sexta-feira, 30 de maio de 2008
Buddy Guy - Hold That Plane
Ando apaixonado por este álbum fabuloso de 1972: Hold that Plane de Buddy Guy. Tinha um best-of dele que ouvia bastantes vezes, mas depois de ouvir este álbum, decididamente já não acredito em best-ofs. Este álbum é muito melhor que o cd dos hits. Há quem chame a isto simplesmente blues de chicago, mas é muito mais do que isso. Buddy Guy é um génio que inspirou uma geração inteira de músicos de blues e do rock. Jimmy Page dos Led Zeppelin afirma: “Buddy Guy is an absolute monster”.
É extremamente difícil explicar ao certo o conjunto de sensações que este álbum me provoca. Como dizia Aldous Huxley, a música é o que está mais perto de exprimir o inexprimível.
Ouvindo este álbum fico num certo transe cool, começo a balançar o meu corpo ao som da música. Não é alegre nem triste, mas é profundamente emotivo. Há uma comunhão íntima no fundo da minha carne que se agita, que aceita de bom grado estas sonoridades como algo de libertário, libertino, libertador, poderoso, espiritual, sexual.
Se se quiser buscar as emoções no seu estado mais puro e abstracto, o melhor a fazer é pegar em música. E a música de Buddy Guy trata de uma emoção em particular chamada "blues", que não se deve confundir com outro tipo de emoção. Quem quiser saber o que é isso de estar com os "blues", terá que ouvir e participar do acontecimento. Ao princípio é como quem se apaixona pela primeira vez, fica-se meio parvo, sem saber o que fazer, ingenuamente contente e iludido.
A voz de Buddy Guy espanta todos os males, todas as palermices, pequenas e grandes frustrações do dia-a-dia de uma forma segura e fácil, tal como uma vassoura. E as suas notas de guitarra como que me dobram sucessivamente a alma, libertando-a de vícios.
Quem quiser que saque este álbum aqui neste link do blog Album Base
terça-feira, 27 de maio de 2008
Arseny Tarkovsky
Hoje, 27 de Maio, fazem 19 anos da morte do poeta russo Arseny Tarkovsky, pai do famoso realizador Andrei Tarkovsky. Recordo aqui um de seus poemas:
Vida, Vida
1
Não acredito em pressentimentos, nem agoiros
Me assustam. Não evito a calúnia
Ou o veneno. Não há morte sobre a terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal. Não há
Que ter medo da morte aos sete
Nem aos setenta. O real e a luz
Existem, mas não a morte ou a treva.
Viemos hoje à enseada,
E o cardume da imortalidade veio
Quando puxava as redes.
2
Vivei na casa - e a casa viverá.
Invocarei qualquer dos séculos
para lá construir a minha casa.
Por isso tenho vossos filhos a meu lado
E também vossas mulheres, sentados à mesa,
Mesa para o magnífico avô e para o neto.
Cumpre-se aqui e agora o futuro,
E se eu ao de leve vos dou a minha bênção
É porque só restam esses cinco raios de luz.
Omoplatas minhas como vigas mestras
Sustentam cada dia que engendra o passado,
Com a vara de agrimensura meço o tempo
E tanto atravesso como sobrevoo os montes Urais.
3
Escolho uma cidade à minha medida.
Guia-nos o sul com remoinhos de pó sobre a estepe;
Renques daninhos, pragas de gafanhotos,
As cintilações faiscantes das ferraduras polidas,
Tudo profetizava - visões
De monge - que eu iria perecer.
Peguei no destino, atei-o à sela;
E agora que estou no futuro, permaneço
Hirto nos estribos com uma criança
Só quero a imortalidade
Para que o sangue flua pelas eras.
De boa vontade daria a vida
Por um lugar seguro e quente,
Não me guiasse a agulha aérea viva
Pelo mundo como a uma linha
Arseny Tarkovsky
Born to be Wilde
Fiz uma pesquisa no google por "Born to be Wilde", para ver quantas pessoas se lembraram do mesmo trocadilho, e achei esta pérola da literatura de bolso com o mesmo nome.
Diz na capa: "Janelle Denison is a master at creating the perfect bad boy" Há um vídeo e tudo:
Acho que não há enganos: "Sexy, seductive, suspenseful", acho que estão mesmo a falar deste blog.
Diz na capa: "Janelle Denison is a master at creating the perfect bad boy" Há um vídeo e tudo:
Acho que não há enganos: "Sexy, seductive, suspenseful", acho que estão mesmo a falar deste blog.
quinta-feira, 22 de maio de 2008
O Realismo e o Elogio da Ingenuidade
"A antipatia do séc. XIX pelo Realismo é a raiva de Caliban ao ver a sua cara no espelho.
A antipatia do séc. XIX pelo Romantismo é a raiva de Caliban por não ver a sua cara no espelho"
Oscar Wilde em "O Retrato de Dorian Gray"
Quantas vezes não se ouve no discurso mundano do dia-a-dia expressões como: "temos que ser realistas!", seguido de uma possibilidade ameaçadora; "na realidade temos que aceitar isto e aquilo", como quem faz uma cedência a uma qualquer ameaça no ar, perigosa.
Nisto os políticos são muito bons (em discurso mundano), e dizem muitas vezes "temos que ser realistas, as coisas não são tão boas como se poderia pensar". Há quem diga até de uma forma mais elucidativa: "eu não sou pessimista, sou realista".
O realismo trata de algo de chocante e de mau, alguma exigência cruel, etc. Coloca-se a realidade como contrário de um ponto de vista ingénuo e romântico que diz que no fundo tudo está bem e que tudo corre pelo melhor. Ser realista é portanto, focar o problema e o que está mal, ser objectivo e racional numa perspectiva de resolução de catástrofes.
Isto é um sistema pelo qual, quando somos realistas, trazemos à consciência todas as coisas más. É o processo pelo qual, segundo uma perspectiva psicodinâmica, o recalcado retorna à consciência.
