segunda-feira, 5 de abril de 2010

Psicanálise da Pedofilia na Igreja Católica segundo Zizek

As notícias cada vez mais frequentes de casos de pedofilia ocorridos na Igreja Católica, levam-nos a pensar como é possível conjugar a imagem do bom padre pregador da virtude e da renúncia com a imagem do padre pedófilo, predador sexual de crianças.
Como sempre, a psicanálise explica. Partilho aqui alguns trechos do artigo de Slavoj Zizek "A sedução do catolicismo":

" (...) Em "A Noviça Rebelde", Maria foge da família Von Trapp e volta ao convento, por não saber como lidar com a atração sexual que sente pelo barão Von Trapp. Numa cena memorável, a madre superiora a convoca e a aconselha a voltar à família Von Trapp e tentar resolver sua relação com o barão. Ela dá essa mensagem a Maria numa canção bizarra, "Climb Every Mountain!" [Escale Todas as Montanhas], cujo recado surpreendente é "vá lá, faça! Corra o risco! Faça o que seu coração está pedindo; não deixe que considerações pequenas se interponham em seu caminho!". A força surpreendente dessa cena consiste na manifestação inesperada do desejo, que torna a cena literalmente constrangedora: justamente a pessoa de quem mais se poderia esperar que pregasse a renúncia e a abstenção se mostra agente da fidelidade para com o desejo.

Significativamente, quando "A Noviça Rebelde" foi exibido na Iugoslávia (ainda socialista) no final dos anos 1960, essa cena -os três minutos que dura a canção- foi o único trecho do filme a ter sido censurado. Com isso, o anônimo censor socialista demonstrou sua sensibilidade profunda em relação ao poder verdadeiramente perigoso da ideologia católica: longe de ser uma religião do sacrifício, da renúncia aos prazeres terrenos, o cristianismo oferece um estratagema tortuoso para que possamos realizar nossos desejos sem precisarmos pagar o preço por eles, para desfrutarmos a vida sem o medo da decadência e da dor debilitante que nos aguardam ao final do dia. Assim, existe um elemento de verdade em uma piada sobre a oração ideal que uma garota cristã faz à Virgem Maria: "Vós que concebeste sem pecar, permita que eu peque sem precisar conceber!". No funcionamento perverso do cristianismo, a religião é evocada como salvaguarda que nos permite gozar a vida com impunidade.

(...)

O que, então, nos permite concluir que esses crimes e obscenidades sexuais integram a própria identidade da igreja enquanto instituição? Não os atos em si, mas a maneira como a igreja reage quando eles vêm à tona: uma atitude defensiva, brigando por cada milímetro que é obrigada a conceder, reduzindo as acusações ao fomento de escândalos, a propaganda anticatólica, fazendo todo o possível para minimizar e isolá-los, oferecendo reconhecimentos condicionais ("se algum crime de fato foi cometido, então, é claro, a igreja o condena"). Fazendo a alegação absurda de que deve se permitir que a igreja cuide dos problemas à sua própria maneira, oferecendo soluções burocráticas "elegantes" que poupam a todos (os responsáveis pelos abusos recebem licença médica ou são afastados como parte de uma reorganização administrativa "normal"). Assim, quando representantes da igreja insistem que esses casos, por deploráveis sejam, são parte do problema interno da igreja, manifestando grande relutância em colaborar com as investigações policiais, eles têm razão, de certa forma: a pedofilia de padres católicos não é algo que diz respeito apenas às pessoas envolvidas, que, por razões acidentais de uma história pessoal que não guarda relação com a Igreja Católica como tal, optaram pela profissão de padre. É um fenômeno que concerne à Igreja Católica ela própria, que é inscrito no próprio funcionamento da igreja como instituição sociosimbólica. Não diz respeito ao inconsciente "particular" dos indivíduos, mas ao "inconsciente" da própria instituição. Não é algo que acontece porque a instituição, para sobreviver, seja obrigada a adaptar-se à realidade patológica da vida da libido, mas algo de que a própria instituição necessita para poder se reproduzir.Em outras palavras, o que acontece não é apenas que, por razões conformistas, a igreja tente abafar os escândalos pedofílicos embaraçosos: ao defender-se, a igreja defende seu segredo obsceno e mais interno. O que isso quer dizer é que identificar-se com esse lado oculto é um elemento-chave da própria identidade de um sacerdote cristão. Se o padre denunciar esses escândalos seriamente (não apenas da boca para fora), ele estará se excluindo da comunidade eclesiástica. Deixará de ser "um de nós", exatamente como um cidadão de uma cidade do sul dos Estados Unidos, na década de 1920, se denunciasse a Ku Klux Klan à polícia, se excluía de sua comunidade, ou seja, traía sua solidariedade fundamental. Essa é também a razão pela qual não se podem explicar esses escândalos sexuais como manipulação dos adversários do celibato, que querem comprovar que, se os desejos sexuais dos padres não encontrarem via de expressão autorizada, terão que explodir de maneira patológica. Autorizar os padres católicos a se casarem não resolveria nada: não teríamos padres que fazem seu trabalho sem molestar meninos, já que a pedofilia é gerada pela instituição católica do sacerdócio como sua "transgressão inerente", seu complemento secreto e obsceno.

Consequentemente, a resposta à relutância da igreja não deve ser apenas a de que estamos lidando com os casos criminosos e que, se a Igreja não participar plenamente da investigação, será vista como cúmplice no crime; e, ademais, que a igreja "em si", como instituição, deve ser investigada para a averiguação da maneira como ela sistematicamente cria condições para tais crimes. A alegação de que se deve deixar que a igreja cuide sozinha dos crimes de pedofilia cometidos por seus membros não é problemática apenas desde o ponto de vista puramente legal, já que reivindica para a igreja uma espécie de direito extraterritorial mesmo para os crimes comuns, que se enquadram no direito criminal público. Mais ainda, o que a igreja deve fazer, se ela quiser de fato combater seriamente a pedofilia em seu interior, é não apenas dar à polícia liberdade plena para interrogar seus membros e colaborar plenamente com as investigações mas também encarar seriamente a questão de sua própria responsabilidade, enquanto instituição, nesses crimes. É assim que a própria igreja precisa enfrentar o problema.

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