Hoje apresento aqui um álbum dos Supertramp para ouvir em tempos de crise. A capa é inspiradora para os tempos que correm:
Supertamp - Crisis, What Crisis? pode ser sacado aqui.
segunda-feira, 24 de novembro de 2008
domingo, 23 de novembro de 2008
Futebol, Nacão, Einstein e Freud
Hoje, venho aqui falar de futebol, reagindo tardia, mas não menos oportunamente, à estrondosa derrota de Portugal com o Brasil. Tamanha derrota suscitou as mais variadas reacções nos portugueses, pelo que pude observar.
Por um lado, perder por 6-2 é mau. Mas perder com o Brasil é pior. Isto porque o que está em jogo é o chamado orgulho nacionalista. Descontruindo este sentimento de nacionalidade em perigo, no fundo, os brasileiros são tão parecidos connosco que ameaçam a nossa identidade. Quando vemos jogadores como Deco e Pepe a serem tão portugueses como os outros, a cantarem igualmente o hino, a portugalidade está em perigo.
O mesmo raciocínio que Bauman fez em relação aos judeus na Alemanha, pode ser aplicado aqui: os brasileiros naturalizados portugueses não podem ser brasileiros, nem podem ser efectivamente portugueses, por muito que se esforcem. O esforço só denuncia, aliás, o carácter artifical da nação, tornando-os indesejáveis. Vivem em situação de ambivalência. Não podemos chamar-lhes nem amigos, nem inimigos. São os estranhos. Resistem à categorização, minando então as nossas próprias categorias e identidade.
A partir daí, os jogos com o Brasil têm mais importância. No fundo, tudo é uma questão de superioridade e de inferioridade. Trata-se do poder de definir os outros como amigos e inimigos, de se ultrapassar os outros como estranhos, para se poder estabelecer uma troca simbólica. As nações não têm outro sentido que não esse.
Por estas alturas, há também intelectuais que esperam que, no fundo, os portugueses deixem de ligar tanto à bola, argumentando que esse é um tipo de patrotismo menor. Dizem que os portugueses deviam orgulhar-se de outros feitos mais científicos, culturais e artísticos.
Contudo, um tipo de identificação patriótica desse tipo, por muito louvável que seja, não poderá, talvez, ser comparável ao lado mais corporal, competitivo, catártico e selvagem (porque não) que o futebol coloca em jogo. O futebol tem um elemento de tragédia e glória que não é possível menosprezar.
Tal como os desportos em geral, o futebol contém em si o que se poderia chamar lei da vitória, em que é posta em jogo uma luta pela supremacia de uns povos sobre outros. Os nacionalismos, na sua essência mais histórica, podem traduzir-se como uma luta de poderes. Ao constituir-se como grupo homogéneo, é-o na defesa de uma identidade perante outros grupos.
O nacionalismo surgido como necessidade de união perante um mundo hostil é mais forte quando uma nação se sente ameaçada. Tal como um ego é tanto mais egoísta quanto mais se sente ameaçado no seu orgulho e auto-estima.
Se dantes a guerra era o momento em que se poderia ver uma nação realmente unida por uma rede de identificações comuns, que depois experimenta vitórias ou derrotas,
o desporto é dos poucos fenómenos em que se conserva intacta esta lei da vitória. Há uma troca simbólica profunda entre os povos, quando se trata de ver países jogar uns contra os outros.
O advento do desporto moderno não se pode dissociar do advento do estado de direito moderno, que trocou o conflito físico e violento entre os homens, por um confronto regido por leis, o que se pode chamar jogo, e que está na base de qualquer processo civilizacional. O estado de direito não elimina a violência, pois é a violência que suporta esse mesmo estado de direito gerido por leis, em que a violência é neste caso aplicada a quem não respeita as mesmas leis.
O futebol é, em síntese, o retrato perfeito daquilo que é o estado moderno, com o interesse extra de ser ainda possível ver em cena um confronto físico vivo, levando isto à catarse colectiva que todos conhecemos.
Trata-se aqui no fundo de sublimar uma pulsão de morte do ser humano, que se tem demonstrado ao longo da história por intermédio de uma luta de poderes intensa.
