Parte 1
"Nietzsche disse que uma filosofia é sempre a biografia do filósofo. Talvez uma biografia do filósofo feita pelo próprio filósofo seja um pouco de filosofia. Assim, vou contar-vos nove histórias da minha vida privada, com a sua moral filosófica. A primeira história é a história do pai e da mãe.
Meu pai era formado na École Normale Superieure e professor de matemática. Minha mãe era formada na École Normale Superieure e professora de literatura. Eu sou formado na École Normale Superieure e professor, professor de quê... filosofia. Quer isso dizer, provavelmente, a única coisa possível de assumir dupla filiação e de circular livremente entre a maternidade literária e a paternidade matemática. Isto é em si uma lição de filosofia: a linguagem da filosofia constrói sempre o seu próprio espaço entre o matema e o poema, no fim de contas entre a mãe e o pai.
Alguém viu isso muito claramente: o meu colega do Collège de France, o filósofo analítico francês Jacques Bouveresse. Num livro recente em que ele faz o horror de falar de mim, compara-me a um coelho de cinco patas e diz concretamente: "Este coelho de cinco patas que é o Alan Badiou, corre a toda a velocidade na direcção do formalismo matemático, e depois, de repente, numa mudança incompreensível, dá uns passos atrás e corre na mesma velocidade atirando-se para a literatura." Bem, sim, é isso que dá um pai e uma mãe tão bem distribuídos: transformamo-nos num coelho.
Agora a segunda história: sobre mãe e filosofia.
Minha mãe era muito velha e meu pai não estava em Paris. Levava-a a comer num restaurante. Ela dizia-me nessas ocasiões tudo o que nunca me havia dito. Era a expressão final de ternura, tão comovente, que se tem com pais muito idosos. Uma noite contou-me que, antes de conhecer meu pai, quando estava a dar aulas na Argélia, teve uma paixão, uma paixão gigantesca, uma paixão voraz, por um professor de filosofia. Esta história é absolutamente autêntica. Eu ouvi, obviamente, na posição que se pode imaginar, e disse para mim mesmo: bem, foi isso, não fiz mais nada senão cumprir o desejo da minha mãe que o professor argelino de filosofia havia negado. Ele havia ficado com outra pessoa e eu fiz o que pude para ser a consolação da dor terrível da minha mãe que havia subsistido no seu interior até aos 81 anos.
A consequência que daqui retiro para a filosofia é, contrariamente à afirmação habitual segundo a qual "o fim da metafísica" está a ser cumprido e tudo isso, precisamente a filosofia não pode ter um fim, porque está assombrada, no seu interior, pela necessidade de dar mais um passo dentro de um problema que já existe. E eu acredito que é essa a sua natureza. A natureza da filosofia é que algo lhe está sendo eternamente deixado. Ela é responsável por esse legado. Estamos sempre a tratar do legado em si, dando sempre mais um passo na determinação do que lhe foi assim deixado. Eu próprio, da forma mais inconsciente, nunca fiz outra coisa enquanto filósofo senão responder a um apelo de que nunca tive conhecimento.
(...)
A quarta história é sobre amor e religião.
Antes de vir para Paris, vivia numa província. Sou um provinciano que veio para Paris um pouco tarde. E um dos aspectos que caracterizava a minha juventude provinciana é que a maioria das raparigas eram ainda educadas pela religião. Estas raparigas ainda eram guardadas e reservadas para um destino interessante, o que proporcionava uma figura importante à parada masculina: as diferentes maneiras de brilhar face a estas raparigas ainda piedosas, sendo a principal a de refutar a existência de Deus. Este era um importante exercício de sedução, pois não só era uma transgressão, mas também era brilhante do ponto de vista retórico quando se tinha os meios para o fazer.
Antes de conquistar as suas virtudes, as almas tinham de ser resgatadas para fora da Igreja. Qual dos dois era pior, isso cabe aos padres decidir. Mas fora disto vem a ideia que eu tinha muito cedo, que a mais argumentativa e a mais abstracta filosofia também constitui uma sedução. Uma sedução cuja base é sexual, não haja dúvidas sobre isso. É claro que a filosofia sempre argumentou contra a sedução das imagens e permaneço platónico nesse ponto. Mas também argumenta de forma a seduzir. Podemos assim compreender a função socrática da corrupção da juventude. Corromper a juventude significa ser, de forma sedutora, hostil ao regime normal de sedução. Mantenho e repito que o destino da filosofia é corromper a juventude, ensinar que a as seduções imediatas têm pouco valor, mas também que existe uma sedução superior. No final de contas, o jovem que consegue refutar a existência de Deus é mais sedutor do que aquele que apenas se propõe à rapariga. É um jogo de ténis. É uma boa razão para se tornar filósofo.
