sábado, 24 de janeiro de 2009

"O Presidente Vai Nu": Obama, Moda e Perversão


A visão do espectáculo Obama produzido pela TV deve ser lido como uma cebola: São várias as camadas de sentido que se devem separar até se chegar a um núcleo duro traumático que faz chorar. Aparentemente é um acontecimento político. Sim, trata-se da tomada de posse de um presidente, evidentemente. Mas vendo de mais perto e prestando bem atenção, vemos que talvez isto não seja bem política: fala-se do vestido da mulher do presidente, das roupas das filhas do presidente e do casaco do presidente, e tudo parece um espectáculo de Moda. Depois, mais de perto, vemos os estilistas a falar das roupas ouve-se coisas como: "Vestido amarelo de Michelle reflete o tema da esperança: com cor que foge da tradição, é vista como símbolo da esperança da campanha e da presidência de Obama".

Isto faz lembrar a história Zen de Ch'ing-yuan, que conta que antes antes de começar a instrução olhava para as águas e as montanhas e elas eram apenas águas e montanhas. Depois de começar o caminho da libertação, reparou que as águas não são águas, e que as montanhas não são montanhas. Depois, quando teve o seu satori, momento de iluminação, pode ver finalmente as montanhas como montanhas e as águas como águas.

A estrutura deste conto Zen passa por um caminho que começa pela ausência de sentido inicial, passando por um processo de atribuição de um outro sentido às águas e montanhas, com o retorno ao sem sentido original no final.

O espectáculo Obama, porém, tem um caminho que passa pelo evento inicial carregado de sentido, havendo depois uma fase de liquidação de sentido em que se fala de tudo o que está aparentemente esvaziado de significação política (como roupas e vestidos), para no fim se voltar a atribuir sentido político a elementos que haviam sido usados para mascarar um sentido inicial. Trata-se de um processo de recalcamento de um elemento traumático, tapado com roupas, sendo que o recalcamento falha e as roupas surgem de novo com a carga traumática inicial. A carga política que o fato de Obama assume no fim, é o que se pode então chamar de perversão.

Assim sendo, a política moderna é rigorosamente aquilo que o Presidente veste, ou seja uma perversão. Mas não nos admiremos com isto, uma vez que todos usamos roupas, e a componente social e sexual das roupas que todos compartilhamos, pode ser tratada como uma perversão generalizada e civilizada.

Klossowski em A Moeda Viva pega na lógica de Sade ao explicar que a perversão é "a primeira reacção contra a animalidade pura e logo uma primeira manifestação interpretativa das impulsões elas mesmas (...) O termo perversão refere-se pois à fixação da emoção voluptuosa num estádio prévio ao acto de procriar, enquanto os termos sadianos "paixões simples", combinando-se em "paixões complicadas", designam as diversas artimanhas pelas quais a emoção voluptuosa inicial, na sua capacidade interpretativa, acaba por escolher entre diversas funções orgânicas novos objectos de sensação para os substituir à ùnica função procriativa e assim manter indefinidamente em suspenso esta última."

Não serão estes "novos objectos de sensação" aquilo que se aplica na perfeição ao que se chama de "roupa": algo que é usado para manter em suspenso a função procriativa, substituindo-a por um processo anterior que se fixa no fantasma da satisfação do desejo? Não serão as roupas o símbolo máximo da possibilidade de trocar a emoção voluptuosa por significações e símbolos que valem pelas mesmas? A importância da farda de Obama e do vestido de Michelle na vida pulsional dos povos ganha assim uma luz nova.

Sobre fardas, vale a pena ler também este pequeno excerto dos sonâmbulos de Herman Broch (que acaba de ganhar o prémio de romance mais citado neste blog):
"A verdadeira função do uniforme não é seguramente outra qualquer senão essa mesma: manifestar e estatuir a ordem do mundo, suprimir o vaporoso e movente da vida, da mesma maneira que esconde o vaporoso e a moleza do corpo humano, encobre a roupa de baixo e a própria pele, é por isso que a sentinela no seu posto deve usar luvas brancas. Assim, ao homem que pela manhã se aperta na sua farda até ao último botão é dada como que uma segunda pele mais espessa, e se lhe afigura então reencontrar a sua vida verdadeira e a sua solidez originária.

Obama vem então dar um novo sentido ao belo conto do Rei que vai nu. Obama e Michele, pensando estarem a usar vestidos muito originais e elegantes, convencidos por dois estilistas larápios, exibem-se face aos jornalistas que os cobrem de elogios. Eu porém, sinto-me como a criança que diz "O Presidente vai Nu", na medida em que Obama mostra não uma roupinha bonita, mas sim de forma bastante nua e crua a forma como a política moderna e racional é essencialmente uma perversão e negação da realidade inegável da vida pulsional ambivalente e móvel de nossos corpos.

Lembro ainda um conto Zen acerca de um monge que perguntou a um mestre Zen qual a verdadeira natureza de Buda. Eis que o mestre se levantou e tirou o seu hábito ficando completamente nu. O monge fugiu assustado e o mestre correu atrás dele rindo às gargalhadas.

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