Será que podemos, como seres humanos, algum dia ultrapassar este "instinto de competição", necessidade de domínio e poder a que Freud chamou de pulsão de morte?
Sobre isto recomendo a leitura de uma carta fabulosa que Einstein escreveu a Freud, perguntando o seguinte:
"Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra? É do conhecimento geral que, com o progresso da ciência de nossos dias, esse tema adquiriu significação de assunto de vida ou morte para a civilização, tal como a conhecemos; não obstante, apesar de todo o empenho demonstrado, todas as tentativas de o solucionar terminaram em lamentável fracasso."
A restante carta de Einstein, reveladora de um humanismo ímpar por parte do cientista, complexifica já a questão de uma forma bastante interessante. Freud, por sua vez, respondeu à letra num documento fantástico, adiantando a certa altura o seguinte:
"permita-me substituir a palavra ‘poder’ pela palavra mais nua e crua violência’? Atualmente, direito e violência se nos afiguram como antíteses. No entanto, é fácil mostrar que uma se desenvolveu da outra e, se nos reportarmos às origens primeiras e examinarmos como essas coisas se passaram, resolve-se o problema facilmente. (...) É, pois, um princípio geral que os conflitos de interesses entre os homens são resolvidos pelo uso da violência. É isto o que se passa em todo o reino animal, do qual o homem não tem motivo por que se excluir. (...) A violência podia ser derrotada pela união, e o poder daqueles que se uniam representava, agora, a lei, em contraposição à violência do indivíduo só. Vemos, assim, que a lei é a força de uma comunidade. Ainda é violência, pronta a se voltar contra qualquer indivíduo que se lhe oponha; funciona pelos mesmos métodos e persegue os mesmos objetivos. A única diferença real reside no fato de que aquilo que prevalece não é mais a violência de um indivíduo, mas a violência da comunidade."
Assim sendo, a violência torna-se lei, e o processo de civilização não tem outro sentido que o aprofundar da constrição, controlo e educação do nosso corpo sob determinadas formas de gerir o corpo definidas pela sociedade. Comer com as mãos por exemplo não é "civilizado", comer com o auxílio de um instrumento, pelas leis que a comunidade instituíram, já é civilizado. Somos tão mais civilizados quanto mais refinado e obsessivo for o controlo social que exercemos sobre os nossos corpos. Em termos de violência, tudo continua igual, há somente, no máximo, um deslocamento desta violência fundadora da civilização do confronto físico, para o confronto de opinião, de interesse, de lei.
O futebol é paradigma da civilização ocidental moderna na forma como educa, constringe e controla os corpos de uma forma planeada, científica e controlada, preparando-os para a competição entre equipas/comunidades, sendo o jogo de futebol um sistema de confrontos violentos regidos por leis. No futebol, a violência não deixa de existir, mas somente ela pode aí assumir uma forma adequada. O futebol jogado pelo respeito máximo pelas leis pode chegar então a ser um acto moral. Como disse Deleuze em referência a Kant, "a lei define-se (...) como pura forma de universalidade. Ela não nos diz qual o objecto da que a vontade deve perseguir para ser boa, mas qual a forma que deve tomar para ser moral."
quinta-feira, 13 de novembro de 2008
Foreign Movies: Milhares de bons filmes de todo o mundo (à borla)
O Título diz tudo: neste blog encontrarão incontáveis bons filmes prontos para sacar. Tem categorias por realizador e por país. Podem encontrar filmes albaneses, vietnamitas, arménios, italianos, coreanos, franceses, checos, dinamarqueses, canadianos, finlandeses, alemães, indianos, romenos, russos, eslovacos, espanhóis e realizadores como Hitchcock, Tarkovsky, Bertolucci, David Cronenberg, David Lynch, Kusturica, Fellini, Francis Ford Coppola, Truffaut, Gus Van Sant, Ingmar Bergman, Godard, Ki-duk Kim, Lars von Trier, Scorsese, Almodóvar, Tarantino, Kubrick, Tim Burton, Wim Wenders, Wong Kar Wai, Woody Allen e muitos muitos mais. Tudo para download. À Borla.