Isto é aquilo em que se tornou o lugar da questão do amor, como questão chave da própria filosofia, exactamente no sentido que já tinha para Platão em Symposium. A questão do amor está necessariamente no coração da filosofia, porque governa a questão do seu poder, a questão de como é que esta se endereça ao seu público, a questão da sua força de sedução. Neste ponto, creio que segui uma direcção muito difícil de Sócrates: "aquele que segue o caminho da revelação total deve começar muito novo a deixar-se levar pela beleza dos corpos".
A quinta história é marxista.
Naturalmente, a tradição da minha família era de esquerda. Meu pai legou-me duas imagens: a imagem do resistente anti-nazi durante a guerra, e depois a imagem do militante socialista no poder, pois ele foi presidente da câmara de uma grande cidade francesa, Toulouse, durante treze anos. A minha história é a história de uma ruptura com esta espécie de esquerda oficial.
Há dois períodos na história da minha ruptura com a esqueda oficial. A última, bem conhecida é o Maio de 68 e a sua continuação. A outra, menos conhecida, mais secreta e então muito mais activa. Em 1960 havia uma greve geral na Bélgica. Não vou entrar em detalhes. Fui enviado para cobrir esta greve como jornalista - fui várias vezes jornalista, escrevi, parece-me, centenas de artigos, talvez milhares. Conheci mineiros em greve. Haviam reorganizado toda a vida social do país, através da construção de um novo tipo de legitimidade popular. Emitiram até uma moeda nova. Assisti às suas assembleias e falei com eles. E daí em diante fiquei convencido, até ao dia em que hoje vos falo, que a filosofia está desse lado. "Desse lado" não é uma determinação social. Signigica: do lado do que é aí falado ou pronunciado, do lado dessa obscura parte da humanidade comum. Do lado da igualdade.
A máxima abstracta da filosofia é, necessariamente, a absoluta igualdade. Depois da minha experiência da greve dos mineiros da Bélgica, dei uma ordem filosófica a mim mesmo: "transforma a noção de verdade de tal maneira, que obedeça à máxima equalitária". É por isso que dou á verdade três atributos:
1) Depende de uma irupção, e não de uma estrutura. Qualquer verdade é nova, esta será a doutrina do evento.
2) Toda a verdade é universal, num sentido radical. a igualdade anónima-para-todos, a pureza-para-todos, constitui-a no seu ser, e esta será sua generalidade.
3) A verdade constitui o seu sujeito, e não o contrário. Este será o seu lado militante.
Tudo isso, numa total obscuridade, estava em acção quando conheci em 1960, os mineiros belgas.
(...)
A oitava história é uma história formal, ou uma história acerca de formas
(...) Há uma ligação intíma entre filosofia e matemática (uma ligação fortemente focada por Platão). Se os conceitos filosóficos são afinal, as formas dos conceitos da verdade, então este devem suportar a prova da sua formalização. Qualquer que seja esta prova. Todos os grandes filósofos submeteram o conceito a uma esmagadora e especulativa formalização. Penso que é por isso que a matemática permaneceu uma paixão para mim. Eu escrutino precisamente isto - na matemática: O que é o pensamento capaz, quando ele se dedica à pura forma? à literalidade da forma? E a conclusão que progressivamente retiro é que, o que ele é capaz, quando se ordena como pura forma, é pensar o ser como tal, o ser como ser. Daí resulta minha fórmula provocante segundo a qual a ontologia efectiva nada mais é do que matemática constituída. O que, obviamente, aos olhos do psicanalista, significa meu desejo de aí apenas sublimar a imagem do meu pai matemático.
A última história, a história número nove, é sobre os meus mestres.
(...) Nos anos decisivos da minha educação, tive três mestres: Sartre, Lacan e Althusser. Não foram mestres da mesma coisa.
O que Sartre me ensinou foi, simplesmente, o existencialismo. Mas o que significa o existencialismo? Significa que deve haver uma ligação entre o conceito, por um lado, e por outro deve haver a agência existencial da escolha, a agência da decisão vital. A convicção de que o conceito filosófico não vale uma hora de trabalho se, seja por mediações de grande complexidade, não reverberar, clarificar e ordenar a agência da escolha, da decisão vital. E nesse sentido, o conceito deve ser, também e sempre, um assunto da existência. Isto foi o que Sartre me ensinou.
