sábado, 25 de outubro de 2008

Paulo Coelho e Música de Supermercado: cultura "light" sem riscos nem danos colaterais.

Num blog aqui ao lado, comentava-se uma entrevista de Eduardo Lourenço em que este por sua vez comentava Paulo Coelho. Este dizia que aquilo não era bem literatura. Era uma literatura "light"

Eu confesso ter lido dois livros de Paulo Coelho. Acho que é um crime dos intelectuais suponho. Entre gente que leia coisas a sério como Flaubert ou Dostoievsky, ler Paulo Coelho é muito mau, é tabu. Eu estive lá. O que eu acho? É uma literatura tão fácil, tão fácil que eu li aquilo quase por acidente. Li uma página, duas, mas aquilo é tão "light" que, como que se escorrega nas mãos e de repente leste um livro do paulo coelho. Ler um parágrafo ou dois de Deleuze demora tanto tempo como 2 ou 3 livros de Paulo Coelho.

É uma literatura segura, sem riscos. Se Nietzsche é um soco no estômago, Paulo Coelho é uma brisa que faz cócegas, no máximo. A literatura no seu expoente máximo é uma agressão brutal da nossa identidade, uma violação das coordenadas do nosso ego. Num mundo em que todos andam inseguros com seus pequenos eus que tanto querem preservar, e de gente que não se quer incomodar muito com leituras que exijam muito, paulo coelho é ideal para quem apenas quer ver confirmados os seus preconceitos, sua pequena visão do mundo, seu cantinho abrigado do caos. Paulo Coelho é como aquela música de supermercado ou da rádio que, não sendo nunca obras-primas, nunca chega a ser mau. Essencialmente, preenche um vazio sem agredir muito.

Uma vez um amigo quis mostrar à colega de trabalho Jeff Buckley, para ver se elevava sua cultura musical acima dos hip-hops MTV e do pop-rock romântico RFM. Não gostou. Disse que era música triste. Aí está o paradigma: não uma música que nos emocione, mas sim uma música que simplesmente encha e preencha um vazio. Uma música segura e uma literatura segura, testada e controlada.

A cultura no seu pleno é emocionalmente violenta. É uma cultura que incomoda, que nos aproxima das angústias essenciais da vida ao invés de nos manter indefinidamente e neuroticamente alienados. Em suma uma cultura que nos remeta para a angústia primordial de termos nascido. Que nos faça regredir para poder crescer, ao invés de nos mantermos em repetições compulsivas de velhos hábitos e rituais do nosso euzinho.

A cultura não é para qualquer um. Não é uma receita de farmácia, remédio dos coitadinhos. A cultura é para os corajosos, crentes e curiosos. É para deixar quem somos em casa, e aventurar-se na descoberta do que ainda nos falta ser. É para quem não lhe basta não querer morrer, é para quem tem sede de viver.

Expose yourself to your deepest fear; after that, fear has no power, and the fear of freedom shrinks and vanishes. You are free.
Jim Morrison

Got a lust for life, Yeah, a lust for life. I got a lust for life
Iggy Pop


5 comentários:

Ivo disse...

excelente post. concordo a 100%.

"É uma literatura segura, sem riscos."

maio disse...

eu diria que expressa um modo de "vida" seguro, sem riscos...

gostar de ouvir buckley gritar: "throw off your shame or be a slave of the system" não é para todos e eu já desisti de doutrinar os meus amigos. Sim, porque alguns dos meus melhores amigos lêem paulo coelho, e têm um gosto musical educado pela RFM e afins.

Mas com o passar dos anos descobri que o "diz-me o que lês/ouves dir-te-ei quem és" é uma etiqueta tão parva como o meu preconceito em ler autores da chamada literatura light.

Acho que o facto de preferir ler, por exemplo, Eco, Cossery ou London, não faz de mim melhor nem pior do que os milhões de leitores de Sparks e Roberts. Poderá apenas reflectir diferentes posturas e modos de encarar a vida.

José Magalhães disse...

"diz-me o que lês/ouves dir-te-ei quem és" é uma etiqueta tão parva como o meu preconceito em ler autores da chamada literatura light." (...) "Poderá apenas reflectir diferentes posturas e modos de encarar a vida."

Sim caro "Ich". Entendo o que me queres dizer. Com certeza não devemos diferenciar pessoas assim tão cabalmente.

Neste post quis elogiar e promover, uma dessas posturas e modos possíveis de encarar a vida, nomeadamente o "consumo" da cultura como violento, radical e arriscado processo de auto-descoberta, como algo de edificante, transformador e iluminante como um trovão.

Obviamente que haverá outros motivos possíveis para "consumir" cultura, e culturas diferentes que se ajustam melhor ou pior a diferentes modos de encarar a vida. Eventualmente há modos de encarar a vida que têm fome de todas as culturas sem ter acesso a nenhuma. Ou às vezes pode acontecer alguém ter cultura excessiva para fins menores. Com certeza que não caberiam todas as situações num post, nem terei a pretensão de o tentar fazer.

Posso contudo acrescentar que já conheci uma pessoa, por exemplo, de uma sensibilidade e riqueza humana impressionante, que praticamente não sabia ler nem escrever. Esta pessoa, diria ser uma personificação e vivência do que Deleuze apenas pensou. Alguém que compreenderia melhor que Deleuze até, o que são máquinas desejantes e o que é o devir animal.

Já conheci por outro lado, uma pessoa por exemplo, que leu 200 livros, viu 500 filmes, ouviu 5000 músicas, mas que no fim de contas não era filósofo, nem pensador, nem poeta, nem músico, nem nada. Era apenas um coleccionista.

Entre estes dois há um mundo de diferença, e para além destes, muitos mais mundos haverá. O único mundo que não sei se há é "o melhor dos mundos possíveis"

maio disse...

ai, o mestre Pangloss... :D

Esclarecida!

Anônimo disse...

bah, toda a questão gira em torno da alta e da baixa cultura. sempre as houve. o que há hoje é um acesso das massas a bens culturais, isso sim é inédito. ou seja, uma multiplicação de paulo coelhos e mtvs e rfm´s. mas estes são fenómenos que sempre existiram, a separação de mundos culturais.
a literatura sempre foi um privilégio de alguns, por imposição pré-gutembergiana e, se hoje há acesso fácil ao objecto livro, tal não significa que o objecto seja portador de literatura, ou da «alta literatura»

os paulos coelho e afins são apenas o nome contemporâneo para uma realidade ancestral.
já dizia o velho horário: odi profanum vulgus.

é tão legítimo acharmos boçal os adoradores de o segredo e paulos coelho, como os mesmos atribuírem nulidade à leitura de um kafka. não vamos ser inocentes ou assim tão politicamente correctos, ou mesmo condescendentes,achando que podemos posicionar-nos numa espécie de multiculturalidade culturalesca.é demasiado irritante. como um narciso envergonhado.


ego