quarta-feira, 12 de novembro de 2008
terça-feira, 11 de novembro de 2008
Royale Rendezvous: Guitarradas, Rock e Coboiada
Hoje venho aqui fazer o papel de divulgador de música portuguesa. Já há tempos tinha falado dos Godot. Este último sábado eles voltaram ao Pinguim no Porto, mas desta vez deram um concerto mais curto pois a seguir a eles vieram os Royale Rendezvous. Estes três rapazes vieram de Leiria para nos mostrar a sua música que eu diria que está algures (assim de repente) entre os Dead Combo, Dr Frankenstein e uma banda sonora de filmes do Tarantino, formando uma espécie de rock de cóbois. Tive a oportunidade de estar com dois deles no fim, o Telmo e o António, com quem mantive conversas filosóficas de alto nível com o patrocínio da Super-Bock. É tudo gente boa, que gosta de rock, filosofia de taberna, coboiada e guitarradas, sendo que ainda fomos acabar a noite a ouvir Iggy Pop, Joy Division e Doors. Ide ao Myspace ouvir as músicas, ou façam melhor e vejam ao vivo. Recomendo.
quinta-feira, 6 de novembro de 2008
Obama, Pós-Modernidade e Walt Whitman
Os Estados Unidos da América têm um novo presidente, eleito com uma participação nunca antes vista desde 1908, ou seja há cem anos, que os americanos não votavam tanto. 66%, ou seja dois terços dos americanos, foram votar.
Quem é este homem, Barack Obama, que um dia se emocionou ao compreender as suas raízes africanas no Quénia, terra do pai que nunca conheceu verdadeiramente? Quem é este homem que que diz ter como referências literárias e filosóficas, entre outros, Shakespeare, Hemingway, Mark Twain, John Steinbeck e Nietzsche?
Obama nasceu no Hawai, filho de negro queniano e mulher branca do Kansas, viveu com padrasto muçulmano na Indonésia, voltou para os EUA e mais tarde foi para a urbe de Chicago. Nos tempos de liceu, diz Obama que "tinha amigos brancos e amigos negros. Ia às festas de uns e dos outros. Falava "à branco" ou "à preto", integrava-se em ambas as realidades" mas angustiva-se por não pertencer verdadeiramente a nenhuma delas. Tentou misturá-las, mas não conseguiu.
Kurt Lewin diz-nos que "é característico dos indivíduos que cruzam o limite entre grupos sociais não estarem seguros de pertencer ao grupo no qual estão a entrar nem também àquele de que estão a sair... a causa da dificuldade não é pertencer a muitos grupos, mas a incerteza quanto a pertencer a qualquer um deles.
Esta ambivalência é a condição nata do ser-humano actual pós-moderno. Kurt Lewin é citado por Zygmunt Bauman em "Modernidade e Ambivalência" que nos fala daquilo que é e ficou conhecido como Modernidade, um projecto de nova ordem social herdeiro das tradições filosóficas do iluminismo, que apelavam á ascenção da razão à categoria de verdade, na tentativa de renegar as paixões, supertições e crendices humanas, uma tentativa de combater a ambivalência presente no espírito humano.
O que está subjecente a este projecto de ordem social, é esta visão do jardineiro em que, ao definir muito bem como deve ser o jardim, faz surgir as ervas daninhas. As ervas daninhas só existem na medida em que não encaixam no plano do jardineiro. Assim, de certa forma, é o jardineiro que dá origem á erva daninha, e que origina uma luta sem fim para a combater, por causa da divisão que criou.
A pós-modernidade surge como falhanço deste projecto e o ressurgir da ambivalência. Bauman usa o exemplo dos judeus na alemanha como exemplo do primeiro povo que pode experimentar o que mais tarde se tornou universal: somos todos estranhos, por definição deslocados: já não existe uma identidade colectiva nativa natural, as nossas identidades são algo que é preciso construir. E os deslocados deste mundo experimentam portanto, a condição de estranho universal de cada um de nós neste mundo.