O que isto significa é que o realismo (como qualquer tipo de "racionalidade") precisa do seu imaginário, que a um nível psíquico, chamamos inconsciente (imagens, memórias, sonhos), que neste caso está recheado de acontecimentos catastróficos. É por isso que Lacan definia o "Real", no seu triângulo real-imaginário-simbólico como o acontecimento traumático que não se consegue assimilar em termos simbólicos (dai a razão de retornar sempre).
Freud dizia que o homem era dominado primeiro por um princípio do prazer e mais tarde quando fica neurótico, desenvolvia o princípio da realidade. O princípio da realidade é estruturante de um ego vigilante, tendo como função "adaptar-se às exigências do mundo externo".
Isto permite-nos falar desta "realidade cruel" como algo de fundamentalmente externo e separado do sujeito. Por isso é que um realismo exacerbado pode perfeitamente resultar em paranóia.
É aliás necessária essa cisão para que se possa falar num eu autónomo pensante, num "penso logo existo" cartesiano. E nesta perspectiva "realista", o Sujeito é fundamentalmento narcisista e perfeito, sendo postulado todo o mal como algo de externo "que acontece" e é aí nesse outro termo da relação que se encontra a realidade. Se este jogo entre dois termos se mantiver e aprofundar, temos um eu cada vez mais perfeito e cada vez mais idealizado e narcísico, e uma "realidade" cada vez mais cruel e ameaçadora e temos os ingredientes para, numa descompensação, termos uma psicose de delírios narcísicos e paranóicos.
Este funcionamento dialéctico pode funcionar de maneiras diferentes, embora este seja o mais comum na sociedade actual, materialista, secular, utilitarista.
Podemos contrapor com uma visão cristã anterior, mais comum nos nossos avós, segundo o qual existe um Deus, exterior que é, fundamentalmente bom e perfeito. Aqui, a perfeição está do lado de Deus, a vida são provações e testes e todos os homens são pecadores.
Não vamos dizer que esta perspectiva é melhor ou pior. Hoje, será uma perspectiva considerada entre outras coisas, como "ingénua", "romântica" e "pouco realista", pois precisa de crendices. Mas também o homem moderno precisa das suas crenças, por exemplo no "Real", que é o Deus de hoje, mau e vingativo e objectivo, um Deus muito parecido com os deuses pagãos primitivos, muito ligados às catástrofes naturais (externas e objectivas). Daí também o noticiário mostrar também catástrofes naturais: vivemos num mundo pagão com Deuses múltiplos, acabou o monoteísmo.
Quanto à visão cristã antiga, penso que há algo que se pode recuperar e está relacionada com essa "ingenuidade" de que é acusada. Faço aqui então esse "elogio da ingenuidade"
Não se pode dissociar o realismo moderno das correntes filosóficas do séc. XVIII do iluminismo e do positivismo que glorificam o homem como ser pensante, racional, que conseguiria dominar a natureza por intermédio da razão, portanto, um eu "perfeito", narcisista, idealizado.
Voltaire viveu nessa altura e muito gozou e criticou essa posição filosófica humana tão arrogante e tão cheia de si. Foi um escritor e pensador genial que apimentava os seus contos e histórias com críticas mordazes, irónicas e picantes sobre os defeitos e falhas humanas.
Uma das suas personagens mais famosas é o Ingénuo, da Hurânia:
"Sempre dei pelo nome de Ingénuo - replicou o hurão - e em Inglaterra sempre me chamaram assim, pois digo sempre ingenuamente o que penso, assim como faço tudo quanto quero."
Trata-se de uma personagem que, para além de dizer sempre despreocupadamente aquilo que pensa, é dotado de uma enorme curiosidade e gosto de conhecer o mundo e é, ao mesmo tempo, humilde e desinteressada sendo que, por ter estas características, ao longo das histórias de Voltaire vai causando sensação e escândalo no confronto com outras personagens comuns, mesquinhas, interesseiras e egoístas.
Numa outra versão desta personagem, o "Cândido", há uma crença imputada a esta personagem retirada directamente do postulado de Leibniz de que "este é o melhor dos mundos possíveis". Cândido é uma personagem parecida com o "Ingénuo" que vai passando por imensas provações, é feito escravo, anda na guerra, é raptado, perde-se, acontece-lhe tudo. Mas no meio dessas provações vai prosseguindo sempre com a ideia de que aquele é "o melhor dos mundos possíveis", mantendo sempre seu optimismo ingénuo.
Em contraponto de um realismo pessimista, proponho então essa ingenuidade optimista em que ao invés de olhar sobre o mundo à procura de ameaças na defesa de um ego orgulhoso e arrogante, há um prazer em olhar o mundo não em defesa de um eu, mas em contemplação daquilo que supera largamente o âmbito de um eu individual. Uma perspectiva em que assumimos a nossa pequenês perante um mundo grande e misterioso.
Depois de Nietzsche preencher a certidão de óbito de Deus, esta morte foi confirmada pelos diálogos ecuménicos em que os líderes religiosos admitem haver espaço para outras religiões ao invés da tentativa antiga de tentar universalizar seu Deus. É isto que a morte de Deus significa, já não existe o Deus monoteísta, ao invés temos uma variedade de religiões que toda a gente diz que respeita (sem seguir até ao fundo) um politeísmo oficial, um retorno ao paganismo.
Assim, o que divide essencialmente as pessoas não é a religião. Como dizia Oscar Wilde, já não há separação entre os que acreditam em Deus e os que não acreditam. O que há é uma divisão entre optimistas e pessimistas. Há duas posições que podemos escolher. A primeira é: "realisticamente, temos que assumir que as pessoas são más e mesquinhas e egoístas" ou ao invés considerar que "as pessoas são naturalmente bondosas e procuram a felicidade".
