Vimos no post anterior como Darwin foi recebido de forma ambivalente por Marx e Engels. Se, por um lado, as descobertas de Darwin situam a evolução da espécie humana como o resultado de sucessivas e intermináveis mutações e transformações, que suporta a visão dialéctica marxista da história, por outro lado criticam a visão próxima de Malthus e Hobbes, que vê a evolução como resultado da selecção natural fundada numa luta pela sobrevivência através da competitividade egoísta.
Engels é aliás bastante preciso sobre esta última questão nas cartas a Pyotr: "Da doutrina Darwiniana aceito a teoria da evolução, mas o método de prova de Darwin (luta pela sobrevivência, selecção natural), considero-a apenas uma primeira expressão imperfeita e provisória de um facto recentemente descoberto. (...) A interacção de corpos na natureza - animados e inanimados - inclui tanto harmonia como colisão, disputa e cooperação.
As pertinentes observações de Engels encontraram eco nas descobertas posteriores do biólogo russo Constantin Merezhkovsky que introduziu à 100 anos, em 1909, o conceito de simbiogénese que é definido como a origem de organismos pela combinação ou associação
de dois ou vários seres através de processos simbióticos. A simbiogénese é um mecanismo evolutivo e simbiose o veículo através do qual esse mecanismo ocorre.
As nossas células, por exemplo, são um exemplo de simbiogénese: todas as células animais contém mitocôndrias, que são o que produz energia para os nossos organismos. A mitocôndria é abastecida pela célula que a hospeda por substâncias orgânicas como oxigénio e glicose, as quais processa e converte em energia sob a forma de ATP que devolve para a célula hospedeira. Acontece que, originariamente, as mitocôndrias existiam isoladas foram das células que nós conhecemos e de que somos feitos. Através deste casamento feliz, pôde-se desenvolver toda a vida animal como a conhecemos.
Se Merezhkovsky a princípio se opunha à selecção natural de Darwin, actualmente aquilo que se chama de Neo-Darwinismo faz a síntese entre estas duas perspectivas. Assim, o motor da evolução da história natural seriam estas duas "forças" que se complementam: uma competitiva e outra cooperativa. Serão estas duas forças correspondentes às pulsões de vida e de morte de Freud? Teriámos por um lado Thanatos, o instinto da vontade de domínio e poder sobre os restantes espécimes em complemento a Eros, a procura do prazer e da profusão da espécie. Aliás, uma das tópicas de Darwin menos conhecidas, é precisamente a noção de selecção sexual, que é um outro mecanismo à parte em conjunto com a selecção natural, que explicaria muitos da evolução humana. A selecção sexual, seria o momento menos conhecido de Darwin onde ele é mais "Freudiano".
Depois de vermos tambem a analogia que Deleuze fez entre a selecção natural de Darwin e o princípio da realidade de Freud, poderíamos também associar o princípio do prazer à simbiogénese, normalmente mais ligado a pequenas partículas, e assim estender os conceitos de amor e desejo à matéria ínfima. Poderíamos aplicar o princípio do prazer à associação entre células e respectivas mitocôndrias. Na verdade, na visão evolucionista, o homem perde seu lugar privilegiado no centro do da natureza e da cosmogonia. E isto é um choque para o narcisismo e megalomania do homem, como bem adverte Freud. Isto tem consequências para a visão teocêntrica do universo, segundo a qual o mundo seria feito por um Deus transcendente, figura paterna que teria no Homem o seu "filho preferido".
É claro que muitos indivíduos, povos e culturas não estão ainda, mais de um século depois, preparados para aceitar todas as consequências da teoria da evolução. Ela significa que deixamos de poder dispor de uma mitologia que nos garante uma ideia de Eu fixa e determinada, através de um passado e um futuro bem definidos.
Neste campo, a ideia dos criacionistas é tentar preservar a cosmogonia simpática segundo todos nós viemos de Deus e voltaremos um dia para Deus. O que aqui está em causa é uma visão do ser humano como algo de fixo e imutável. Relaciona-se com uma ideia estável de Eu, que se define por ideias eternas e determinadas. Isto é uma perspectiva perfeitamente racionalista. Aliás, o próprio nome da teoria que oferecem em contraponto com a teoria da evolução, é revelador: Intelligent Design. Design Inteligente. O universo é algo que foi feito de uma forma planeada, pensada, controlada. Assim sendo, não é justo acusar os criacionistas de fanatismo ou algo que se pareça. Pelo contrário, o criacionismo é uma ideologia do mais extremo racionalismo. Encaixa na análise que Zizek faz quando diz que Deus é uma excepção consitutiva, um milagre, que permite com que o resto do mundo seja completamente racional. A teoria da evolução é sim, uma teoria bastante mais poética e milagrosa, como Chestov nos mostra quando, baseando-se nela, uma pedra se pode transformar numa planta, e uma planta num animal e, assim sucessivamente, tudo é possível.