Bauman fala-nos dos judeus na Alemanha como o povo nómada que, nos anos anteriores à segunda grande guerra, foram convidados a aderir ao projecto de assimilação alemão, ou seja a tornarem-se alemães, a abdicar dos privilégios que tinham anteriormente em que vivam em comunidades auto-geridas e com leis próprias dentro do território alemão. Uma geração de judeus como Marx, Freud, Kafka, etc, viveram neste espaço intermédio de não poder voltar para atrás para aquilo que eram os seus antepassados judeus, nem ter a possibilidade de poderem ser verdadeiramente alemães por muito que se esforçassem. Aliás, quanto mais os judeus se esforçavam por serem alemães, mais óbvio era o seu fracasso pois, os alemães tinham medo desta noção de "germanidade" artificial, que pode ser adquirida por esforço. Os alemães posteriormente enfatizavam o "ser alemão" como algo racial, natural, fruto dos genes, nativo. Esta defesa, produto ainda da visão jardineira racional moderna, fracassou com Hitler no expoente desta derrota. Depois, finalmente quando os judeus se estabeleceram, já se encontraram num mundo em que não havia jardineiro para os admitir como plantas autorizadas, num mundo multiculturalista e globalizadao em que os projectos nacionalistas europeus falharam e já não há verdades impostas e absolutas (que era o que antes legitimava as identidades individuais)
Onde é que isto nos leva a Obama? Dizem os especialistas que Obama subiu ao poder através de 98% do voto dos afro-americanos, 68% por cento do voto hispânico e 63% dos votos dos asiáticos. Foi aliás, assim, que esta eleição se torna histórica, pois finalmente os americanos puderam ver em Obama alguém que carrega o fardo de ser estrangeiro num país onde todos são estrangeiros
E de facto, o que os Estados Unidos da América têm de único o facto de serem o fruto novo advindo do falhanço dos nacionalismos europeus. Os Estados Unidos são o país pós-moderno por excelência, onde não há uma identidade nativa natural propriamente dita mas sim uma mescla de culturas, não há uma identidade natural, mas sim, e sempre, uma identidade a ser construída socialmente por diferenciação individual. Os mais deslocados deste mundo, os emigrantes, os que são filhos de estangeiros em terra estrangeira, são, portanto, os que vivem mais agudamente a ambivalência universal do ser humano.
Reparem num pequeno bocado (exemplificativo) do discurso da vitória de Barack Obama:
"(Esta noite) Foi a resposta dada por jovens e velhos, ricos e pobres, Democratas e Republicanos, negros, brancos, latinos, asiáticos, homossexuais, heterossexuais, deficientes, americanos que enviaram a mensagem ao mundo de que não somos somente um conjunto de indivíduos ou um conjunto de estados vermelhos ou azuis. Nós somos, e sempre seremos, os Estados Unidos da América."
Deleuze dizia que os europeus têm um sentido inato da totalidade orgânica, ou da composição, mas eles precisam adquirir o sentido do fragmento, e apenas o podem fazer através de uma reflexão trágica ou de uma experiência do desastre. Os americanos, pelo contrário, têm um sentido natural do fragmento, e que aquilo que precisam de conquistar é o sentimento da totalidade, da bela composição. (...) Neste ponto de vista, o mim dos anglo-saxónicos, sempre rebentado, fragmentário, relativo, opõe-se ao Eu substancial, total e solipsista dos europeus.
Deleuze diz-nos isto num ensaio sobre Walt Whitman. Este poeta foi o primeiro americano talvez, a sonhar o sonho que Obama tenta agora concretizar, dos Estados Unidos como uma totalidade de fragmentos. Deleuze diz que Whitman introduz previamente a ideia de Todo, invocando um cosmos que nos convida à fusão; numa meditação particularmente convulsiva, diz-se hegeliano, afirma que apenas a América "realiza" Hegel, e institui os direitos primeiros de uma totalidade orgânica.
Termino com um poema de Whitman, poeta das ervas, das pradarias, das uniões indomáveis da natureza, antítese da metáfora do estado nacionalista jardineiro de Bauman, e símbolo de uma universalidade e companheirismo selvagem e fraterno:
Separando a Erva dos Prados
Separando a erva dos prados, aspirando o seu raro aroma,
Dela reclamo a espiritualidade,
Exijo o mais íntimo e abundante companheirismo entre os homens,
Peço que ergam as suas folhas as palavras, actos, seres,
Esses de límpidos ares, rudes, solares, frescos, férteis,
Esses que traçam o seu próprio caminho, erectos e livres
avançando, conduzinho e não conduzidos,
Esses de indomável audácia, de doce e veemente carne sem mácula,
Esses que olham de frente, imperturbáveis, o rosto dos presidentes
e governadores como se dissessem Quem és tu?