Ambas as posições são crenças, pois nenhuma destas proposições é verificável. Não podemos correr o mundo e ver pessoa a pessoa, se a humanidade é boa ou má. Por isso temos que escolher.
Eu escolho a segunda, a posição ingénua, a posição que, ao invés de glorificar o poder da razão humana sobre a natureza, arrumando o universo em duas ou três ideias e permitindo-nos a arrogância de pensar que somos perfeitos por sabermos tudo sobre o mundo, pelo contrário parte do princípio de que nunca perceberemos o mundo na sua totalidade pois numa posição ingénua são os sentidos a fonte priveligiada do conhecimento.
Os sentidos são superiores à razão por duas razões. Primeiro, sem os sentidos não haveria razão, ou seja, os sentidos são a causa primeira da razão. Em segundo lugar, o que provém dos sentidos é sempre excessivo, enquanto que a razão é sempre reducionista.
Em suma, no realismo pessimista, pensa-se que se sabe tudo através da razão, e como a razão só serve interesses pessoais, fica-se com um ego do tamanho do mundo. Na posição ingénua que defendo há uma humildade perante o "excesso de mundo" que nos provém dos sentidos.
É esta uma perspectiva que assume que o conhecimento maior do mundo não provém da experiência e da razão, mas sim dos sentidos, que são o alimento do pensamento racional. É uma perspectiva parecida com os empiristas ingleses que Voltaire admirava.
Num dos contos de Voltaire, Micrómegas, um gigante vindo de outro planeta, chega à Terra e um barco cheio de cientistas e filósofos que ao princípio julgava serem insectos, naufraga na sua mão de gigante e começa a falar com eles. A princípio julgava aqueles bichinhos como seres que "gozam as benesses bem puras do vosso globo, (...) devem passar a vida a amar e a pensar."
Rapidamente o gigante é desmentido por um dos humanos, que diz que "há cem mil loucos da nossa espécie usando chapéu que matam outros animais com as cabeças com turbantes, ou que são por estes chacinados"
Desgostoso, o gigante continua a ouvir um partidário de Descartes que dizia que "a alma é um espírito puro que recebeu no ventre materno todas as ideias metafísicas e que, ao sair para o exterior, é obrigada a aprender de novo tudo quanto soube na perfeição"
Pouco impressionado com este "insecto", o gigante ri-se imenso ainda de um partidário de S.Tomás que diz seriamente que todas as coisas do universo foram feitas para servir o homem, e fica impressionado com as palavras de um partidário de Locke que diz o seguinte:
"Que haja substâncias imateriais e inteligentes, disso não duvido. Mas que seja impossível a Deus comunicar o discernimento à matéria, ah! disso duvido mesmo. Venero o poder eterno. Não me cabe a mim abordá-lo. Nada afirmo. Contento-me em crer que existem bastantes mais coisas possíveis do que aquilo que imaginamos"
A antipatia do séc. XIX pelo Romantismo é a raiva de Caliban por não ver a sua cara no espelho"
Oscar Wilde em "O Retrato de Dorian Gray"
Quantas vezes não se ouve no discurso mundano do dia-a-dia expressões como: "temos que ser realistas!", seguido de uma possibilidade ameaçadora; "na realidade temos que aceitar isto e aquilo", como quem faz uma cedência a uma qualquer ameaça no ar, perigosa.
Nisto os políticos são muito bons (em discurso mundano), e dizem muitas vezes "temos que ser realistas, as coisas não são tão boas como se poderia pensar". Há quem diga até de uma forma mais elucidativa: "eu não sou pessimista, sou realista".
O realismo trata de algo de chocante e de mau, alguma exigência cruel, etc. Coloca-se a realidade como contrário de um ponto de vista ingénuo e romântico que diz que no fundo tudo está bem e que tudo corre pelo melhor. Ser realista é portanto, focar o problema e o que está mal, ser objectivo e racional numa perspectiva de resolução de catástrofes.
Isto é um sistema pelo qual, quando somos realistas, trazemos à consciência todas as coisas más. É o processo pelo qual, segundo uma perspectiva psicodinâmica, o recalcado retorna à consciência.
O que isto significa é que o realismo (como qualquer tipo de "racionalidade") precisa do seu imaginário, que a um nível psíquico, chamamos inconsciente (imagens, memórias, sonhos), que neste caso está recheado de acontecimentos catastróficos. É por isso que Lacan definia o "Real", no seu triângulo real-imaginário-simbólico como o acontecimento traumático que não se consegue assimilar em termos simbólicos (dai a razão de retornar sempre).
Freud dizia que o homem era dominado primeiro por um princípio do prazer e mais tarde quando fica neurótico, desenvolvia o princípio da realidade. O princípio da realidade é estruturante de um ego vigilante, tendo como função "adaptar-se às exigências do mundo externo".
Isto permite-nos falar desta "realidade cruel" como algo de fundamentalmente externo e separado do sujeito. Por isso é que um realismo exacerbado pode perfeitamente resultar em paranóia.
É aliás necessária essa cisão para que se possa falar num eu autónomo pensante, num "penso logo existo" cartesiano. E nesta perspectiva "realista", o Sujeito é fundamentalmento narcisista e perfeito, sendo postulado todo o mal como algo de externo "que acontece" e é aí nesse outro termo da relação que se encontra a realidade. Se este jogo entre dois termos se mantiver e aprofundar, temos um eu cada vez mais perfeito e cada vez mais idealizado e narcísico, e uma "realidade" cada vez mais cruel e ameaçadora e temos os ingredientes para, numa descompensação, termos uma psicose de delírios narcísicos e paranóicos.
Este funcionamento dialéctico pode funcionar de maneiras diferentes, embora este seja o mais comum na sociedade actual, materialista, secular, utilitarista.
