coleccionadores privados, até ao tempo em que se tornaram instituições sob a ègide da ciência e da arte, retirando no processo, bens culturais dos índios que usavam no dia-a-dia, na vivência das suas culturas. Alguns índios conseguiram recuperar bens que haviam perdido para os museus, dando-lhes um uso vivo que segundo Moira Simpson, alerta para a necessidade de um novo modelo de museu que faça reviver culturas ao invés de as enterrar definitivamente.

Isto fez-me lembar o que Gianni Vatimo diz no livro "Aventuras da Diferença" que li recentemente, sobre as relações entre a ciência e arte na perspectiva de Nietzsche e Heidegger, quando qualifica a ciência desta maneira:

"O "contar" e calcular da ciência não é um numerador, para ela, contar significa "contar com", isto é, poder estar segura de alguma coisa, de um número cada vez maior de coisas. A ciência responde ao apelo do princípio com um (...) perseguir e capturar. (...) Ela é animada pelo "espírito de vingança de que Zaratustra quer libertar o homem."

Acompanhando ainda Moira Simpson, esta fala-nos do testemunho de um índio aquando da inauguração de um museu: "Não devemos chamar-lhe museu, porque não somos um povo morto; chamemos-lhe a Casa do Tesouro Skeena".

Simpson diz que "Para alguns povos, essa "morte" pode ser metafórica e referir-se aos objectos que foram retirados da sua cultura de origem e colocados nos expositores ou nos amramzéns de um museu, onde se vêem desprovidos da vida social activa que lhes confere significado."

O povo indío americano era uma cultura nómada, eles não tinham casas fixas. Mudavam consoante os ditames dos ciclos da natureza, com os quais mantinham relação íntima. Se para os índios a ideia de uma casa fixa é estranha, a de um museu tanto mais estranho é.

Termino ainda com as palavras de Charles Eastman autor nativo-americano, que no livro "A Alma do Índio" caracteriza assim a estranheza dos indíos, povo nómada, perante a noção de igreja ou casa de culto

"Não havia quaisquer templos ou santuários entre nós, excepto os da natureza. Sendo um homem natural, o ìndio era intensamente poético. Ele julgaria sacrílego construir uma casa para Aquele que pode ser encontrado cara a cara nas misteriosas, sombrias naves da floresta primeva, ou no seio ensolarado das pradarias virgens, sobre vertiginosas agulhas e pináculos de rocha nua, e situado além da na abóbada adornada do céu nocturno. Aquele que se a Si mesmo de leves mantos de nuvens, aí na orla do mundo visível onde o nosso Bisavô Sol atiça a fogueira do seu acampamento nocturno, aquele que cavalga sobre o rigoroso vento do norte, ou exala para diante o Seu espírito sobre os ares aronáticos do Sul, cuja canoa-de-guerra se lança sobre majestosos rios e mares interiores - Ele não precisa de uma catedral mais pequena!"

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