Em Moravagine de Blaise Cendrars:
O amor é uma intoxicação grave, um vício, um vício que se gosta de partilhar, um vício no qual, se um dos comparsas se mostra empenhado, o outro não passa muitas vezes de cúmplice ou vítima ou de possesso. (...) O amor é masoquista. Esses gritos, essas queixas, essas suaves inquietações, esse estado de angústia dos apaixonados, esse estado de expectativa, esse sofrimento latente, subentendido, apenas manifestado, essas mil e uma preocupações acerca do ser amado, essa fugacidade do tempo, esses susceptibilidades, essas alternâncias de humor, essas divagações, essas criancices, essa tortura moral em que a vivacidade e o amor-próprio se encontram em jogo, a honra, a educação, o pudor, esses altos e baixos do tónus nervoso, esses desvarios da imaginação, esse feiticismo, essa precisão cruel dos sentidos que chicoteiam e que rebuscam, essa queda, essa prostração, essa abdicação, esse aviltamento, essa perda e essa recuperação perpétua da personalidade, esses embaraços, essas palavras, essas frases, esse emprego do diminutivo, essa familiariedade, essas excitações nos contactos, essa ternura epiléptica, essas recaídas sucessivas e multiplicadas, essa paixão cada vez mais perturbadora, tempestuosa e progressivamente devastadora até à completa inibição, ao completo aniquilamento da alma, até à atonia dos sentidos, até ao esgotamento do tutuano, ao vazio do cérebro, até à secura do coração, essa necessidade de prostração, de destruição, de mutilação, essa necessidade de efusão, de adoração, de misticismo, essa insaciabilidade que leva a pedir auxílio a hiperirritabilidade das mucosas, às divagações do gosto, às desordens vasomotoras ou periféricas e que apela para o cíume e para a vingança, para os crimes, para as mentiras, para as traições, essa idolatria, essa melancolia incurável, essa profunda miséria moral, essa dúvida definitiva e pungente, esse desespero, todos esses estigmas não constituem porventura os próprios sintomas do amor, segundo os quais se pode diagnosticar e seguidamente traçar com mão firme o quadro clínico do masoquismo?
Mulier tota in utero – dizia Paracelso. É por isso que todas as mulheres são masoquistas. O amor nelas começa pelo rebentar de uma membrana e leva até ao completo despedaçar do ser, no momento do parto. Toda a vida delas é simples sofrimento. O sofrimento ensanguenta-as mensalmente. A mulher encontra-se sob o signo da Lua, esse reflexo, esse astro morto, e é por isso que, quanto mais a mulher dá a vida, mais gera a morte. Mais do que símbolo da geração, a mãe é o símbolo da destruição. E qual é a mãe que não preferiria matar e devorar os filhos, se ela assim tivesse a certeza de reservar para si o macho, de o guardar, de se deixar imbuir por ele, de o absorver por baixo, de o digerir, de o macerar nela, de o deixar reduzido ao estado de feto e de o levar assim toda a vida no seu seio? Porque é precisamente a isso, à absorção, à reabsorção do macho, que leva a essa infinita maquinaria do amor. O amor não tem outro fim e, como o amor é o único móbil da natureza, a única lei do universo é o masoquismo. Destruição e nada – é nisso que se cifra esse derramamento inexaurível dos seres. Um ser vivo nunca se adapta ao seu meio, ou então, ao adaptar-se, morre. A luta pela vida é a luta pela não adaptação. Viver é ser diferente. É por isso que todas as grandes espécies vegetais e zoológicas são monstruosas. E a mesma coisa acontece no aspecto moral. O homem e a mulher não estão feitos para se sentenderem, para se amarem, para se fundirem e confundirem. Pelo contrário, detestam-se e dilaceram-se um ao outro; e se, nesta luta que tem o nome de amor, a mulher passa por ser a eterna vítima, na realidade é o homem que se mata e se torna a matar. Porque o macho é o inimigo, o inimigo desajeitado, desastrado, especializado demais. A mulher é todo-poderosa, encontra-se mais à vontade na vida, tem vários centros erotogénicos, sabe portanto sofrer melhor, tem maior resistência, a sua libido dá-lhe peso, é ela a mais forte. O homem é escravo dela, entrega-se, rebola-se-lhe aos pés, abdica passivamente. Ele padece. A mulher é masoquista. O único princípio de vida é o masoquismo e o masoquismo é um princípio de morte. É por isso que a existência é idiota, imbecil, vã. Não tem nenhuma razão de ser. É por isso que a vida é inútil.
A mulher é maléfica. A história das civilizações mostra-nos os meios postos em acção pelos homens para se defenderem do relaxamento e de efeminação. Artes, religiões, doutrinas, leis, imortalidade são afinal outras tantas armas inventadas pelos machos para resistirem ao prestígio universal da fêmea. Infelizmente, essa vâ tentativa nunca dá nem nunca dará resultado algum, porque a mulher triunfa de todas as abstracções. No decurso das idades, mais tarde ou mais cedo, vemos todas as civilizações cambalearem, desaparecerem, ruírem, caírem no abismo prestando homenagem À fêmea. Raras são as formas de sociedade que conseguiram resistir a esta tendência durante um certo número de séculos, tais como o colégio contemplativo dos brâmanes ou a comunidade categórica dos astecas; as outras, como a dos chineses, só inventaram afinal modos complicados de masturbação e de orações para acalmar o frenesim feminino ou então – é o caso das comunidades cristãs e budistas – tiveram de recorrer à castração, às penitências corporais, aos jejuns, à clausura, à introspecção, à análise psicológica para dar um novo derivativo ao homem. Nenhuma civilização se conseguiu alguma vez esquivar à apologética da mulher, a não ser algumas raras sociedades de jovens guerreiros machos e ardentes, cuja apoteose foi tão rápida como breve – por exemplo as civilizações pederastas de Nínive e de Babilónia -, foram mais consumidoras do que criadoras, desconheceram o menor freio para a sua actividade febril, o menor limite para o seu imenso apetite, o menor marco para as suas necessidades e, por assim dizer, se devoram a si mesmas, desaparecendo sem deixar rasto; é assim que morrem todas as civilizações parasitárias, arrastando um mundo completo atrás de si. Não há um só homem, em cada dez milhões, que escape a esta obsessão da mulher. Se a assassinasse, vibrar-lhe-ia um golpe directo; e o assassinato foi ainda o único meio efizaz que cem centenas de milhares de gerações de machos e milhares e milhares de séculos de civilização humana descobriram para não sofrerem o império da fêmea. Quer isto dizer que a natureza não conheces o sadismo e que a grande lei do universo – criação e destruição – é o masoquismo.