Esses de natural paixão, simples, nunca constrangidos, insubmissos,
Esses da América interior
Quem é este homem, Barack Obama, que um dia se emocionou ao compreender as suas raízes africanas no Quénia, terra do pai que nunca conheceu verdadeiramente? Quem é este homem que que diz ter como referências literárias e filosóficas, entre outros, Shakespeare, Hemingway, Mark Twain, John Steinbeck e Nietzsche?
Obama nasceu no Hawai, filho de negro queniano e mulher branca do Kansas, viveu com padrasto muçulmano na Indonésia, voltou para os EUA e mais tarde foi para a urbe de Chicago. Nos tempos de liceu, diz Obama que "tinha amigos brancos e amigos negros. Ia às festas de uns e dos outros. Falava "à branco" ou "à preto", integrava-se em ambas as realidades" mas angustiva-se por não pertencer verdadeiramente a nenhuma delas. Tentou misturá-las, mas não conseguiu.
Kurt Lewin diz-nos que "é característico dos indivíduos que cruzam o limite entre grupos sociais não estarem seguros de pertencer ao grupo no qual estão a entrar nem também àquele de que estão a sair... a causa da dificuldade não é pertencer a muitos grupos, mas a incerteza quanto a pertencer a qualquer um deles.
Esta ambivalência é a condição nata do ser-humano actual pós-moderno. Kurt Lewin é citado por Zygmunt Bauman em "Modernidade e Ambivalência" que nos fala daquilo que é e ficou conhecido como Modernidade, um projecto de nova ordem social herdeiro das tradições filosóficas do iluminismo, que apelavam á ascenção da razão à categoria de verdade, na tentativa de renegar as paixões, supertições e crendices humanas, uma tentativa de combater a ambivalência presente no espírito humano.
O que está subjecente a este projecto de ordem social, é esta visão do jardineiro em que, ao definir muito bem como deve ser o jardim, faz surgir as ervas daninhas. As ervas daninhas só existem na medida em que não encaixam no plano do jardineiro. Assim, de certa forma, é o jardineiro que dá origem á erva daninha, e que origina uma luta sem fim para a combater, por causa da divisão que criou.
A pós-modernidade surge como falhanço deste projecto e o ressurgir da ambivalência. Bauman usa o exemplo dos judeus na alemanha como exemplo do primeiro povo que pode experimentar o que mais tarde se tornou universal: somos todos estranhos, por definição deslocados: já não existe uma identidade colectiva nativa natural, as nossas identidades são algo que é preciso construir. E os deslocados deste mundo experimentam portanto, a condição de estranho universal de cada um de nós neste mundo.
Bauman fala-nos dos judeus na Alemanha como o povo nómada que, nos anos anteriores à segunda grande guerra, foram convidados a aderir ao projecto de assimilação alemão, ou seja a tornarem-se alemães, a abdicar dos privilégios que tinham anteriormente em que vivam em comunidades auto-geridas e com leis próprias dentro do território alemão. Uma geração de judeus como Marx, Freud, Kafka, etc, viveram neste espaço intermédio de não poder voltar para atrás para aquilo que eram os seus antepassados judeus, nem ter a possibilidade de poderem ser verdadeiramente alemães por muito que se esforçassem. Aliás, quanto mais os judeus se esforçavam por serem alemães, mais óbvio era o seu fracasso pois, os alemães tinham medo desta noção de "germanidade" artificial, que pode ser adquirida por esforço. Os alemães posteriormente enfatizavam o "ser alemão" como algo racial, natural, fruto dos genes, nativo. Esta defesa, produto ainda da visão jardineira racional moderna, fracassou com Hitler no expoente desta derrota. Depois, finalmente quando os judeus se estabeleceram, já se encontraram num mundo em que não havia jardineiro para os admitir como plantas autorizadas, num mundo multiculturalista e globalizadao em que os projectos nacionalistas europeus falharam e já não há verdades impostas e absolutas (que era o que antes legitimava as identidades individuais)
Onde é que isto nos leva a Obama? Dizem os especialistas que Obama subiu ao poder através de 98% do voto dos afro-americanos, 68% por cento do voto hispânico e 63% dos votos dos asiáticos. Foi aliás, assim, que esta eleição se torna histórica, pois finalmente os americanos puderam ver em Obama alguém que carrega o fardo de ser estrangeiro num país onde todos são estrangeiros
E de facto, o que os Estados Unidos da América têm de único o facto de serem o fruto novo advindo do falhanço dos nacionalismos europeus. Os Estados Unidos são o país pós-moderno por excelência, onde não há uma identidade nativa natural propriamente dita mas sim uma mescla de culturas, não há uma identidade natural, mas sim, e sempre, uma identidade a ser construída socialmente por diferenciação individual. Os mais deslocados deste mundo, os emigrantes, os que são filhos de estangeiros em terra estrangeira, são, portanto, os que vivem mais agudamente a ambivalência universal do ser humano.
