sexta-feira, 24 de outubro de 2008

O Medo, Marca Registada do Capital

"A obdediência que outrora justificava o temor dos deuses, exigem-na hoje dos povos, com a mesma firmeza, as leis de mercado que substituiram esses deuses."
Raoul Vaneigen

O mundo mercantil capitalista em que vivemos, tem como sustento maior, o sentimento do medo. Sim, o medo. Compra bifidus activus senão ficas a preto e branco sem côr, como no anúncio. Compra este pacote de seguros para todos os riscos pois não se sabe o dia de amanhã, podes ter um acidente, ser apanhado num terramoto, ataque terrorista, morrer de ataque cardíaco. Compra iogurte magro pois podes engordar, ficar desagradável e ninguém gostar de ti. Compra esta roupa da moda pois uma mulher desactualizada não atrai, está desfasada, é de mau gosto. Compra outro par de sapatos pois os que tu tens podem-se estragar.

Em suma, o maior argumento para vender mercadoria, e nisto podem consultar os manuais do marketing, é o de que os produtos satisfazem necessidades. Então como é que a nossa psique reconhece uma necessidade? Através do sentimento do medo. O medo é o sentimento que nos sinaliza os potenciais perigos e potenciais ameaças. O medo nunca é a coisa mesma, mas sim algo que o antecede. O medo vem sempre por antecipação senão não tinha utilidade evolutiva. O medo vem sempre antes do real perigo, e daí o poder incrível que o medo tem, pois não tem fim a nossa imaginação daquilo que é possível acontecer de mal.

Há quem diga que o maior medo de todos é o medo da morte. Sendo assim, vivemos numa sociedade da morte, onde toda a nossa imaginação e ilusão está subordinada ao sentimento do medo de morrer. A verdade é que não é possível vender nada a um homem que não tenha medo da morte. Nem mesmo comida. Para o homem que não teme a morte, toda uma sociedade parece um castelo de cartas ridículo. Não é por acaso que nós modernos temos tanto celeuma com o suicídio e a eutanásia. Lembremo-nos que o que alimenta o comércio é o medo da morte, não a morte em si. O medo é sempre algo que antecede a coisa mesmo. A coisa mesmo, a morte, não serve de muito se queremos prolongar o medo. É sempre preciso deixar com que a morte nunca chegue a vir, mas que ela esteja sempre presente.

"A obsessão da morte, a vontade de abolir a morte através da acumulação, torna-se o motor fundamental da racionalidade da economia política"
Jean Baudrillard

Por isso temos a medicina que em casos determinados nos prolonga a vida até aos 100 anos com a condição de andarmos entubados, comatosos, inúteis, não vivos, mas também não mortos ainda. Assim damos emprego a vendedores de soro, camas, enfermeiros, médicos, farmacêuticos.
O mesmo raciocínio é válido para tudo: o crime dá emprego a polícias, advogados, magistrados e juízes; a pressa dá emprego aos construtores de automóveis, a doença mental dá emprego a psicólogos, psiquiatras, videntes e bruxos; e os desempregados dão emprego a muita gente: todos vivemos bem sobre o mal dos outros.

Os outros, sempre os outros. O maior medo de todos não é a morte. O maior medo de todos é o de ficar sozinho. Quem não tem medo de morrer tem para si assegurado uma companhia no além, ou então sabe para si que ele mesmo não existe separado de nada. As boas companhias não se compram. A vida não se compra, mas pode-se vender pois somos todos necessariamente uns vendidos (o que fazes da vida? sou isto, aquilo, camionista, corretor). O que não se compra é a boa companhia. Só o medo se compra e se vende desmesuradamente.

Fiquem com um "Poema Pouco Original do Medo" de Alexandre O'Neill. (Os Godot têm uma música feita a partir desta bela poesia)

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

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