Podemos contrapor com uma visão cristã anterior, mais comum nos nossos avós, segundo o qual existe um Deus, exterior que é, fundamentalmente bom e perfeito. Aqui, a perfeição está do lado de Deus, a vida são provações e testes e todos os homens são pecadores.
Não vamos dizer que esta perspectiva é melhor ou pior. Hoje, será uma perspectiva considerada entre outras coisas, como "ingénua", "romântica" e "pouco realista", pois precisa de crendices. Mas também o homem moderno precisa das suas crenças, por exemplo no "Real", que é o Deus de hoje, mau e vingativo e objectivo, um Deus muito parecido com os deuses pagãos primitivos, muito ligados às catástrofes naturais (externas e objectivas). Daí também o noticiário mostrar também catástrofes naturais: vivemos num mundo pagão com Deuses múltiplos, acabou o monoteísmo.
Quanto à visão cristã antiga, penso que há algo que se pode recuperar e está relacionada com essa "ingenuidade" de que é acusada. Faço aqui então esse "elogio da ingenuidade"
Não se pode dissociar o realismo moderno das correntes filosóficas do séc. XVIII do iluminismo e do positivismo que glorificam o homem como ser pensante, racional, que conseguiria dominar a natureza por intermédio da razão, portanto, um eu "perfeito", narcisista, idealizado.
Voltaire viveu nessa altura e muito gozou e criticou essa posição filosófica humana tão arrogante e tão cheia de si. Foi um escritor e pensador genial que apimentava os seus contos e histórias com críticas mordazes, irónicas e picantes sobre os defeitos e falhas humanas.
Uma das suas personagens mais famosas é o Ingénuo, da Hurânia:
"Sempre dei pelo nome de Ingénuo - replicou o hurão - e em Inglaterra sempre me chamaram assim, pois digo sempre ingenuamente o que penso, assim como faço tudo quanto quero."
Trata-se de uma personagem que, para além de dizer sempre despreocupadamente aquilo que pensa, é dotado de uma enorme curiosidade e gosto de conhecer o mundo e é, ao mesmo tempo, humilde e desinteressada sendo que, por ter estas características, ao longo das histórias de Voltaire vai causando sensação e escândalo no confronto com outras personagens comuns, mesquinhas, interesseiras e egoístas.
Numa outra versão desta personagem, o "Cândido", há uma crença imputada a esta personagem retirada directamente do postulado de Leibniz de que "este é o melhor dos mundos possíveis". Cândido é uma personagem parecida com o "Ingénuo" que vai passando por imensas provações, é feito escravo, anda na guerra, é raptado, perde-se, acontece-lhe tudo. Mas no meio dessas provações vai prosseguindo sempre com a ideia de que aquele é "o melhor dos mundos possíveis", mantendo sempre seu optimismo ingénuo.
Em contraponto de um realismo pessimista, proponho então essa ingenuidade optimista em que ao invés de olhar sobre o mundo à procura de ameaças na defesa de um ego orgulhoso e arrogante, há um prazer em olhar o mundo não em defesa de um eu, mas em contemplação daquilo que supera largamente o âmbito de um eu individual. Uma perspectiva em que assumimos a nossa pequenês perante um mundo grande e misterioso.
Depois de Nietzsche preencher a certidão de óbito de Deus, esta morte foi confirmada pelos diálogos ecuménicos em que os líderes religiosos admitem haver espaço para outras religiões ao invés da tentativa antiga de tentar universalizar seu Deus. É isto que a morte de Deus significa, já não existe o Deus monoteísta, ao invés temos uma variedade de religiões que toda a gente diz que respeita (sem seguir até ao fundo) um politeísmo oficial, um retorno ao paganismo.
Assim, o que divide essencialmente as pessoas não é a religião. Como dizia Oscar Wilde, já não há separação entre os que acreditam em Deus e os que não acreditam. O que há é uma divisão entre optimistas e pessimistas. Há duas posições que podemos escolher. A primeira é: "realisticamente, temos que assumir que as pessoas são más e mesquinhas e egoístas" ou ao invés considerar que "as pessoas são naturalmente bondosas e procuram a felicidade".
Ambas as posições são crenças, pois nenhuma destas proposições é verificável. Não podemos correr o mundo e ver pessoa a pessoa, se a humanidade é boa ou má. Por isso temos que escolher.
Eu escolho a segunda, a posição ingénua, a posição que, ao invés de glorificar o poder da razão humana sobre a natureza, arrumando o universo em duas ou três ideias e permitindo-nos a arrogância de pensar que somos perfeitos por sabermos tudo sobre o mundo, pelo contrário parte do princípio de que nunca perceberemos o mundo na sua totalidade pois numa posição ingénua são os sentidos a fonte priveligiada do conhecimento.
Os sentidos são superiores à razão por duas razões. Primeiro, sem os sentidos não haveria razão, ou seja, os sentidos são a causa primeira da razão. Em segundo lugar, o que provém dos sentidos é sempre excessivo, enquanto que a razão é sempre reducionista.
Em suma, no realismo pessimista, pensa-se que se sabe tudo através da razão, e como a razão só serve interesses pessoais, fica-se com um ego do tamanho do mundo. Na posição ingénua que defendo há uma humildade perante o "excesso de mundo" que nos provém dos sentidos.
É esta uma perspectiva que assume que o conhecimento maior do mundo não provém da experiência e da razão, mas sim dos sentidos, que são o alimento do pensamento racional. É uma perspectiva parecida com os empiristas ingleses que Voltaire admirava.
Num dos contos de Voltaire, Micrómegas, um gigante vindo de outro planeta, chega à Terra e um barco cheio de cientistas e filósofos que ao princípio julgava serem insectos, naufraga na sua mão de gigante e começa a falar com eles. A princípio julgava aqueles bichinhos como seres que "gozam as benesses bem puras do vosso globo, (...) devem passar a vida a amar e a pensar."