Reparem num pequeno bocado (exemplificativo) do discurso da vitória de Barack Obama:
"(Esta noite) Foi a resposta dada por jovens e velhos, ricos e pobres, Democratas e Republicanos, negros, brancos, latinos, asiáticos, homossexuais, heterossexuais, deficientes, americanos que enviaram a mensagem ao mundo de que não somos somente um conjunto de indivíduos ou um conjunto de estados vermelhos ou azuis. Nós somos, e sempre seremos, os Estados Unidos da América."
Deleuze dizia que os europeus têm um sentido inato da totalidade orgânica, ou da composição, mas eles precisam adquirir o sentido do fragmento, e apenas o podem fazer através de uma reflexão trágica ou de uma experiência do desastre. Os americanos, pelo contrário, têm um sentido natural do fragmento, e que aquilo que precisam de conquistar é o sentimento da totalidade, da bela composição. (...) Neste ponto de vista, o mim dos anglo-saxónicos, sempre rebentado, fragmentário, relativo, opõe-se ao Eu substancial, total e solipsista dos europeus.
Deleuze diz-nos isto num ensaio sobre Walt Whitman. Este poeta foi o primeiro americano talvez, a sonhar o sonho que Obama tenta agora concretizar, dos Estados Unidos como uma totalidade de fragmentos. Deleuze diz que Whitman introduz previamente a ideia de Todo, invocando um cosmos que nos convida à fusão; numa meditação particularmente convulsiva, diz-se hegeliano, afirma que apenas a América "realiza" Hegel, e institui os direitos primeiros de uma totalidade orgânica.
Termino com um poema de Whitman, poeta das ervas, das pradarias, das uniões indomáveis da natureza, antítese da metáfora do estado nacionalista jardineiro de Bauman, e símbolo de uma universalidade e companheirismo selvagem e fraterno:
Separando a Erva dos Prados
Separando a erva dos prados, aspirando o seu raro aroma,
Dela reclamo a espiritualidade,
Exijo o mais íntimo e abundante companheirismo entre os homens,
Peço que ergam as suas folhas as palavras, actos, seres,
Esses de límpidos ares, rudes, solares, frescos, férteis,
Esses que traçam o seu próprio caminho, erectos e livres
avançando, conduzinho e não conduzidos,
Esses de indomável audácia, de doce e veemente carne sem mácula,
Esses que olham de frente, imperturbáveis, o rosto dos presidentes
e governadores como se dissessem Quem és tu?
Esses de natural paixão, simples, nunca constrangidos, insubmissos,
Esses da América interior
terça-feira, 4 de novembro de 2008
Rock dos 70's: Tim Buckley - Greetings from LA
Ando a ouvir este excelente álbum de Tim Buckley: Greetings from LA. Tim Buckley morreu estupidamente de overdose com 28 anos deixando um legado musical fabuloso e um filho igualmente fabuloso, Jeff Buckley, que haveria igualmente de morrer estupidamente jovem, e com um legado musical igualmente fabuloso.
Façam download deste excelente álbum de 1972 aqui.
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