Lacan ensinou-me a conexão, a ligação necessária entre uma teoria dos sujeitos e uma teoria das formas. Ele ensinou-me como e porque é que o próprio pensamento dos sujeitos, que tão frequentemente foi contraposto à teoria das formas, era na realidade apenas intelegível no quadro desta teoria. Ensinou-me que o sujeito era uma questão que não é de todo de um carácter psicológico, mas sim uma questão axiomática e fomal. Mais do que qualquer outra!
Althusser ensinou-me duas coisas: que não há objecto próprio da filosofia - isto era uma das suas grandes teses - mas que há orientações do pensamento, linhas de separação e, como Kant já havia dito, uma espécie de luta perpétua, uma luta que é sempre recomeçada de novo, em novas condições. Ele ensinou-me, consequentemente, o sentido de delimitação, do que se pode chamar delimitação. Em particular a convicção de que a filosofia não é um vago discurso da totalidade ou interpretação geral daquilo que é. Que a filosofia deve ser delimitada, que deve ser separada daquilo que não é filosofia. (...) No final, consegui conservar todos os meus mestres. Mantive Sartre apesar do desrespeito de que foi alvo durante muito tempo. Mantive Lacan apesar do que realmente deve ser chamado como sendo o carácter terrível dos seus discípulos. E mantive Althusser apesar das substanciais divergências políticas que nos opuseram, começando no Maio de 68. (...)
Manteho hoje que em filosofia os mestres são necessários; mantenho uma constitutiva hostilidade contra a tendência para a profissionalização democrática da filosofia e ao imperativo dominante hoje em dia e que humilha a juventude: "Sejam pequenos e trabalhem como equipa". Diria também que os mestres devem ser combinados e ultrapassados mas, afinal, é sempre desastroso negá-los.
(...) "Habitarei o meu nome": isto é precisamente o que a filosofia tenta tornar possível a todos e a cada um. Ou antes, a filosofia procura as condições formais, a possibilidade de cada um e de todos, de habitar o seu nome, de estar simplesmente aí, reconhecido por todos como aquele que habita o seu nome. E quem, desta forma, ao habitar o seu nome, é igual a qualquer outro.
É por isto que mobilizamos tantos recursos. E é também para isso que a nossa monótona biografia pode ser usada: para constantemente procurar de novo as condições pelas quais o próprio nome de cada um pode ser habitado.
Meu pai era formado na École Normale Superieure e professor de matemática. Minha mãe era formada na École Normale Superieure e professora de literatura. Eu sou formado na École Normale Superieure e professor, professor de quê... filosofia. Quer isso dizer, provavelmente, a única coisa possível de assumir dupla filiação e de circular livremente entre a maternidade literária e a paternidade matemática. Isto é em si uma lição de filosofia: a linguagem da filosofia constrói sempre o seu próprio espaço entre o matema e o poema, no fim de contas entre a mãe e o pai.
Alguém viu isso muito claramente: o meu colega do Collège de France, o filósofo analítico francês Jacques Bouveresse. Num livro recente em que ele faz o horror de falar de mim, compara-me a um coelho de cinco patas e diz concretamente: "Este coelho de cinco patas que é o Alan Badiou, corre a toda a velocidade na direcção do formalismo matemático, e depois, de repente, numa mudança incompreensível, dá uns passos atrás e corre na mesma velocidade atirando-se para a literatura." Bem, sim, é isso que dá um pai e uma mãe tão bem distribuídos: transformamo-nos num coelho.
Agora a segunda história: sobre mãe e filosofia.
Minha mãe era muito velha e meu pai não estava em Paris. Levava-a a comer num restaurante. Ela dizia-me nessas ocasiões tudo o que nunca me havia dito. Era a expressão final de ternura, tão comovente, que se tem com pais muito idosos. Uma noite contou-me que, antes de conhecer meu pai, quando estava a dar aulas na Argélia, teve uma paixão, uma paixão gigantesca, uma paixão voraz, por um professor de filosofia. Esta história é absolutamente autêntica. Eu ouvi, obviamente, na posição que se pode imaginar, e disse para mim mesmo: bem, foi isso, não fiz mais nada senão cumprir o desejo da minha mãe que o professor argelino de filosofia havia negado. Ele havia ficado com outra pessoa e eu fiz o que pude para ser a consolação da dor terrível da minha mãe que havia subsistido no seu interior até aos 81 anos.