Rapidamente o gigante é desmentido por um dos humanos, que diz que "há cem mil loucos da nossa espécie usando chapéu que matam outros animais com as cabeças com turbantes, ou que são por estes chacinados"
Desgostoso, o gigante continua a ouvir um partidário de Descartes que dizia que "a alma é um espírito puro que recebeu no ventre materno todas as ideias metafísicas e que, ao sair para o exterior, é obrigada a aprender de novo tudo quanto soube na perfeição"
Pouco impressionado com este "insecto", o gigante ri-se imenso ainda de um partidário de S.Tomás que diz seriamente que todas as coisas do universo foram feitas para servir o homem, e fica impressionado com as palavras de um partidário de Locke que diz o seguinte:
"Que haja substâncias imateriais e inteligentes, disso não duvido. Mas que seja impossível a Deus comunicar o discernimento à matéria, ah! disso duvido mesmo. Venero o poder eterno. Não me cabe a mim abordá-lo. Nada afirmo. Contento-me em crer que existem bastantes mais coisas possíveis do que aquilo que imaginamos"
sábado, 17 de maio de 2008
Campeonato Europeu de Futebol Filosófico
Vai começar o Euro 2008 de futebol, mas o que eu que aqui venho falar é de outro campeonato: o Campenato Europeu de Futebol Filosófico. O primeiro jogo decorreu hoje entre o Existencialismo Fenomenológico e a equipa da Psicanálise Marxista:
Existencialismo Fenomenológico 1 - 1 Psicanálise Marxista
Houve empate nesta primeira jornada entre os existencialistas e os psicodinâmicos de esquerda.
Tratou-se de um belo espectáculo desportivo, com ambas as equipas viradas para o ataque, com grandes jogadas de especulação filosófica a serem explanadas no terreno de jogo.
Os existencialistas apresentaram uma equipa montada num nítido 4-3-3, enquanto que os neuróticos marxistas actuaram no seu dialéctico esquema de 4 -4 -2 clássico.
Logo no início da partida, aos 5 minutos houve uma falta perigosa do psicólogo existencialista Frankl, muito perto da grande área, em zona frontal à baliza. Adorno encarregou-se de bater o livre e o francês Jean Paul Sartre, que estava na barreira, levou as "mãos sujas" à bola, tendo sido assinalada grande penalidade. Marx, o capitão da equipa, não perdoou e o guarda redes russo Dostoievski sofreu o "Crime e Castigo".
Com 1-0 no marcador os existencialistas partiram para cima do adversário, à procura do prejuízo. O flanco direito da equipa esteve particularmente activo, com os franceses Camus e Sartre a ganharem várias vezes a linha de fundo donde saíram cruzamento perigosos perante a passividade de Marcuse. Numa dessas ocasiões, Nietzsche, com uma enorme "vontade de poder" ganhou de cabeça na área a Freud, e marcou um belíssimo golo, que fixou o resultado final. Lacan ficou a olhar para a bola a entrar na baliza como se de uma cena obscena se tratasse.
Deleuze e Guattari ainda tentaram fazer das suas famosas combinações esquizofrénicas de cortes e recortes dos fluxos de bola, mas Schopenhauer esteve muito sóbrio e seguro, abafando as diabruras destes dois. Também Zizek tentou inverter o rumo dos acontecimentos, muito irrequieto e nervoso no flanco esquerdo, com uma velocidade desconcertante mas muitas vezes inconsequente.
Destaque ainda para um remate ao poste de Kierkegaard que foi o guia espiritual da equipa do existencialismo fenomenológico.
Houve empate nesta primeira jornada entre os existencialistas e os psicodinâmicos de esquerda.
Tratou-se de um belo espectáculo desportivo, com ambas as equipas viradas para o ataque, com grandes jogadas de especulação filosófica a serem explanadas no terreno de jogo.
Os existencialistas apresentaram uma equipa montada num nítido 4-3-3, enquanto que os neuróticos marxistas actuaram no seu dialéctico esquema de 4 -4 -2 clássico.
Logo no início da partida, aos 5 minutos houve uma falta perigosa do psicólogo existencialista Frankl, muito perto da grande área, em zona frontal à baliza. Adorno encarregou-se de bater o livre e o francês Jean Paul Sartre, que estava na barreira, levou as "mãos sujas" à bola, tendo sido assinalada grande penalidade. Marx, o capitão da equipa, não perdoou e o guarda redes russo Dostoievski sofreu o "Crime e Castigo".
Com 1-0 no marcador os existencialistas partiram para cima do adversário, à procura do prejuízo. O flanco direito da equipa esteve particularmente activo, com os franceses Camus e Sartre a ganharem várias vezes a linha de fundo donde saíram cruzamento perigosos perante a passividade de Marcuse. Numa dessas ocasiões, Nietzsche, com uma enorme "vontade de poder" ganhou de cabeça na área a Freud, e marcou um belíssimo golo, que fixou o resultado final. Lacan ficou a olhar para a bola a entrar na baliza como se de uma cena obscena se tratasse.
Deleuze e Guattari ainda tentaram fazer das suas famosas combinações esquizofrénicas de cortes e recortes dos fluxos de bola, mas Schopenhauer esteve muito sóbrio e seguro, abafando as diabruras destes dois. Também Zizek tentou inverter o rumo dos acontecimentos, muito irrequieto e nervoso no flanco esquerdo, com uma velocidade desconcertante mas muitas vezes inconsequente.
Destaque ainda para um remate ao poste de Kierkegaard que foi o guia espiritual da equipa do existencialismo fenomenológico.
quinta-feira, 15 de maio de 2008
Prémio "Talentos Pessoanos"
Tenho andado ocupado com afazeres académicos, pelo que venho aqui hoje limpar as teias de aranha dos cantos do blog e expressar o meu contentamento por saber que fiquei empatado em primeiro lugar do concurso Talentos Pessoanos da Universidade Fernando Pessoa, na modalidade de poesia com o trabalho "Bolas de Sabão".
