Face ao comentário inteligente e pertinente do Dioniso feito ao post anterior, o que seria um comentário meu de resposta tornou-se um cascata de ideias tal que achei conveniente fazer desaguar num post.
Dioniso, penso que não existe uma verdadeira oposição entre nós, na medida em que concordo absolutamente com última parte do teu comentário, quando referes que a política deve governar o ser humano imperfeito que somos, que precisa de comer e de alguns objectos e instrumentos que o insiram socialmente (totems).
O que eu pretendo com estas pontes e políticas comparadas, não é conquistar o mundo das ideias, mas pelo contrário, mostrar suas circularidades viciosas em torno de questões primárias.
Uma testemunha de Jeová sente as desigualdades sociais da mesma forma que eu e muita gente, somente usamos linguagens diferentes para o expressar.
Nisto sou muito existencial e acredito que nenhum ensinamento entre os homens pode ser passado se não houver uma experiência partilhada comum.
Meu ponto é talvez esse, o de que o verdadeiro confronto, o da luta de classes, é existencial, pessoal, empírico. E o desacordo nas ideias reflecte uma diferença de experiências humanas diversa. Quando duas pessoas passam pela mesma experiência, uma falando chinês e outra inglês, elas vão acabar por se entender. Mas quando duas pessoas, um rico e um pobre, passando naturalmente por experiências diferentes de vida, mesmo que falem os dois português nunca se entenderão.
Na resolução desta dicotomia, a psicanálise para mim é um complemento importantíssimo por uma razão: é dialéctico na medida em que tem a sexualidade como aspecto central, e é a sexualidade o ponto onde se vive de uma forma mais evidente o confronto entre idealismo e materialismo, onde vivemos angústias verdadeiramente universais e universalizáveis.
Freud ao sexualizar as ideias, e ao idealizar o corpo, permitiu o nascimento de uma linguagem que permite abordar as angústias primárias do ser humano, transcendendo a barreira da luta de classes e colocando questões fracturantes.
Vivemos um tempo em que há cada vez mais filhos de pais divorciados. A escolha do parceiro para toda a vida, determinante para a nossa identidade, torna-se uma escolha mercantilizada, em que mudamos de homem ou mulher para satisfazer caprichos de moda abstractos. Basta ver um episódio de Seinfeld e vemos, de uma forma caricaturada, uma Elaine que rejeita homem atrás de homem, um porque usa sempre a mesma camisa, outro porque tem um corte de cabelo esquisito, e outro porque se ri de forma estranha. E as nossas relações com nossos totems dizem a forma como nos organizamos em sociedade. Temos mulheres e homens descartáveis tal como temos lâminas de barbear e máquinas fotográficas descartáveis.
Tudo isto são reflexos do mercado, esse conceito que se tornou místico, máquina inatingível, inumana, inacessível. Já não o encontramos o mercado facilmente, como Jesus o encontrou no templo. Como dizia Foucault, aquilo que outrora foi fortaleza visível da ordem tornou-se agora castelo da nossa consciência.
A política actual, subjugada ao mercado, enquanto elemento de poder separado da experiência humana, torna-se campo de projecção das nossas angústias primárias.
Como abordar a questão da autoridade no mundo burocrático kafkiano? A democracia, paradoxalmente e tragicamente, não é mais do que a legimitação burocrática do poder abstracto e puramente ideal. Tal como no romance de Kafka, nunca chegaremos ao castelo, ficaremos sempre pelo corredor das finanças a lutar com o funcionário.
A política está tão lá longe, no castelo, que só aí paradoxalmente, é que começamos a falar dela em termos religiosos, como o deus inacessível que é antropomorfizado.
É neste sentido que a teologização da política é inevitável.
Não nos admiremos de ver Chavéz a inspirar-se em Jesus nos seus perigosos experimentos políticos, tal como não nos admiremos de ver Deus todo-poderoso ser invocado por Bush, graças a mil e um estudo de mercados e pareceres, traduzidos numa política de extrema "segurança".
Nosso either/or kierkegaardiano vive neste limbo: entre a compulsão para a repetição infinita de um, e a experiência criativa e perigosa de outro.
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3 comentários:
Compreendo a sua análise do "mercado" (Lacan barraria a palavra) como grande e nefasto totem. Tanto maior quanto aparentemente descartou todos os tabus (ouvimos muitas vezes falar na "transparência do mercado", na "amoralidade" do mercado, em suma, numa pureza que faz dele um mero conjunto de forças eficientes sem qualquer contaminação ideológica).
Compreendo também que recorra à sexualidade como uma espécie de mito arquetípico, capaz de desenvolver uma intersubjectividade e de desconstruir a velha dicotomia Idealismo # Materialismo de maneira exemplar (sem efeitos colaterais).
Mas quanto à teologização da política, retorno de neo-teocracias, quero desconfiar da re-sagração do mundo, quero fazê-lo porque amo demasiado o mundo (Dioniso é um nome de guerra, e não sei se estarei à altura dele), a imperfeição do mundo, se quiser.
Receba um abraço
Vejo que o ponto de nossa discórdia reside na re-sacralização ou des-sacralização da política.
Penso a Religião como "religare", como uma religação de tudo e todas as coisas. O pensamento religioso tem essa particularidade de fornecer teleologias do mundo.
Acho que a psicanálise e o marxismo também podem oferecer uma teleologia do mundo. Acho pertinente este tipo de conhecimento hoje em dia. Porquê?
Falaram-me há dias de um conceito de Zigmunt Baumann, autor que conheço mal, que achei bastante interessante. Tem a ver com o chamado conhecimento do sistema interactivo maior. Trata-se da capacidade de olhar para um objecto particular, uma parte constituinte do mundo, e ser capaz de enquadrá-lo com todo o resto, nas multi-relações que um conhecimento estabelece com outros conhecimentos distintos.
Trata-se aqui de um contraponto com a excessiva especialização do conhecimento no mundo de hoje, através com um conhecimento mais eclético e "teleológico".
Parece-me que falta à classe política um pouco desse conhecimento do sistema-interactivo-maior, de uma visão de conjunto, em contra-ponto com uma visão especializada e parcial de partes isoladas, como o funcionário que só sabe fazer uma coisa, mas não sabe qual a sua relação com o resto das coisas. Tem a ver com gestões estéreis de défices e números sem uma visão humana global. É neste ponto que considero útil uma teologia da política, ou uma política teológica.
Devolvo-te o abraço e proponho então a continuação desta conversa de amigos no sentido deleuziano.
Muito interessante a ideia de uma macroscopia que supera os compartimentos estanques da realidade e cria uma verdadeira organização rizomática (Deleuze).
O problema é que o "religare" religioso (ou bélico, por exemplo) inverte o problema. Se por um lado cria essa percepção global benéfica, por outro esquece que a totalidade é feita de particularidades irredutíveis a esse mesmo total.
Repare, esse foi sempre o grande problema dos projectos políticos totalitários, a obsessão teleológica desvalorizou excessivamente a singularidade humana, por isso se permitiam, dentro de uma assentimento geral, sacrificar os críticos que colocavam pedras na engrenagem do sistema.
Bem sei que a equação é difícil (entre a atomização e a totalização social), mas nesta altura da vida prefiro apostar na fragilidade do global para melhor defender o singular. Se é que acontece desta forma.
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