A consequência que daqui retiro para a filosofia é, contrariamente à afirmação habitual segundo a qual "o fim da metafísica" está a ser cumprido e tudo isso, precisamente a filosofia não pode ter um fim, porque está assombrada, no seu interior, pela necessidade de dar mais um passo dentro de um problema que já existe. E eu acredito que é essa a sua natureza. A natureza da filosofia é que algo lhe está sendo eternamente deixado. Ela é responsável por esse legado. Estamos sempre a tratar do legado em si, dando sempre mais um passo na determinação do que lhe foi assim deixado. Eu próprio, da forma mais inconsciente, nunca fiz outra coisa enquanto filósofo senão responder a um apelo de que nunca tive conhecimento.
(...)
A quarta história é sobre amor e religião.
Antes de vir para Paris, vivia numa província. Sou um provinciano que veio para Paris um pouco tarde. E um dos aspectos que caracterizava a minha juventude provinciana é que a maioria das raparigas eram ainda educadas pela religião. Estas raparigas ainda eram guardadas e reservadas para um destino interessante, o que proporcionava uma figura importante à parada masculina: as diferentes maneiras de brilhar face a estas raparigas ainda piedosas, sendo a principal a de refutar a existência de Deus. Este era um importante exercício de sedução, pois não só era uma transgressão, mas também era brilhante do ponto de vista retórico quando se tinha os meios para o fazer.
Antes de conquistar as suas virtudes, as almas tinham de ser resgatadas para fora da Igreja. Qual dos dois era pior, isso cabe aos padres decidir. Mas fora disto vem a ideia que eu tinha muito cedo, que a mais argumentativa e a mais abstracta filosofia também constitui uma sedução. Uma sedução cuja base é sexual, não haja dúvidas sobre isso. É claro que a filosofia sempre argumentou contra a sedução das imagens e permaneço platónico nesse ponto. Mas também argumenta de forma a seduzir. Podemos assim compreender a função socrática da corrupção da juventude. Corromper a juventude significa ser, de forma sedutora, hostil ao regime normal de sedução. Mantenho e repito que o destino da filosofia é corromper a juventude, ensinar que a as seduções imediatas têm pouco valor, mas também que existe uma sedução superior. No final de contas, o jovem que consegue refutar a existência de Deus é mais sedutor do que aquele que apenas se propõe à rapariga. É um jogo de ténis. É uma boa razão para se tornar filósofo.
Isto é aquilo em que se tornou o lugar da questão do amor, como questão chave da própria filosofia, exactamente no sentido que já tinha para Platão em Symposium. A questão do amor está necessariamente no coração da filosofia, porque governa a questão do seu poder, a questão de como é que esta se endereça ao seu público, a questão da sua força de sedução. Neste ponto, creio que segui uma direcção muito difícil de Sócrates: "aquele que segue o caminho da revelação total deve começar muito novo a deixar-se levar pela beleza dos corpos".
A quinta história é marxista.
Naturalmente, a tradição da minha família era de esquerda. Meu pai legou-me duas imagens: a imagem do resistente anti-nazi durante a guerra, e depois a imagem do militante socialista no poder, pois ele foi presidente da câmara de uma grande cidade francesa, Toulouse, durante treze anos. A minha história é a história de uma ruptura com esta espécie de esquerda oficial.
Há dois períodos na história da minha ruptura com a esqueda oficial. A última, bem conhecida é o Maio de 68 e a sua continuação. A outra, menos conhecida, mais secreta e então muito mais activa. Em 1960 havia uma greve geral na Bélgica. Não vou entrar em detalhes. Fui enviado para cobrir esta greve como jornalista - fui várias vezes jornalista, escrevi, parece-me, centenas de artigos, talvez milhares. Conheci mineiros em greve. Haviam reorganizado toda a vida social do país, através da construção de um novo tipo de legitimidade popular. Emitiram até uma moeda nova. Assisti às suas assembleias e falei com eles. E daí em diante fiquei convencido, até ao dia em que hoje vos falo, que a filosofia está desse lado. "Desse lado" não é uma determinação social. Signigica: do lado do que é aí falado ou pronunciado, do lado dessa obscura parte da humanidade comum. Do lado da igualdade.
A máxima abstracta da filosofia é, necessariamente, a absoluta igualdade. Depois da minha experiência da greve dos mineiros da Bélgica, dei uma ordem filosófica a mim mesmo: "transforma a noção de verdade de tal maneira, que obedeça à máxima equalitária". É por isso que dou á verdade três atributos:
1) Depende de uma irupção, e não de uma estrutura. Qualquer verdade é nova, esta será a doutrina do evento.