Este trabalho é constituído por uma selecção de cinco poemas, sendo cada um deles considerado uma “bola de sabão”. As bolas de sabão não são objectos mas sim acontecimentos.
Uma bola de sabão quando se desfaz, fica com a sua parte de dentro virada para fora, ou seja, do tamanho do mundo, embora os nossos olhos ocultem o surgimento deste gigantesco nada.
Estes poemas são momentos de vida arrancados da cadeia infinita de causas e consequências a que chamamos tempo e que, virados ao contrário, se reterritorializaram nestas “Bolas de Sabão”.
Recebo esta notícia pouco tempo depois do meu aniversário, dia 9 de Maio. Há cerca de três anos, também no dia 9 de Maio de 2005, escrevi o seguinte poema que faz parte deste trabalho:
quanto vale
um belo poema
que não escrevi?
quanto vale
um sonho meu
sem tradução?
talvez tanto
como bolas de sabão
vendidas ao quilo,
talvez tanto
como um dia perfeito
passado sozinho.
Este trabalho é constituído por uma selecção de cinco poemas, sendo cada um deles considerado uma “bola de sabão”. As bolas de sabão não são objectos mas sim acontecimentos.
Uma bola de sabão quando se desfaz, fica com a sua parte de dentro virada para fora, ou seja, do tamanho do mundo, embora os nossos olhos ocultem o surgimento deste gigantesco nada.
Estes poemas são momentos de vida arrancados da cadeia infinita de causas e consequências a que chamamos tempo e que, virados ao contrário, se reterritorializaram nestas “Bolas de Sabão”.
Recebo esta notícia pouco tempo depois do meu aniversário, dia 9 de Maio. Há cerca de três anos, também no dia 9 de Maio de 2005, escrevi o seguinte poema que faz parte deste trabalho:
quanto vale
um belo poema
que não escrevi?
quanto vale
um sonho meu
sem tradução?
talvez tanto
como bolas de sabão
vendidas ao quilo,
talvez tanto
como um dia perfeito
passado sozinho.
sexta-feira, 9 de maio de 2008
9 de Maio
Não ia deixar passar este dia 9 de Maio sem narcisicamente me vangloriar de hoje ser o meu dia de anos, se bem que não haja nenhum mérito da minha parte: fazer anos significa que a terra deu mais uma volta ao sol e que nós entretanto não morremos.
Mas para muita gente, os números e as datas têm significado profundo e dizem muita coisa. Carl Jung era um desses. Dizia ele que "o número nos ajuda, antes e acima de tudo, a pôr ordem no caos das aparências. É o instrumento indicado para criar ordem ou para apreender uma certa regularidade já presente, mas ainda desconhecida, isto é, um certo ordenamento entre as coisas."
Então vejamos que acontecimentos estão ligados ao dia 9 de Maio. Após curta investigação, descobri que o dia 9 de Maio, para além de ser o dia da Europa, é também o dia em que na Rússia se comemora a vitória URSS na 2ª guerra mundial.
Mais: em 9 de Maio de 1386, foi assinada a Aliança Luso-Britânica entre Portugal e Inglaterra, a mais antiga aliança entre nações em vigor;
Em 9 de Maio de 1605 é publicada a primeira parte Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes;
A 9 de Maio de 1920 Joana D'Arc é canonizada, e também Thomas More foi canonizado a 9 de Maio de 1935.
Ah, e mais importante do que isto tudo, no dia 9 de Maio é também comemorado o "Dia do Orgasmo" na localidade de Piauí, no Brasil. Gostava de saber o que Jung (ou a Maya) tem a dizer sobre tudo isto.
Mas para muita gente, os números e as datas têm significado profundo e dizem muita coisa. Carl Jung era um desses. Dizia ele que "o número nos ajuda, antes e acima de tudo, a pôr ordem no caos das aparências. É o instrumento indicado para criar ordem ou para apreender uma certa regularidade já presente, mas ainda desconhecida, isto é, um certo ordenamento entre as coisas."
Então vejamos que acontecimentos estão ligados ao dia 9 de Maio. Após curta investigação, descobri que o dia 9 de Maio, para além de ser o dia da Europa, é também o dia em que na Rússia se comemora a vitória URSS na 2ª guerra mundial.
Mais: em 9 de Maio de 1386, foi assinada a Aliança Luso-Britânica entre Portugal e Inglaterra, a mais antiga aliança entre nações em vigor;
Em 9 de Maio de 1605 é publicada a primeira parte Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes;
A 9 de Maio de 1920 Joana D'Arc é canonizada, e também Thomas More foi canonizado a 9 de Maio de 1935.
Ah, e mais importante do que isto tudo, no dia 9 de Maio é também comemorado o "Dia do Orgasmo" na localidade de Piauí, no Brasil. Gostava de saber o que Jung (ou a Maya) tem a dizer sobre tudo isto.
terça-feira, 6 de maio de 2008
Nova Águia, China, Tibete e Reencarnação Democrática
A Águia foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal, em que colaboraram figuras da nossa Cultura, como Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, António Sérgio, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva.
Vai ser lançada no dia 19 de Maio, no Porto, a revista Nova Águia, que pretende retomar o espírito da antiga Águia. Esta revista é também um orgão do MIL, Movimento Internacional Lusófono, ao qual associei o meu nome há uns tempos. Trata-se um movimento que pretende reflectir sobre a ideia de pátria e de uma ideia de Portugal fundada em valores universais.
No dia 30 de Abril houve uma conferência de imprensa aqui no Porto sobre o lançamento desta revista e eu decidi dar lá um pulo, mesmo não sendo jornalista. Afinal, decorreu na fundação José Antunes que descobri ser muito perto de onde moro. Vi o Paulo Borges, Celeste Natário, o Renato Epifânio, em entrevistas. No fim cumprimentei-os, troquei algumas poucas palavras, disse que fazia parte do movimento. Depois tive que me vir embora pois tinha afazeres.