Teilhard Chardin viu na teoria da evolução todo este potencial poético, milagroso e divino. Tentou fazer uma síntese entre o Cristianismo e a teoria da evolução. Para Chardin, se o mundo era concebido como algo fixo, acabado, como um sistema de elementos estáveis
em equilíbrio fechado, o mundo deixa de ser visto como algo estático para ser descrito como uma massa em vias de transformação. O universo é um processo de evolução e vai convergindo, à medida que a evolução avança, para formas cada vez mais organizadas. Teilhard denomina esse fenómeno de Cosmogénese.
É esta teoria da evolução levada às últimas consequências que inaugura a ideia de progresso, e o endeusamento do futuro ou, como diz Deleuze, o tempo deixa de ser curvado por um Deus que o fazia depender do movimento. (...) Tudo aquilo que se move e se altera está no tempo, mas o próprio tempo não se altera, não se move, nem sequer é eterno.
Não será isto a ideia de Chesterton de que trocámos a adoração do passado pelo endeusamento do futuro? Só neste contexto é que se cria o lugar para o surgimento da chamada ficção científica: o romance do futuro. Em vez de as histórias se contarem num "Há muito tempo atrás...", passam a ser contadas na fórmulas "daqui a muitos milhares de anos" Há um artigo de Chesterton, do início do séc. XX, que resume as consequências da teoria da evolução na modernidade. Chama-se The Fear of the Past:
The last few decades have been marked by a special cultivation of the romance of the future. We seem to have made up our minds to misunderstand what has happened; and we turn, with a sort of relief, to stating what will happen- which is (apparently) much easier. The modern man no longer presents the memoirs of his great grandfather; but is engaged in writing a detailed and authoritative biography of his great-grandson. Instead of trembling before the specters of the dead, we shudder abjectly under the shadow of the babe unborn.
(Tradução: As últimas décadas foram marcadas por um especial cultivo do romance do futuro. Parece que nos convencemos a distorcer o que aconteceu; e viramo-nos, com uma espécie de alívio, para dizermos o que vai acontecer - o que é (aparentemente) bastante mais fácil. O homem moderno já não apresenta as memórias dos seus avós; mas está empenhado em escrever uma biografia detalhada e autoritária dos seus netos. Ao invés de tremer face aos espectros dos mortos, temos um medo abjecto da sombra dos bebés por nascer.)
Vale a pena ler aqui o texto completo deste fantástico ensaio de G. K. Chesterton. Termino (re)lembrando as palavras do sociólogo polaco Zygmunt Baumann:
"A modernidade é o que é - uma obsessiva marcha adiante -, não porque queira sempre mais, mas porque nunca consegue o bastante; não porque se torna mais ambiciosa e aventureira, mas porque as suas aventuras são mais amargas e as suas ambições frustradas. (...) Estabelecer uma tarefa impossível não significa amar o futuro mas desvalorizar o presente. O presente está sempre "a querer", o que o torna feio, abominável e insuportável."
Engels é aliás bastante preciso sobre esta última questão nas cartas a Pyotr: "Da doutrina Darwiniana aceito a teoria da evolução, mas o método de prova de Darwin (luta pela sobrevivência, selecção natural), considero-a apenas uma primeira expressão imperfeita e provisória de um facto recentemente descoberto. (...) A interacção de corpos na natureza - animados e inanimados - inclui tanto harmonia como colisão, disputa e cooperação.
As pertinentes observações de Engels encontraram eco nas descobertas posteriores do biólogo russo Constantin Merezhkovsky que introduziu à 100 anos, em 1909, o conceito de simbiogénese que é definido como a origem de organismos pela combinação ou associação
de dois ou vários seres através de processos simbióticos. A simbiogénese é um mecanismo evolutivo e simbiose o veículo através do qual esse mecanismo ocorre.
As nossas células, por exemplo, são um exemplo de simbiogénese: todas as células animais contém mitocôndrias, que são o que produz energia para os nossos organismos. A mitocôndria é abastecida pela célula que a hospeda por substâncias orgânicas como oxigénio e glicose, as quais processa e converte em energia sob a forma de ATP que devolve para a célula hospedeira. Acontece que, originariamente, as mitocôndrias existiam isoladas foram das células que nós conhecemos e de que somos feitos. Através deste casamento feliz, pôde-se desenvolver toda a vida animal como a conhecemos.
Se Merezhkovsky a princípio se opunha à selecção natural de Darwin, actualmente aquilo que se chama de Neo-Darwinismo faz a síntese entre estas duas perspectivas. Assim, o motor da evolução da história natural seriam estas duas "forças" que se complementam: uma competitiva e outra cooperativa. Serão estas duas forças correspondentes às pulsões de vida e de morte de Freud? Teriámos por um lado Thanatos, o instinto da vontade de domínio e poder sobre os restantes espécimes em complemento a Eros, a procura do prazer e da profusão da espécie. Aliás, uma das tópicas de Darwin menos conhecidas, é precisamente a noção de selecção sexual, que é um outro mecanismo à parte em conjunto com a selecção natural, que explicaria muitos da evolução humana. A selecção sexual, seria o momento menos conhecido de Darwin onde ele é mais "Freudiano".