2) Toda a verdade é universal, num sentido radical. a igualdade anónima-para-todos, a pureza-para-todos, constitui-a no seu ser, e esta será sua generalidade.
3) A verdade constitui o seu sujeito, e não o contrário. Este será o seu lado militante.
Tudo isso, numa total obscuridade, estava em acção quando conheci em 1960, os mineiros belgas.
(...)
A oitava história é uma história formal, ou uma história acerca de formas
(...) Há uma ligação intíma entre filosofia e matemática (uma ligação fortemente focada por Platão). Se os conceitos filosóficos são afinal, as formas dos conceitos da verdade, então este devem suportar a prova da sua formalização. Qualquer que seja esta prova. Todos os grandes filósofos submeteram o conceito a uma esmagadora e especulativa formalização. Penso que é por isso que a matemática permaneceu uma paixão para mim. Eu escrutino precisamente isto - na matemática: O que é o pensamento capaz, quando ele se dedica à pura forma? à literalidade da forma? E a conclusão que progressivamente retiro é que, o que ele é capaz, quando se ordena como pura forma, é pensar o ser como tal, o ser como ser. Daí resulta minha fórmula provocante segundo a qual a ontologia efectiva nada mais é do que matemática constituída. O que, obviamente, aos olhos do psicanalista, significa meu desejo de aí apenas sublimar a imagem do meu pai matemático.
A última história, a história número nove, é sobre os meus mestres.
(...) Nos anos decisivos da minha educação, tive três mestres: Sartre, Lacan e Althusser. Não foram mestres da mesma coisa.
O que Sartre me ensinou foi, simplesmente, o existencialismo. Mas o que significa o existencialismo? Significa que deve haver uma ligação entre o conceito, por um lado, e por outro deve haver a agência existencial da escolha, a agência da decisão vital. A convicção de que o conceito filosófico não vale uma hora de trabalho se, seja por mediações de grande complexidade, não reverberar, clarificar e ordenar a agência da escolha, da decisão vital. E nesse sentido, o conceito deve ser, também e sempre, um assunto da existência. Isto foi o que Sartre me ensinou.
Lacan ensinou-me a conexão, a ligação necessária entre uma teoria dos sujeitos e uma teoria das formas. Ele ensinou-me como e porque é que o próprio pensamento dos sujeitos, que tão frequentemente foi contraposto à teoria das formas, era na realidade apenas intelegível no quadro desta teoria. Ensinou-me que o sujeito era uma questão que não é de todo de um carácter psicológico, mas sim uma questão axiomática e fomal. Mais do que qualquer outra!
Althusser ensinou-me duas coisas: que não há objecto próprio da filosofia - isto era uma das suas grandes teses - mas que há orientações do pensamento, linhas de separação e, como Kant já havia dito, uma espécie de luta perpétua, uma luta que é sempre recomeçada de novo, em novas condições. Ele ensinou-me, consequentemente, o sentido de delimitação, do que se pode chamar delimitação. Em particular a convicção de que a filosofia não é um vago discurso da totalidade ou interpretação geral daquilo que é. Que a filosofia deve ser delimitada, que deve ser separada daquilo que não é filosofia. (...) No final, consegui conservar todos os meus mestres. Mantive Sartre apesar do desrespeito de que foi alvo durante muito tempo. Mantive Lacan apesar do que realmente deve ser chamado como sendo o carácter terrível dos seus discípulos. E mantive Althusser apesar das substanciais divergências políticas que nos opuseram, começando no Maio de 68. (...)
Manteho hoje que em filosofia os mestres são necessários; mantenho uma constitutiva hostilidade contra a tendência para a profissionalização democrática da filosofia e ao imperativo dominante hoje em dia e que humilha a juventude: "Sejam pequenos e trabalhem como equipa". Diria também que os mestres devem ser combinados e ultrapassados mas, afinal, é sempre desastroso negá-los.
(...) "Habitarei o meu nome": isto é precisamente o que a filosofia tenta tornar possível a todos e a cada um. Ou antes, a filosofia procura as condições formais, a possibilidade de cada um e de todos, de habitar o seu nome, de estar simplesmente aí, reconhecido por todos como aquele que habita o seu nome. E quem, desta forma, ao habitar o seu nome, é igual a qualquer outro.
É por isto que mobilizamos tantos recursos. E é também para isso que a nossa monótona biografia pode ser usada: para constantemente procurar de novo as condições pelas quais o próprio nome de cada um pode ser habitado.
Parte 2