De qualquer maneira, o lançamento oficial da revista é 19 de Maio. Terá entre outras coisas um texto inédito de Agustina Bessa-Luís.
Tive conhecimento do MIL e da Nova Águia há uns meses. Em Dezembro do ano passado comprei o livro Cantos de Amor do VI Dalai Lama. São poemas repletos de lirismo e sensualidade, escritos por um dos Dalai Lamas mais excêntricos que já existiram. O livro tem uma introdução muito boa do Paulo Borges, nome que fixei, e que mais tarde vim a saber ser o presidente da União Budista Portuguesa e membro da direcção do MIL e da Nova Águia.
Nessa introdução é descrita a vida e o contexto histórico de Tsangyang Gyatso, sexto Dalai Lama nascido em 1683. Gyatso foi um Dalai Lama boémio, de cabelos compridos, e suas paixões eram vinho, poesia, mulheres e tabernas. Foi o único Dalai Lama que recusou solenemente os votos monásticos. Amado pelo povo, deixou uma obra poética vasta e muito difundida entre o povo tibetano principalmente. O seu reinado corresponde ao mesmo tempo a um período conturbado na história do tibete, tal como a de hoje. Ocupado pelos mongóis, foi nessa altura que os Chineses interviram e libertaram os tibetes da ocupação mongol. É aliás esse ainda o principal argumento do governo chinês quando dizem que o tibete faz parte da China.
Temos visto actualmente nas notícias ser tratada a questão do Tibete. A viagem da tocha olímpica tem causado incómodos e confrontos vários por onde tem passado. Fala-se em boicote de jogos olímpicos e outras eventualidades. Entretanto, a China reatou diálogos com o actual Dalai Lama, o que lança uma atmosfera de expectativa em todo o mundo que acompanha a questão.
No entanto, a China avisou que a questão da independência estaria fora das conversações. Sobre o que é que andarão a conversar, então? Eu aposto que devem andar a negociar "reencarnações".
Para quem não sabe, a China aprovou há algum tempo uma lei que regulamenta a reencarnação. Pode parecer estranho mas é isso mesmo: uma lei que diz que em território chinês a reencarnação só é admissível do ponto de vista legal mediante determinadas condições tal e tal, etc.
O que se pretende daqui é logicamente a tentativa da China de controlar o próximo Dalai Lama e a sua descendência. A passagem do Dharma, processo que designa o líder espiritual e político do povo tibetano, faz-se como sempre se fez, através da reencarnação, por intermédio de um oráculo. Perante a lei que os chineses fizeram aprovar, em resposta o Dalai Lama já sugeriu que a passagem do Dharma poderia modificar-se, passar a ser feita através do voto de um conselho de anciãos do tibete, ou seja uma espécie de democracia. Também já ouvimos Dalai Lama referir que se demitirá do cargo de líder secular do Tibete caso a violência atinja níveis incontroláveis, pelo que ficaria neste caso apenas com a tutela religiosa e relegando a tutela política do tibete.
Esta discussão sobre a descendência dos Dalai Lamas leva-nos de volta ao poeta, mulherengo e boémio VI Dalai Lama dos anos 1700 e tal. Também na altura houve a discussão acerca da transmissão do Dharma. A rígida estrutura monástica tibetana da altura não gostava muito da vida lírica e rockeira do seu Dalai Lama. Chegaram a consultar o oráculo para confirmar se aquele ser libertino seria o verdadeiro Dalai Lama e a resposta terá sido a mesma: aquele é o Dalai Lama de todos os tibetanos, quem não o seguir será infiel. Mais tarde, Gyatso desapareceu, morreu ou foi morto, não se sabe ao certo. O que é certo é que houve uma discussão profunda na altura sobre se deveriam mudar a descendência dos Dalai Lamas para uma descendência hereditária, pois este tinha muitos descendentes espalhados pelo Tibete dessa forma.
A discussão sobre a reencarnação do Dalai Lama também se discute hoje, passados uns bons 300 anos, embora condições bastante diferentes. Eu pela minha parte, digo que não confio no governo chinês, aquilo não é socialismo nenhum, trata-se mais de um certo capitalismo de estado. Contudo, se há esperança para o comunismo chinês, penso que o segredo está em conseguir com tornar o regime chinês mais humano. Para que tal aconteça, o governo chinês devia valorizar o budismo que lhe pode ser muito útil nesse sentido. De recordar que o budismo é a religião mais praticada pela maioria dos chineses.
E também o governo tibetano, apelidado de teocrático, penso que se trata antes do mais antigo e mais avançado sistema democrático que existe: a reencarnação. Se o líder é escolhido ao "acaso", digamos assim (acaso é a forma como nós ocidentais apelidamos o divino), quer dizer que qualquer um de nós pode ser Dalai Lama, em termos probabilísticos. Só desta forma é que fazemos justiça à crença democrática de que somos todos iguais.
A minha proposta para fazer evoluir o sistema democrático dos países ocidentais como o conhecemos é: sortear o líder entre todos os cidadãos. (sortear porque no mundo de hoje é dos poucos rituais mágicos que nos resta). Termino com um poema de Gyatso, o VI Dalai Lama:
CANTO DE LHASA
Pavões da Índia oriental,
Papagaios das profundezas de Kongpo,
Nascidos embora em países distintos
Em Lhasa se reencontram, onde gira a Roda do Dharma.
Vai ser lançada no dia 19 de Maio, no Porto, a revista Nova Águia, que pretende retomar o espírito da antiga Águia. Esta revista é também um orgão do MIL, Movimento Internacional Lusófono, ao qual associei o meu nome há uns tempos. Trata-se um movimento que pretende reflectir sobre a ideia de pátria e de uma ideia de Portugal fundada em valores universais.