Depois de vermos tambem a analogia que Deleuze fez entre a selecção natural de Darwin e o princípio da realidade de Freud, poderíamos também associar o princípio do prazer à simbiogénese, normalmente mais ligado a pequenas partículas, e assim estender os conceitos de amor e desejo à matéria ínfima. Poderíamos aplicar o princípio do prazer à associação entre células e respectivas mitocôndrias. Na verdade, na visão evolucionista, o homem perde seu lugar privilegiado no centro do da natureza e da cosmogonia. E isto é um choque para o narcisismo e megalomania do homem, como bem adverte Freud. Isto tem consequências para a visão teocêntrica do universo, segundo a qual o mundo seria feito por um Deus transcendente, figura paterna que teria no Homem o seu "filho preferido".
É claro que muitos indivíduos, povos e culturas não estão ainda, mais de um século depois, preparados para aceitar todas as consequências da teoria da evolução. Ela significa que deixamos de poder dispor de uma mitologia que nos garante uma ideia de Eu fixa e determinada, através de um passado e um futuro bem definidos.
Neste campo, a ideia dos criacionistas é tentar preservar a cosmogonia simpática segundo todos nós viemos de Deus e voltaremos um dia para Deus. O que aqui está em causa é uma visão do ser humano como algo de fixo e imutável. Relaciona-se com uma ideia estável de Eu, que se define por ideias eternas e determinadas. Isto é uma perspectiva perfeitamente racionalista. Aliás, o próprio nome da teoria que oferecem em contraponto com a teoria da evolução, é revelador: Intelligent Design. Design Inteligente. O universo é algo que foi feito de uma forma planeada, pensada, controlada. Assim sendo, não é justo acusar os criacionistas de fanatismo ou algo que se pareça. Pelo contrário, o criacionismo é uma ideologia do mais extremo racionalismo. Encaixa na análise que Zizek faz quando diz que Deus é uma excepção consitutiva, um milagre, que permite com que o resto do mundo seja completamente racional. A teoria da evolução é sim, uma teoria bastante mais poética e milagrosa, como Chestov nos mostra quando, baseando-se nela, uma pedra se pode transformar numa planta, e uma planta num animal e, assim sucessivamente, tudo é possível.
Teilhard Chardin viu na teoria da evolução todo este potencial poético, milagroso e divino. Tentou fazer uma síntese entre o Cristianismo e a teoria da evolução. Para Chardin, se o mundo era concebido como algo fixo, acabado, como um sistema de elementos estáveis
em equilíbrio fechado, o mundo deixa de ser visto como algo estático para ser descrito como uma massa em vias de transformação. O universo é um processo de evolução e vai convergindo, à medida que a evolução avança, para formas cada vez mais organizadas. Teilhard denomina esse fenómeno de Cosmogénese.
É esta teoria da evolução levada às últimas consequências que inaugura a ideia de progresso, e o endeusamento do futuro ou, como diz Deleuze, o tempo deixa de ser curvado por um Deus que o fazia depender do movimento. (...) Tudo aquilo que se move e se altera está no tempo, mas o próprio tempo não se altera, não se move, nem sequer é eterno.
Não será isto a ideia de Chesterton de que trocámos a adoração do passado pelo endeusamento do futuro? Só neste contexto é que se cria o lugar para o surgimento da chamada ficção científica: o romance do futuro. Em vez de as histórias se contarem num "Há muito tempo atrás...", passam a ser contadas na fórmulas "daqui a muitos milhares de anos" Há um artigo de Chesterton, do início do séc. XX, que resume as consequências da teoria da evolução na modernidade. Chama-se The Fear of the Past:
The last few decades have been marked by a special cultivation of the romance of the future. We seem to have made up our minds to misunderstand what has happened; and we turn, with a sort of relief, to stating what will happen- which is (apparently) much easier. The modern man no longer presents the memoirs of his great grandfather; but is engaged in writing a detailed and authoritative biography of his great-grandson. Instead of trembling before the specters of the dead, we shudder abjectly under the shadow of the babe unborn.
(Tradução: As últimas décadas foram marcadas por um especial cultivo do romance do futuro. Parece que nos convencemos a distorcer o que aconteceu; e viramo-nos, com uma espécie de alívio, para dizermos o que vai acontecer - o que é (aparentemente) bastante mais fácil. O homem moderno já não apresenta as memórias dos seus avós; mas está empenhado em escrever uma biografia detalhada e autoritária dos seus netos. Ao invés de tremer face aos espectros dos mortos, temos um medo abjecto da sombra dos bebés por nascer.)
Vale a pena ler aqui o texto completo deste fantástico ensaio de G. K. Chesterton. Termino (re)lembrando as palavras do sociólogo polaco Zygmunt Baumann:
"A modernidade é o que é - uma obsessiva marcha adiante -, não porque queira sempre mais, mas porque nunca consegue o bastante; não porque se torna mais ambiciosa e aventureira, mas porque as suas aventuras são mais amargas e as suas ambições frustradas. (...) Estabelecer uma tarefa impossível não significa amar o futuro mas desvalorizar o presente. O presente está sempre "a querer", o que o torna feio, abominável e insuportável."
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