No dia 30 de Abril houve uma conferência de imprensa aqui no Porto sobre o lançamento desta revista e eu decidi dar lá um pulo, mesmo não sendo jornalista. Afinal, decorreu na fundação José Antunes que descobri ser muito perto de onde moro. Vi o Paulo Borges, Celeste Natário, o Renato Epifânio, em entrevistas. No fim cumprimentei-os, troquei algumas poucas palavras, disse que fazia parte do movimento. Depois tive que me vir embora pois tinha afazeres.
De qualquer maneira, o lançamento oficial da revista é 19 de Maio. Terá entre outras coisas um texto inédito de Agustina Bessa-Luís.
Tive conhecimento do MIL e da Nova Águia há uns meses. Em Dezembro do ano passado comprei o livro Cantos de Amor do VI Dalai Lama. São poemas repletos de lirismo e sensualidade, escritos por um dos Dalai Lamas mais excêntricos que já existiram. O livro tem uma introdução muito boa do Paulo Borges, nome que fixei, e que mais tarde vim a saber ser o presidente da União Budista Portuguesa e membro da direcção do MIL e da Nova Águia.
Nessa introdução é descrita a vida e o contexto histórico de Tsangyang Gyatso, sexto Dalai Lama nascido em 1683. Gyatso foi um Dalai Lama boémio, de cabelos compridos, e suas paixões eram vinho, poesia, mulheres e tabernas. Foi o único Dalai Lama que recusou solenemente os votos monásticos. Amado pelo povo, deixou uma obra poética vasta e muito difundida entre o povo tibetano principalmente. O seu reinado corresponde ao mesmo tempo a um período conturbado na história do tibete, tal como a de hoje. Ocupado pelos mongóis, foi nessa altura que os Chineses interviram e libertaram os tibetes da ocupação mongol. É aliás esse ainda o principal argumento do governo chinês quando dizem que o tibete faz parte da China.
Temos visto actualmente nas notícias ser tratada a questão do Tibete. A viagem da tocha olímpica tem causado incómodos e confrontos vários por onde tem passado. Fala-se em boicote de jogos olímpicos e outras eventualidades. Entretanto, a China reatou diálogos com o actual Dalai Lama, o que lança uma atmosfera de expectativa em todo o mundo que acompanha a questão.
No entanto, a China avisou que a questão da independência estaria fora das conversações. Sobre o que é que andarão a conversar, então? Eu aposto que devem andar a negociar "reencarnações".
Para quem não sabe, a China aprovou há algum tempo uma lei que regulamenta a reencarnação. Pode parecer estranho mas é isso mesmo: uma lei que diz que em território chinês a reencarnação só é admissível do ponto de vista legal mediante determinadas condições tal e tal, etc.
O que se pretende daqui é logicamente a tentativa da China de controlar o próximo Dalai Lama e a sua descendência. A passagem do Dharma, processo que designa o líder espiritual e político do povo tibetano, faz-se como sempre se fez, através da reencarnação, por intermédio de um oráculo. Perante a lei que os chineses fizeram aprovar, em resposta o Dalai Lama já sugeriu que a passagem do Dharma poderia modificar-se, passar a ser feita através do voto de um conselho de anciãos do tibete, ou seja uma espécie de democracia. Também já ouvimos Dalai Lama referir que se demitirá do cargo de líder secular do Tibete caso a violência atinja níveis incontroláveis, pelo que ficaria neste caso apenas com a tutela religiosa e relegando a tutela política do tibete.
Esta discussão sobre a descendência dos Dalai Lamas leva-nos de volta ao poeta, mulherengo e boémio VI Dalai Lama dos anos 1700 e tal. Também na altura houve a discussão acerca da transmissão do Dharma. A rígida estrutura monástica tibetana da altura não gostava muito da vida lírica e rockeira do seu Dalai Lama. Chegaram a consultar o oráculo para confirmar se aquele ser libertino seria o verdadeiro Dalai Lama e a resposta terá sido a mesma: aquele é o Dalai Lama de todos os tibetanos, quem não o seguir será infiel. Mais tarde, Gyatso desapareceu, morreu ou foi morto, não se sabe ao certo. O que é certo é que houve uma discussão profunda na altura sobre se deveriam mudar a descendência dos Dalai Lamas para uma descendência hereditária, pois este tinha muitos descendentes espalhados pelo Tibete dessa forma.
A discussão sobre a reencarnação do Dalai Lama também se discute hoje, passados uns bons 300 anos, embora condições bastante diferentes. Eu pela minha parte, digo que não confio no governo chinês, aquilo não é socialismo nenhum, trata-se mais de um certo capitalismo de estado. Contudo, se há esperança para o comunismo chinês, penso que o segredo está em conseguir com tornar o regime chinês mais humano. Para que tal aconteça, o governo chinês devia valorizar o budismo que lhe pode ser muito útil nesse sentido. De recordar que o budismo é a religião mais praticada pela maioria dos chineses.
E também o governo tibetano, apelidado de teocrático, penso que se trata antes do mais antigo e mais avançado sistema democrático que existe: a reencarnação. Se o líder é escolhido ao "acaso", digamos assim (acaso é a forma como nós ocidentais apelidamos o divino), quer dizer que qualquer um de nós pode ser Dalai Lama, em termos probabilísticos. Só desta forma é que fazemos justiça à crença democrática de que somos todos iguais.
A minha proposta para fazer evoluir o sistema democrático dos países ocidentais como o conhecemos é: sortear o líder entre todos os cidadãos. (sortear porque no mundo de hoje é dos poucos rituais mágicos que nos resta). Termino com um poema de Gyatso, o VI Dalai Lama:
CANTO DE LHASA
Pavões da Índia oriental,
Papagaios das profundezas de Kongpo,
Nascidos embora em países distintos
Em Lhasa se reencontram, onde gira a Roda do Dharma.
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